COM ELES, SEM ELES, POR ELES, CONTRA ELES

Até ao século XX, a história foi escrita por homens. Isto explica porque é que nós, mulheres, só aparecemos como personagens nas histórias da história. Mas nós estávamos lá e, sem nós, a história fica pela metade. Não só isso, como também algumas das melhores páginas da literatura mundial foram escritas por mulheres; outras têm nomes de mulheres porque escaparam das páginas de livros escritos por homens, mas, em última instância, são de mulheres – algumas arquétipos, outras reais.

A lista de mulheres que fizeram história é extensa: das deusas às rainhas, das cortesãs às inventoras, das atrizes às santas, das escritoras às políticas… Sempre estivemos em todo o lado, apesar de um manto de silêncio insistir em cobrir-nos ou ignorar-nos.

É claro que não podemos contar as histórias destas mulheres sem também ter os homens em conta, porque as vidas dos homens e das mulheres estão interligadas desde o princípio dos tempos e não se consegue explicar as delas sem as deles, ou seja, com eles, sem eles, por eles, contra eles ou com a ignorância deles.

Portanto, não se trata apenas da história delas; trata-se da história de todos, só que contada não através da supremacia masculina, mas a partir de um terreno comum.

Receio que, neste século XXI, haja também aqueles que nos querem tornar praticamente invisíveis outra vez, já que alguns sectores da política decidiram fazer engenharia social à custa das mulheres, negando que somos diferentes dos homens, o que não pressupõe desigualdade e, muito menos, que devamos ter menos direitos do que eles.

Por isso, sou uma das muitas mulheres que se opõem a que nos classifiquem como «seres gestantes». Aqueles que adotaram esta decisão e a tornaram lei são as mesmas pessoas que, depois, brincam com as palavras para que acabem no feminino, mudam o que sempre foi genérico, acreditando que isso é feminismo. Andam para aí a dizer à boca cheia «mátria» em vez de «pátria», mas depois negam-nos o qualificativo de «mães». Acho que essas pessoas estão muito confusas e não sabem a quantas andam. Ponto, parágrafo.

Pedro Mexia junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 19 de outubro, pelas 21h00.

Poeta e crítico literário, escolheu para a conversa no clube de leitura o livro "A Terra Devastada", de T. S. Eliot.

Para se inscrever no encontro basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro receberá um e-mail com todas as instruções para se juntar à conversa.

Pedro Mexia, da poesia às traduções

Pedro Mexia nasceu em Lisboa, em 1972, e licenciou‑se em Direito pela Universidade Católica. Escreveu crítica literária e crónicas para os jornais Diário de Notícias e Público e também faz traduções; atualmente colabora com o semanário Expresso. Além disso, é um dos membros do "Programa Cujo Nome Estamos Legalmente Impedidos de Dizer" (SIC Notícias) e mantém, com Inês Meneses, o programa PBX. Foi subdiretor e diretor interino da Cinemateca.

T.S. Eliot e "A Terra Devastada"

A estreia de T. S. Eliot na poesia deu-se em 1915, na revista Poetry, de Chicago, onde saiu um dos seus mais famosos poemas, The Love Song of J. Alfred Prufrock. Este e outros poemas constituíram, em 1917, o seu primeiro livro

Em 1922 surgiu o poema The Waste Land — "A Terra Devastada", na tradução em português —, considerado um dos mais belos e mais importantes poemas do Modernismo.  O tema de The Waste Land é a decadência e fragmentação da cultura ocidental, concebida imaginativamente por analogia com o fim de um ciclo de fertilidade natural. O poema divide-se em cinco partes, que não obedecem a uma sequência lógica, e estende-se por 433 versos. A justaposição de símbolos, imagens, ritmos, citações e sequências temporais, contribuem para a dimensão épica do poema e reforçam a sua coerência artística.

A história, como já disse, está cheia de mulheres que deixaram a sua própria marca, e não é por serem em menor número ou por sabermos pouco sobre elas que isso tem menos importância. Fui encontrando algumas destas mulheres ao longo da vida, principalmente através da leitura, mas também em viagens aos lugares onde viveram e nos lugares onde o eco da sua passagem por este mundo ainda é preservado.

Algumas são mulheres reais, de carne e osso, outras fazem parte da lenda e talvez nunca tenham existido.

Não pretendo falar de todas as mulheres que conseguiram transcender aquele segundo plano para o qual estavam predestinadas, porque a lista é longa e depois esta história seria outra história. Ludwig Feuerbach, o filósofo e antropólogo alemão, disse esta frase que tenho a certeza de que já ouviram muitas vezes: «Somos o que comemos», e eu acrescentaria que somos também o que lemos. Pelo menos, não consigo explicar-me a mim mesma se não for através dos livros que fui lendo ao longo da minha vida.

Este é, portanto, um relato pessoal, uma viagem através das minhas inquietações e das minhas leituras, do meu encontro com histórias protagonizadas por mulheres, sejam elas reais ou criaturas literárias, sem esquecer, como disse, o papel dos homens que lhes eram próximos, para o melhor ou para o pior.

Cleópatra não pode ser compreendida sem César e Marco António, nem Helena de Troia sem Páris, nem Romeu sem Julieta, nem Don Juan sem Dona Inês, nem Hamlet sem Ofélia, nem Frida Kahlo sem Diego Rivera, nem Simone de Beauvoir sem Jean-Paul Sartre ou Zelda sem Scott Fitzgerald, nem Virginia Woolf sem Leonard Woolf…

Portanto, não vou cometer o erro no qual, ao longo dos séculos, tantos homens persistiram, que foi ignorar ou dar pouco relevo ao papel desempenhado pelas mulheres. A diferença é que esta é uma história do meu encontro com elas sem os excluir a eles.

As minhas primeiras leituras foram feitas sentada ao lado da minha avó Teresa. Ela ensinou-me a ler. Tinha muita paciência, algo que eu não herdei.

Para alguns, a Arcádia é a nossa infância. E a minha foi passada em casa dos meus avós maternos, Teresa e Jerónimo, com a minha mãe, Elia, as minhas quatro tias, Elvira, Pilar, Carmen e Teresa, e três tios, Fabián, Santiago e Juan. E os meus primos, claro, com quem cresci e que são como se fossem os meus únicos irmãos, Juan Manuel e Merche.

E sim, havia livros em casa; na minha ótica, muitos, pois pareciam subir pelas paredes das estantes. Os livros do meu avô, sempre ao alcance de todos, sem quaisquer restrições. Além disso, em casa, as pessoas falavam sobre livros, sobre as histórias que estavam entre as suas páginas. O meu avô Jerónimo era um homem prudente, não era dado a grandes discussões, mas os seus olhos iluminavam-se e a sua voz ficava mais nítida quando falava de livros.

Para mim, os livros formam uma parte indispensável da minha vida; tanto que posso dizer que não há nada de que goste mais do que de ler. E agora dou início a esta história. Uma história partilhada.

BRISEIDA OU A OUTRA GUERRA POR UMA MULHER

Se Helena foi o gatilho da guerra entre os Gregos e os Troianos, Briseida quase fez com que os Gregos perdessem a guerra devido ao confronto entre Aquiles, herói entre heróis, e Agamémnon, rei entre reis. Um verdadeiro duelo de egos.

A Ilíada detém-se no rapto de Helena, mas sobretudo nas façanhas dos heróis e, entre todos eles, destaca Aquiles, o homem cuja liderança e coragem foram admiradas por todos aqueles que lutaram em frente às muralhas de Troia.

Na realidade, Aquiles era um semideus, uma vez que, como já disse, o seu pai, Peleu, rei de Tessália, era mortal, mas a sua mãe, Tétis, era uma deusa.

Como as mães conhecem bem os seus filhos, Tétis sabia que Aquiles seria impulsivo e temperamental, e como, sendo deusa, podia ver o futuro, ela tentou preservá-lo de uma morte prematura, banhando-o no Estige, cujas águas tinham o poder de tornar imortais aqueles que nelas mergulhassem. O problema foi ela ter segurado no recém-nascido pelo calcanhar e de esse calcanhar se ter tornado no único ponto mortal no corpo do filho.

Aquiles teve como tutor o centauro Quíron, um sábio professor de heróis. Estava destinado a ser «o dos pés ligeiros», segundo a descrição de Homero, mas a sua mãe, que, como todas as mães, tentou proteger o filho até de si mesmo e mantê-lo longe do perigo, enviou-o, durante algum tempo, para a ilha de Siros. Lá, teve um caso com Deidamia, filha do rei Licomedes, e o resultado foi uma criança, chamada Neoptólemo, que era loura como o seu pai.

Na realidade, Aquiles viveu para a glória. Homero certificou-se de que assim seria:

Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida;
a cólera maligna que tantas dores trouxe aos Aqueus
e tantas almas valentes de heróis lançou no Hades.

E sim, foi Briseida a causa da ira de Aquiles, a mulher que Agamémnon disputou com ele, e essa disputa quase fez com que o vento da sorte mudasse de rumo em favor dos Troianos no campo de batalha.

Mas quem era Briseida? O que tinha aquela mulher para provocar um confronto feroz entre Agamémnon, o maior de todos os reis, e Aquiles, o mais corajoso de todos os heróis?

Possuía ela a beleza de Helena? Era ela a filha de algum deus?

Quando li a Ilíada, já em adulta, a figura de Briseida despertou em mim uma profunda curiosidade. Não parava de me perguntar o que havia de tão especial naquela mulher tornada escrava. E sem duvidar das suas qualidades, cheguei à conclusão de que não era por ela que Aquiles e Agamémnon estavam a competir, mas que ser seu dono indicava, pura e simplesmente, quem tinha mais poder. Assim, Briseida era sobretudo um símbolo e nós, mulheres, sabemos o quanto o simbolismo do poder significa para os homens. Ainda hoje, há homens que preferem que as suas parceiras tenham certos atributos para mostrar o seu poder.

Sabemos que Briseida era filha de um sacerdote chamado Briseu e que ela nunca segurou nas rédeas da sua vida. Quando ainda era uma menina, casaram-na com o rei Minos de Lirnesso e, para piorar a situação, Maires, a sogra, não morria de amores por ela.

Livro: "Uma história partilhada"

Autor: Julia Navarro

Editora: Bertrand Editora

Data de Lançamento: 12 de outubro de 2023

Preço: € 18,80

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Como se não bastasse, acabou por se tornar escrava de Aquiles como parte dos despojos quando ele e os seus homens derrubaram as muralhas de Lirnesso. Nesse dia, Briseida perdeu os seus irmãos, que lutavam contra os Mirmidões, que obedeciam cegamente a Aquiles.

E foi testemunha de como o seu marido, o rei Minos, lutou corajosamente para defender a sua cidade contra o assalto de Aquiles, e como os Aqueus a saquearam, levando tudo o que encontraram no seu caminho. E depois foi a sua vez, juntamente com as restantes mulheres, escravas e senhoras. Os homens levavam-nas sem cerimónia para os navios como se fossem apenas mais uma mercadoria, eram somente parte do espólio. As regras da guerra, de qualquer guerra, são sempre as mesmas: para o vencedor, o saque e a glória; para o vencido, apenas um desejo: sobreviver, perguntando a si próprio se uma pessoa pode esquecer quem foi.

A melhor parte dos despojos deveria ir para Aquiles e, portanto, de entre todas as mulheres, entregaram-lhe Briseida, que, afinal de contas, tinha sido rainha de Lirnesso.

Há um livro de Pat Barker que conta a história de Briseida. Sinceramente, não sei quais são as fronteiras entre a imaginação da autora e a realidade, mas não há dúvida de que o livro, que se chama O Silêncio das Mulheres, é comovente.

O facto é que outra mulher, a jovem Criseida, outra vítima dessa guerra e dos heróis, foi a causa indireta do confronto de Agamémnon e Aquiles por causa de Briseida. Agamémnon desprezava a sua esposa, Clitemnestra, e ela pagava- -lhe na mesma moeda porque o marido tinha assassinado um dos seus irmãos. Agamémnon não se fazia rogado a mostrar o pouco que gostava da sua mulher. Por isso, ninguém estranhou que ele se tivesse apaixonado por Criseida, uma jovem virgem, filha de um sacerdote de Apolo.

Agamémnon guardou-a para si próprio como alguém guarda um objeto de que gosta. A situação provocou a raiva do pai dela, que intercedeu junto de Apolo em nome da filha. E já se sabe que a ira dos deuses é inigualável. Assim, quando o acampamento aqueu foi assolado pela peste, chamaram o adivinho Calcas para explicar a razão do castigo dos deuses. Calcas disse-o alto e bom som: Apolo tinha lançado uma maldição pela ofensa cometida por Agamémnon contra Criseida, pelo que a devia devolver ao pai ou a ira do deus aumentaria. Agamémnon não ousou antagonizar Apolo e teve de devolver Criseida, por isso exigiu que os outros reis entregassem parte do seu espólio, e decidiu que, escrava por escrava, queria em troca Briseida, a rainha transformada em escrava de Aquiles.

A partir desse momento, Aquiles deixou cair os braços em sinal de greve, decidindo que nunca mais lutaria e que Agamémnon e os outros reis teriam de arranjar forma de se defenderem. Mas a sua atitude teve consequências.

A ira de Aquiles custou a vida de Pátroclo, que era o seu melhor amigo. Pois, ao ver que o exército aqueu, desde a retirada de Aquiles, não levantara a cabeça, ele decidiu assumir o seu papel. Os homens queriam Aquiles no centro da batalha, mas este recusava-se a lutar. Pátroclo sabia que, sem Aquiles, perderiam a guerra. Assim, sem o consentimento de Aquiles, ele vestiu a sua armadura, o seu capacete e as suas grevas e, empunhando a sua lança, foi para a batalha fazendo-se passar pelo herói. E foi outro herói, Heitor, que o matou. Heitor, o filho mais amado de Príamo, o valente príncipe de Troia, homem de integridade e responsabilidade. Heitor tirou a vida a Pátroclo. Ali começava outra tragédia. Porque a Ilíada é uma sucessão de tragédias.

A partir desse momento, Briseida voltou a mudar de mãos. Agamémnon devolveu-a a Aquiles e Aquiles voltou à batalha para vingar a morte de Pátroclo, matou Heitor e profanou o seu corpo, arrastando-o amarrado à sua carruagem à volta das muralhas de Troia.

O que pensaria Briseida? Sentiria ela raiva, pena, medo? Sentiria piedade por Helena, que tinha desencadeado a guerra entre Aqueus e Troianos? Compreendê-la-ia melhor agora que se tinha tornado um troféu, provocando ela uma batalha venenosa entre Agamémnon e Aquiles? Dois galos arrogantes e altivos, a quererem marcar o seu território de poder também através da posse de uma mulher. Porque Briseida transforma-se de um capricho num símbolo.

Continuo a perguntar-me o que sentiria Aquiles por Briseida. Era apenas um troféu ou teria ele algum sentimento caloroso por ela? Custara-lhe entregá-la a Agamémnon porque ela significava algo para ele, ou era apenas algo que lhe feria o orgulho? Será que Briseida também sofreu a cólera de Aquiles, será que ele a culpabilizou pela morte de Pátroclo ou terá ele tido a decência de reconhecer que foi a sua incapacidade de conter a sua raiva que causou a morte do amigo? Depois, Briseida foi dada como esposa a Alcides, um dos tenentes de Aquiles. Será que alguém lhe perguntou se ela queria casar?

Sim, há duas grandes protagonistas na Ilíada, Helena e Briseida. As duas mulheres desencadearam terríveis batalhas entre homens que procuravam os espólios e a glória, e elas foram apenas a desculpa de que eles necessitavam, por muito que as tenham considerado culpadas de tantas desgraças.