UM

No telhado da Casa Branca, enfiado num canto do terraço superior, há um painel de revestimento solto, exatamente no canto formado com o solário. Quando pressionado com a devida força, é possível retirá‐lo e encontrar por baixo uma mensagem gravada com a ponta de uma chave ou mesmo com um abre‐cartas roubado da Ala Oeste.

Na história secreta das famílias presidenciais — uma indústria de mexericos tacanha e comprometida com a discrição absoluta quanto à maior parte das coisas, sob ameaça de morte —, não há uma resposta definitiva para quem a terá escrito. A única coisa de que parece haver certeza é de que apenas o filho ou a filha de um presidente teria tido a ousadia necessária para afrontar a Casa Branca. Alguns juram que foi Jack Ford, com os seus álbuns de Hendrix e o quarto de dois pisos com ligação ao telhado para pausas para cigarros, noite dentro. Outros dizem que foi a jovem Luci Johnson, com a sua fita larga no cabelo. Mas não é muito importante. A mensagem continua lá, como um mantra privado para quem for suficientemente engenhoso para a encontrar.

Alex descobriu‐a depois da primeira semana a viver ali. Nunca disse a ninguém como o fez.

Diz assim:

REGRA N.º 1: NÃO TE DEIXES APANHAR

No segundo andar, os quartos da Ala Leste e Oeste estão geralmente reservados para a família presidencial. Desde o mar‐ quês de Lafayette, na Administração Monroe, foram primeiro concebidos como um único quarto de Estado gigante destinado a hóspedes, mas acabaram por ser divididos. Alex ocupa o Quarto Leste, em frente à Sala do Tratado, e June, o Quarto Oeste, ao lado do elevador.

Quando viviam no Texas, os seus quartos estavam dispostos com a mesma configuração, de cada um dos lados do corredor. Na altura, era possível adivinhar os estados de espírito de June por aquilo que cobria as paredes do seu quarto. Aos doze anos, eram aguarelas. Aos quinze, calendários lunares e tabelas com cristais. Aos dezasseis, recortes de The Atlantic, um galhardete da Universidade do Texas, em Austin, Gloria Steinem, Zora Neale Hurston e excertos dos escritos de Dolores Huerta.

O quarto, em si, nunca mudava, limitando‐se a ficar cada vez mais atulhado de troféus de lacrosse e de pilhas de material de trabalho para alunos de nível avançado. Está tudo a acumular pó na casa que ainda é sua, na cidade natal. Num fio que usa ao pescoço, sempre longe da vista, usa a chave dessa casa desde o dia em que partiram para Washington.

Agora, olhando para o outro lado do corredor, o quarto de June é todo ele branco‐luminoso, rosa‐claro e verde‐hortelã, fotografado para a Vogue e reconhecidamente inspirado nas revistas de decoração de interiores dos anos sessenta que descobriu numa das salas de espera da Casa Branca. O seu próprio quarto foi em tempos o quarto de criança de Caroline Kennedy e, mais tarde, o que justificou o facto de June aí ter queimado sálvia, o gabinete de Nancy Reagan. Deixou as ilustrações de paisagens campestres numa disposição simétrica, por cima do sofá, mas pintou as paredes cor‐de‐rosa de Sasha Obama num tom azul-escuro.

De um modo geral, pelo menos nas duas últimas décadas, depois de fazerem dezoito anos, os filhos dos presidentes não viveram na residência, mas Alex começou a frequentar Georgetown no mês de janeiro, o mesmo em que a mãe prestou juramento, e, do ponto de vista logístico, não fazia sentido duplicar a segurança ou as despesas com o T0 em que tinha vivido. June veio nesse outono, acabada de sair da Universidade do Texas. Nunca o disse, mas Alex sabe que se mudou para a Casa Branca para o controlar. Sabe melhor do que ninguém quanto Alex adora estar tão perto da ação, e por mais de uma vez o arrastou literalmente para fora da Ala Oeste.

Com a porta do quarto fechada, pode sentar‐se e pôr Hall & Oates a tocar no gira‐discos, pois ninguém o irá ouvir a cantarolar como o pai ao som de «Rich Girl». Pode usar os óculos de leitura dos quais diz sempre que não precisa. Pode criar tantos planos de estudo meticulosos com post‐its em códigos de cor quantos desejar. Não vai ser o congressista mais novo a ser eleito na história recente sem que o tenha merecido, mas ninguém tem de saber quanto se está a esforçar. O seu valor como sex symbol cairia a pique.

— Ei — diz uma voz à porta, e Alex ergue os olhos do portátil para ver June entrar cautelosamente no quarto, com dois iPhones, uma pilha de revistas enfiada debaixo de um dos braços e um tabuleiro na mão. Fecha a porta atrás de si usando o pé.

— O que roubaste hoje? — pergunta Alex, afastando o monte de papéis que se encontra em cima da cama para abrir caminho para a irmã.

— Um sortido de dónutes — diz June enquanto se instala na cama. Traz uma saia travada com uns sapatos rasos e pontiagudos, cor‐de‐rosa. Alex já está a imaginar as colunas da moda da semana seguinte: uma fotografia da sua roupa atual, um introito para um artigo de blogue sobre sapatos sem salto para a jovem profissional ativa.

Pergunta para si mesmo o que terá ela andado a fazer o dia inteiro. Mencionou uma coluna para o Washington Post, ou seria uma fotografia para o seu blogue? Ou as duas coisas? Nunca consegue acompanhar.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

Subscreva a Newsletter do É Desta que Leio Isto aqui e receba diretamente no seu e-mail, todas as semanas, sugestões de leitura, notícias e acesso a pré-publicações.

June atirou com a pilha de revistas para cima da colcha e já se afadiga à sua volta.

— Estás a contribuir para a preservação da grande indústria de mexericos norte‐americana?

— É para isso que serve o meu curso de Jornalismo — responde June.

— Alguma coisa de jeito esta semana? — pergunta Alex, pegando num dónute.

— Ora bem — afirma June. — A In Touch diz que... namoro com um modelo francês?

— E namoras?

— Quem me dera. — Passa algumas páginas. — Uh! E dizem aqui que fizeste um branqueamento anal.

— Nisso acertaram — diz Alex com a boca cheia de pepitas de chocolate.

— Bem me parecia — replica June sem olhar para cima. Depois de folhear a maior parte da revista, enfia‐a no fundo da pilha e passa à People. Percorre as páginas distraídamente — a People só escreve o que os agentes publicitários lhe dizem que escreva. Seca. — Não há grande coisa sobre nós esta semana... Oh, sou uma das soluções para as palavras‐cruzadas.

Acompanhar a cobertura que os tabloides fazem dela é uma espécie de passatempo ocioso de June, algo que alternadamente diverte e incomoda a mãe, e Alex é suficientemente narcisista para deixar que June lhe leia os cabeçalhos. Normalmente são invenções absolutas ou pistas fornecidas pela equipa de imprensa, mas às vezes dão jeito para impedir boatos estranhos e particularmente maliciosos. Se lhe fosse possível escolher, preferiria ler um entre as centenas de artigos ficcionais e entusiastas de fãs sobre si próprio na Internet, a versão amplificada da sua pessoa, com um encanto devastador e uma energia física inacreditável, mas June recusa‐ ‐se terminantemente a ler‐lhos em voz alta, por muito que tente suborná‐la.

— Lê a Us Weekly — sugere Alex.

— Hum... — June desenterra a revista da montanha de publicações. — Oh, olha, esta semana fomos capa.

Mostra‐lhe a capa reluzente, que traz uma fotografia de ambos, emoldurados num canto, o cabelo de June apanhado no cimo da cabeça e Alex com ar de quem bebeu ligeiramente de mais, mas, ainda assim, bem‐parecido, todo maxilar e caracóis pretos. Por baixo, numas ousadas letras amarelas, o cabeçalho: primeira noite louca dos irmãos em Nova Iorque.

— Ah, claro, foi uma noite bem louca — diz Alex, reclinando‐se para trás, contra a cabeceira de cama alta, de pele, empurrando os óculos pelo nariz acima. — Oradores de destaque numa conferência. Nada mais sexy do que cocktails de camarão e uma hora e meia de palestras sobre emissões de dióxido de carbono.

— Diz aqui que tiveste uma espécie de encontro com uma «morena misteriosa» — lê June. — «Embora a filha da presidente tenha sido transportada de limusina para uma festa recheada de estrelas pouco depois da gala, Alex, o sedutor de vinte e um anos, foi fotografado a esgueirar‐se para o W Hotel para se encontrar com uma morena misteriosa na suite presidencial e a sair por volta das quatro da manhã. Fontes provenientes do hotel relataram ter ouvido sons amorosos vindos do quarto durante toda a noite, e os rumores sugerem que a morena não era mais do que... Nora Holleran, a neta de vinte e dois anos do vice‐presidente Mike Holleran e terceiro elemento do Trio da Casa Branca. Poderão os dois jovens estar a reacender a chama do romance?»

— Sim! — regozija‐se Alex, e June resmunga. — Menos de um mês! Deves‐me cinquenta dólares, minha cara.

— Espera lá. Era mesmo a Nora?

Alex recua mentalmente até à semana anterior, em que apareceu no quarto de Nora com uma garrafa de champanhe. O caso dos dois durante a campanha, há um milhão de anos, foi breve, alcançando, acima de tudo, o desfecho inevitável. Tinham dezassete e dezoito anos e estavam condenados ao fracasso desde o princípio, ambos convencidos de que eram a pessoa mais inteligente de qualquer sala. Desde então, Alex reconheceu que Nora é cem por cento mais inteligente do que ele e decididamente demasiado inteligente para poder ter andado com ele.

Mas não tem culpa de que a imprensa não largue o osso; de que goste da ideia dos dois juntos, como se fossem os Kennedys da atualidade.

Assim sendo, se ele e Nora de vez em quando se embebedam juntos em quartos de hotel enquanto assistem a Os Homens do Presidente e soltam gemidos em voz alta junto à parede em proveito de tabloides ruidosos, na realidade, Alex não pode ser responsabilizado pelo facto. Estão simplesmente a usar uma situação indesejável em proveito da sua recreação pessoal.

Vigarizar a irmã é uma vantagem adicional.

— Talvez — diz ele, arrastando as vogais.

June bate‐lhe com a revista como se ele fosse uma barata particularmente nojenta. — Isso é batota, seu safado!

— Uma aposta é uma aposta — replica Alex. — Dissemos que,

se aparecesse um boato novo no espaço de um mês, me ficavas a dever cinquenta paus. Aceito pagamento por Venmo.

— Não vou pagar — diz June, irritada. — Vou matá‐la quando a virmos amanhã. A propósito, o que vais levar vestido?

— Para quê?

— Para o casamento.

— Casamento de quem?

— Oh, o casamento real — diz June. — De Inglaterra. Está literalmente em todas as capas que acabei de te mostrar.

Volta a pegar na Us Weekly, e desta vez Alex repara na manchete, em letras gigantes: príncipe Philip diz sim! Juntamente com a fotografia de um herdeiro inglês bastante insípido e da sua noiva loira igualmente insípida, a sorrirem molemente.

Deixa cair o dónute em sinal de devastação.

— É este fim de semana?

— Alex, partimos amanhã de manhã — diz‐lhe June. — Temos duas aparições mesmo antes da cerimónia. Nem acredito que a Zahra ainda não te chateou por causa disto.

— Raios — resmoneia. — Sei que tinha isso apontado. Distraí‐me.

— Como? A conspirar contra mim nos tabloides com a minha melhor amiga, em troca de cinquenta dólares?

— Não, com o meu artigo de investigação, espertinha — responde Alex, gesticulando teatralmente para as suas pilhas de apontamentos. — Durante toda a semana, tenho andado a trabalhar nele para a cadeira de Pensamento Político Romano. E pensava que tínhamos concordado que a Nora é a nossa melhor amiga.

— Não podes estar a frequentar uma cadeira com esse nome — diz June. — Será possível que te tenhas esquecido propositadamente do maior evento internacional do ano por não quereres ver o teu arqui‐inimigo?

— June, sou o filho da presidente dos Estados Unidos. O príncipe Henry é a figura de proa do Império Britânico. Chamar‐lhe meu «arqui‐inimigo» é pouco — afirma Alex. Regressa ao seu dónute, mastigando‐o pensativamente, e acrescenta: — «Arqui‐inimigo» implica que seja realmente meu rival em toda a linha e não, enfim, um produto emproado de casamentos consanguíneos que provavelmente se masturba a olhar para fotografias de si mesmo.

— Uau.

— Estou só a dizer.

— Bem, não tens de gostar dele, tens apenas de fazer um ar de felicidade e de não causar um incidente internacional no casamento do irmão dele.

— Miúda, quando é que não fiz um ar de felicidade? — pergunta Alex. Exibe um sorriso dolorosamente falso, e June parece satisfatoriamente repugnada.

— Credo. Enfim, sabes o que vais levar vestido, certo?

— Sim, no mês passado escolhi a roupa e a Zahra aprovou. Não sou um animal.

— Ainda não tenho a certeza sobre o meu vestido — diz June. Inclina‐se para a frente e rouba‐lhe o portátil, ignorando o som que o irmão produz em sinal de protesto. — Achas que leve o castanho‐avermelhado ou o de renda?

— O de renda, claro. É Inglaterra. E porque é que estás a tentar que eu chumbe a esta cadeira? — pergunta, estendendo a mão para o portátil para a ver simplesmente afastada com uma palmada. — Vai lá tratar do teu Instagram ou de uma coisa do género. És do piorio.

— Cala‐te. Estou a tentar escolher qualquer coisa para ver. Ei, tens o Garden State na tua lista? Uau, que tal vai a escola de cinema em 2005?

— Odeio‐te.

— Hum, eu sei.

Livro: "Vermelho, Branco e Sangue Azul"

Autor: Casey McQuiston

Editora: Editorial Presença

Preço: € 19,90

Subscreva a Newsletter do É Desta que Leio Isto aqui e receba diretamente no seu e-mail, todas as semanas, sugestões de leitura, notícias e acesso a pré-publicações.

Do lado de fora da janela, o vento agita‐se sobre o relvado, fazendo sussurrar as tílias do jardim. O álbum que tocava no gira‐discos chegou ao fim, mergulhando o quarto num silêncio vago. Alex rebola para fora da cama e vira‐o, voltando a pousar a agulha, e o lado B começa em «London Luck, & Love».

Se for sincero, Alex terá de reconhecer que nunca se cansa de aviões privados, nem três anos depois do início do mandato da mãe. Não viaja muito desta forma, mas, quando o faz, é difícil que não lhe suba à cabeça. Nasceu na região montanhosa do Texas, neto de mãe solteira e de um descendente de imigrantes mexicanos, todos eles podres de pobres — o luxo continua a ser um luxo. Há quinze anos, quando a mãe concorreu pela primeira vez à Casa Branca, o jornal de Austin atribuiu‐lhe uma alcunha: a Improvável de Lometa. Fugira da sua minúscula cidade natal à sombra de Fort Hood, fizera turnos da noite em restaurantes baratos para conseguir pagar a Faculdade de Direito e, com cerca de trinta anos, andava a defender casos de discriminação perante o Supremo Tribunal. Era a última coisa que alguém esperava ver erguer‐se do Texas a meio da Guerra do Iraque: uma democrata de cabelo entre o louro e o ruivo, extremamente inteligente, de saltos altos, com um modo de falar arrastado e desassombrado e uma pequena família birracial.

Assim sendo, ainda é surreal o facto de Alex estar algures sobre o Atlântico, a bordo de um avião, a petiscar pistácios numa poltrona de pele, com os pés levantados. Nora vai à sua frente, inclinada sobre as palavras‐cruzadas do New York Times, com os caracóis castanhos a caírem‐lhe para a testa. Ao seu lado, Cassius — Cash, para abreviar —, o pesado agente dos serviços secretos, segura o seu próprio exemplar com uma mão gigante, numa corrida para as terminar primeiro. O cursor do portátil de Alex no artigo de Pensamento Político Romano pisca diante dele, na expectativa, mas algo em si não se consegue concentrar bem nos estudos quando se encontram num voo transatlântico.

Amy, a agente dos serviços secretos preferida da mãe, uma ex‐fuzileira naval que, segundo se diz em Washington, terá matado vários homens, está sentada do outro lado do corredor. Ao seu lado, em cima da poltrona, tem aberta uma pasta de titânio à prova de bala com munições e está tranquilamente a bordar flores num guardanapo. Alex já a viu trespassar uma pessoa na rótula com uma agulha de bordar muito semelhante.

O que faz com que reste apenas June, ao seu lado, apoiada num dos cotovelos e com o nariz enterrado no número da People que inexplicavelmente trouxe consigo. Escolhe sempre o material de leitura mais estranho para os voos. Da última vez, foi um velho e gasto livro de máximas cantonesas. Antes disso, Death Comes for the Archbishop.

— O que estás para aí a ler agora? — interroga Alex.

Vira a revista na sua direção para que o irmão possa ver o artigo de duas páginas com o título: loucura no casamento real! Alex resmunga. É decididamente pior do que um livro da Willa Cather.

— O que foi? — pergunta June. — Quero estar preparada para o meu primeiro casamento real.

— Foste ao baile de formatura, não foste? — quer saber Alex. — Imagina isso, só que no Inferno, e já é ser muito simpático. — Acreditas que gastaram setenta e cinco mil dólares só no bolo?

— É deprimente.

— E, ao que parece, o príncipe Henry vai comparecer no casa‐ mento sem acompanhante, e está toda a gente a passar‐se por causa disso. Diz‐se que — imita uma pronúncia britânica em tom cómico — «se envolveu com a herdeira belga no mês passado, mas agora os seguidores da vida amorosa do príncipe não sabem bem o que pensar».

Alex bufa. Para ele é uma loucura haver legiões de pessoas a acompanhar as vidas amorosas profundamente entediantes dos irmãos reais britânicos. Mas compreende por que motivo as pessoas se interessam pelo sítio onde ele próprio enfia a língua — ao menos ele tem personalidade.

— Talvez a população feminina da Europa tenha finalmente percebido que ele é tão atraente como um novelo de lã molhado — sugere Alex.

Nora pousa as palavras‐cruzadas, tendo sido a primeira a terminá‐las. Cassius lança‐lhe uma olhadela e solta um palavrão.

— Então vais convidá‐lo para dançar?

Alex revira os olhos, imaginando‐se subitamente a rodopiar num salão de baile enquanto Henry lhe sussurra ao ouvido insignificâncias sobre croquet e cenas de caça à raposa. O pensamento provoca‐lhe náuseas.

— Talvez quando as galinhas tiverem dentes.

— Oh — exclama Nora —, estás a corar.

— Ouve — explica Alex —, os casamentos reais são uma treta, os príncipes que têm casamentos reais são uma treta, o próprio imperialismo que permite que existam príncipes é uma treta. É tudo uma treta, do princípio ao fim.

— É a tua conferência TED? — pergunta June. — Tens consciência de que os Estados Unidos também são um império genocida, certo?

— Sim, June, mas pelo menos temos a decência de não ter monarquia — diz Alex, atirando‐lhe um pistácio.

Há algumas coisas sobre Alex e June de que os novos funcionários da Casa Branca são informados antes de entrarem em funções. Da alergia de June a amendoins. Dos pedidos frequentes de café por parte de Alex, a meio da noite. Do namorado da faculdade de June, que acabou com ela quando foi viver para a Califórnia, mas que continua a ser a única pessoa cujas cartas são endereçadas diretamente à rapariga. Da embirração de longa data de Alex com o príncipe mais novo.

Na realidade, não se trata de uma embirração. Nem sequer de uma rivalidade. É uma irritação pruriginosa e incómoda. Deixa‐lhe as palmas das mãos transpiradas.

Os tabloides — o mundo — decidiram apresentar Alex como o equivalente norte‐americano do príncipe Henry desde o primeiro dia, visto que o Trio da Casa Branca é a coisa mais parecida que os Estados Unidos têm com a realeza. Nunca lhe pareceu justo. A imagem de Alex é toda ela carisma e génio e perspicácia afetada, entrevistas profundas e a capa da GQ aos dezoito anos; Henry é feito de sorrisos plácidos, de cavalheirismo afável e de aparições em eventos de beneficência, um retrato perfeitamente desinteressante do Príncipe Encantado. O papel de Henry, na opinião de Alex, é muito mais fácil de interpretar.

Talvez tecnicamente seja uma rivalidade. Não importa.

— Muito bem, passemos a coisas mais importantes — diz. — Quais são os números para este evento?

Nora sorri com ar irónico.

— Hum. — Finge pensar profundamente no assunto. — Avaliação de risco: a incapacidade do filho da presidente dos Estados Unidos ponderar as consequências dos seus atos resultará em mais de quinhentas mortes entre a população civil. Noventa e oito por cento de probabilidade de o príncipe Henry parecer uma brasa. Setenta e oito por cento de probabilidade de Alex ser banido para sempre do Reino Unido.

— As previsões são melhores do que estava à espera — observa June.

Alex ri‐se, e o avião continua a planar.

Londres é um verdadeiro espetáculo, com as multidões a apinhar as ruas em volta do Palácio de Buckingham e por toda a cidade, enroladas nas bandeiras do Reino Unido e a acenar com bandeirolas minúsculas por cima das cabeças. Por toda a parte há recordações comemorativas do casamento real; a imagem do príncipe Philip e da noiva representada em tudo o que é sítio, desde tabletes de chocolate a roupa interior. Alex quase não consegue acreditar que tantas pessoas se interessem de forma tão apaixonada por algo tão profundamente entediante. Tem a certeza de que não haverá este tipo de afluência diante da Casa Branca quando ele ou June um dia se casarem — nem o desejaria.

A cerimónia em si parece durar uma eternidade, mas pelo menos é razoavelmente agradável, num certo sentido. Não é que Alex não queira saber de amor ou não consiga apreciar o casamento. Simplesmente, aquela Martha é uma jovem da nobreza perfeitamente respeitável e Philip é um príncipe. É tão sexy como uma transação comercial. Não há paixão, não há drama. As histórias de amor de Alex são muito mais shakespearianas.

Parecem ter decorrido anos até estar finalmente instalado numa mesa entre June e Nora, dentro de um salão de baile do Palácio de Buckingham, e está suficientemente irritado para ser um pouco temerário. Nora passa‐lhe uma flute de champanhe e Alex pega nela com agrado.

— Algum de vocês sabe o que é um visconde? — pergunta June, a meio de uma sandes de pepino. — Já devo ter conhecido, tipo, uns cinco e continuo a sorrir educadamente como se soubesse o que isso significa quando o referem. Alex, tu que estudaste aquela treta das relações governamentais internacionais comparadas ou coisa assim... O que são viscondes?

— Acho que é quando um vampiro cria um exército de escravos sexuais enlouquecidos e começa o seu próprio corpo legislativo — responde ele.

— Parece‐me bem — diz Nora. Dobra o guardanapo numa forma complicada em cima da mesa, com o verniz preto e brilhante das unhas a reluzir sob a luz do lustre.

— Gostava de ser viscondessa — diz June. — Podia mandar os meus escravos sexuais tratar‐me dos e‐mails.

— Os escravos sexuais são bons em correspondência profissional? — pergunta Alex.

O guardanapo de Nora começa a parecer‐se com uma ave.

— Acho que podia ser uma abordagem interessante. Todos os e‐mails de resposta seriam lancinantes e libertinos. — Assume uma voz ofegante e rouca. — «Oh, por favor, suplico‐lhe, possua‐me e leve‐me... leve‐me a almoçar para analisarmos amostras de tecidos, seu bruto!»

— Poderia ser estranhamente eficaz — assinala Alex.

— Há algo de muito errado convosco — conclui June calmamente. Alex está prestes a abrir a boca para replicar, quando um assistente real se materializa na sua mesa como um fantasma bronco e de aspeto severo, com uma peruca de má qualidade.

— Menina Claremont‐Diaz — diz o homem, que tem ar de quem provavelmente se chama Reginald ou Bartholomew, ou coisa parecida. Faz uma vénia e, milagrosamente, a peruca não cai no prato de June. Alex troca um olhar incrédulo com ela por trás do homem. — Sua Alteza Real, o príncipe Henry, pede‐lhe a honra de o acompanhar numa dança.

June fica boquiaberta, paralisada num som vocálico suave, e Nora desfaz‐se num sorriso maldoso.

— Oh, ela adoraria — sugere Nora. — Tem estado a noite inteira à espera de que ele a convide.

— Eu... — começa June e interrompe‐se imediatamente, com um sorriso nos lábios, embora os olhos trespassem Nora. — Claro que sim. Seria maravilhoso.

— Excelente — diz Reginald‐Bartholomew e vira costas, gesticulando por cima do ombro.

E ali está Henry, em carne e osso, tão classicamente elegante como sempre no seu fato de três peças feito por medida, todo ele cabelo cor de areia despenteado e maçãs do rosto salientes e uma boca delicada e amistosa. Apresenta‐se numa postura inaptamente impecável, como se um dia tivesse saído, completa‐ mente formado e ereto, de um bonito jardim florido do Palácio de Buckingham.

Os seus olhos fixam‐se nos de Alex, e algo como exasperação ou adrenalina floresce no peito deste. Há provavelmente um ano que não tem uma conversa com Henry. O seu rosto continua a ser irritantemente simétrico.

Henry digna‐se a fazer‐lhe um aceno de cabeça formal, como se fosse outro convidado qualquer, não a pessoa que foi escolhida em vez dele para um editorial de estreia da Vogue, quando eram adolescentes. Alex pestaneja, ferve de cólera e vê Henry dirigir o seu estúpido maxilar cinzelado para June.

— Olá, June — diz Henry e estende a mão com elegância para a rapariga, que agora enrubesce. Nora finge desmaiar.

— Sabes dançar a valsa?

— Hum... devo certamente conseguir acompanhar — responde ela e pega‐lhe na mão com cuidado, como se achasse que Henry lhe fosse pregar uma partida, o que Alex considera ser demasiado generoso para o sentido de humor daquele.

Henry condu‐la em direção à multidão de nobres rodopiantes.

— Então agora é isto? — diz Alex, olhando para baixo, para a ave‐guardanapo de Nora. — Decidiu finalmente calar‐me fazendo a corte à minha irmã?

— Oh, querido — responde Nora. Aproxima‐se dele e dá‐lhe umas palmadinhas na mão. — É muito fofinho pensares que tudo tem que ver contigo.

— Sinceramente, devia ter.

— É assim mesmo.

Olha para cima, para a multidão, onde Henry faz rodopiar June pela pista de dança. Esta tem um sorriso neutro e educado no rosto, e Henry está sempre a olhar por cima do ombro dela, o que é ainda mais enervante. June está fantástica. O mínimo que Henry podia fazer era dar‐lhe atenção.

— Mas achas que ele gosta mesmo dela?

Nora encolhe os ombros.

— Quem sabe? Os tipos da monarquia são estranhos. Pode ser um ato de cortesia ou... ah, pronto, está explicado.

Um fotógrafo real precipitou‐se na sua direção e está a tirar uma fotografia de ambos a dançar, instantâneo que, Alex sabe, será vendido à People na próxima semana. Então é isso? A usar a filha da presidente para começar um rumor qualquer de namoro idiota de maneira que chame a atenção para a sua pessoa? Permitir que Philip domine o circuito das notícias durante uma semana? Nem pensar.

— O tipo é bastante bom nisto — observa Nora.

Alex faz sinal a um empregado de mesa e decide passar o resto da receção a embebedar‐se metodicamente.

Alex nunca contou — nunca contará — a ninguém, mas tinha doze anos quando viu Henry pela primeira vez. Só pensa nisso quando está com os copos.

Tem a certeza de, antes disso, ter visto o seu rosto nas notícias, mas foi essa a primeira vez que o viu realmente. June tinha acabado de fazer quinze anos e usou parte do dinheiro que lhe deram pelo aniversário para comprar um número de uma revista para adolescentes ofuscantemente colorida. O seu amor por tabloides sem qualidade começou cedo. No interior da revista havia posters em miniatura que se podiam destacar e colar no cacifo. Se se tivesse cuidado e se soltassem os agrafos com as unhas, era possível retirá‐los sem rasgar as páginas. Um deles, mesmo no meio, correspondia à imagem de um rapaz.

Tinha cabelo espesso e alourado, e uns grandes olhos azuis, um sorriso afável e um bastão de críquete por cima do ombro. Deve ter sido tirada sem que se tivesse dado conta, porque o rapaz exibia uma confiança alegre e solar que não poderia ter sido simulada. No canto inferior da página, escrito a rosa e azul: Príncipe Henry.

Alex ainda não sabe bem o que o atraiu, apenas que se esgueirava para o quarto de June, procurava a página e tocava com as pontas dos dedos no cabelo do rapaz, como se de alguma forma conseguisse sentir a sua textura se a imaginasse com a dedicação suficiente. Quanto mais os pais ascendiam na carreira política, mais começava a contar com o facto de em breve o mundo vir a saber quem ele era. Então, às vezes, pensava naquela fotografia e em tentar ganhar a confiança fácil do príncipe Henry.

(Também pensou em soltar os agrafos com os dedos, em retirar a fotografia da revista e em guardá‐la no quarto, mas nunca o fez. Tinha as unhas demasiado curtas; não eram feitas para aquilo, como as de uma rapariga.)

Mas depois veio a primeira vez que se cruzou com Henry — as primeiras palavras frias e distantes que Henry lhe dirigiu —, e Alex pensou que se tinha enganado, que o rapaz bonito e aberto da imagem não era real. O verdadeiro Henry é belo, indiferente, aborrecido e fechado. A pessoa com quem os tabloides insistem em compará‐lo, com quem ele próprio se compara, acha que é melhor do que Alex e do que qualquer pessoa como ele. Alex nem consegue acreditar como pôde ter desejado ser como ele.

Alex continua a beber, continua a alternar entre pensar no assunto e obrigar‐se a não pensar no assunto, desaparece no meio da multidão e, por causa do assunto, dança com muitas e belas herdeiras europeias.

No momento em que se afasta de uma delas com uma pirueta, vê uma figura solitária junto do bolo e da fonte de champanhe. É de novo o príncipe Henry, de copo na mão, a ver o príncipe Philip e a noiva rodopiarem pelo salão de baile. Parece ligeiramente interessado, de uma forma educada, naquele seu modo odioso, como se tivesse outro sítio onde devesse estar. E Alex não consegue resistir ao impulso de invocar toda a sua fanfarronice.

Abre caminho por entre a multidão, tirando, de passagem, um copo de vinho de uma bandeja e emborcando metade do seu conteúdo.

— Quando se organiza um evento destes — diz Alex, avançando na sua direção —, deveriam providenciar‐se duas fontes em vez de uma. É muito embaraçoso estar num casamento com uma só fonte de champanhe.

— Alex — diz Henry na sua pronúncia exasperantemente chique. Visto de perto, o colete que traz por baixo do casaco é de um dourado sumptuoso e tem cerca de um milhão de botões. — Já me estava a perguntar se iria ter o prazer.

— Parece que é o teu dia de sorte — diz Alex sorrindo.

— É, de facto, uma ocasião importante — concorda Henry. O seu sorriso é de um branco cintilante e imaculado, feito para ser impresso em notas.

O mais irritante de tudo é que Alex sabe que Henry também o odeia — tem de o odiar, são adversários naturais um do outro —, mas recusa‐se a agir abertamente como se o odiasse. Alex tem plena consciência de que a política implica manter boas relações com pessoas que se detestam, mas desejava que desta vez, apenas desta vez, Henry agisse como um ser humano real e não como um brinquedinho de corda reluzente à venda na loja de prendas de um palácio.

É demasiado perfeito. Alex quer espicaçá‐lo.

— Nunca te cansas — pergunta Alex — de fingir que estás acima de tudo isto?

Henry vira‐se e olha fixamente para ele.

— Não estou a compreender o que queres dizer.

— Quero dizer que estás aqui, a fazer com que os fotógrafos te persigam, a andar de um lado para o outro como se detestasses toda esta atenção, o que claramente não é verdade, visto que estiveste a dançar com a minha irmã, entre todas as pessoas possíveis — replica Alex. — Ages como se fosses demasiado importante para estar em qualquer sítio, sempre. Não se torna esgotante?

— Sou... um pouco mais complicado do que isso — tenta Henry dizer.

— Ah.

— Oh — diz Henry, semicerrando os olhos. — Estás bêbedo. — Estou apenas a dizer — afirma Alex, pousando um cotovelo demasiado amistoso no ombro de Henry, o que não é tão fácil como gostaria que fosse, visto que Henry tem cerca de dez exasperantes centímetros a mais do que ele. — Podias tentar agir como se te estivesses a divertir. De vez em quando.

Henry ri‐se com ar triste.

— Talvez devas ponderar passar à água, Alex.

— Devo? — pergunta Alex. Afasta o pensamento de que talvez tenha sido o vinho a instilar‐lhe coragem para se aproximar tempestuosamente de Henry e põe um olhar tímido e angelical, como tão bem sabe fazer. — Estou a ofender‐te? Lamento, mas não estou obcecado contigo, como toda a gente. Sei que deve ser confuso para ti.

— Sabes que mais? — diz Henry. — Acho que tu é que estás confuso.

Alex fica boquiaberto, enquanto o canto da boca de Henry assume um ar depreciativo e quase um pouco maldoso.

— É só uma ideia — reforça Henry, num tom educado. — Já reparaste que nunca me aproximei de ti uma única vez e que fui extraordinariamente civilizado sempre que falámos? E, no entanto, aqui estás tu, mais uma vez, à minha procura. — Bebe um gole de champanhe. — É apenas uma observação.

— O que foi? Eu não... — Alex gagueja. — Tu és o...

— Tem uma excelente noite, Alex — diz Henry com elegância, e vira costas para se afastar.

Alex fica doido só de pensar que Henry conseguiu ter a última palavra e, sem pensar, estende o braço e puxa‐o pelo ombro.

Então Henry vira‐se, subitamente, e desta vez quase empurra Alex para o afastar de si, e, por um breve instante, Alex fica impressionado com o brilho nos seus olhos, uma explosão abrupta de verdadeira personalidade.

Quando dá por si, está a tropeçar e a cair de costas em cima da mesa mais próxima. Repara, demasiado tarde, que a mesa é, para seu horror, a mesma que suporta o enorme bolo de casamento de oito andares e agarra‐se ao braço de Henry para não cair, mas não faz mais do que desequilibrá‐los a ambos e fazê‐los despenhar‐se juntos em cima da mesa.

Vê, como que em câmara lenta, o bolo inclinar‐se, vacilar, estremecer e finalmente tombar. Não há absolutamente nada que possa fazer para o impedir. Desaba no chão, numa avalancha de creme de manteiga, numa espécie de pesadelo açucarado de setenta e cinco mil dólares.

O salão fica num silêncio de cortar à faca enquanto o impulso da queda o arrasta, a ele e a Henry, pelo chão e, mais ainda, sobre os despojos do bolo na alcatifa com motivos, a manga de Henry ainda presa no punho de Alex. O copo de champanhe de Henry en‐ tornou‐se sobre ambos e estilhaçou‐se, e, pelo canto do olho, Alex vê um corte na parte de cima da maçã do rosto de Henry começar a sangrar.

Por um segundo, a única coisa em que consegue pensar enquanto fita o teto, enterrado em cobertura de bolo e champanhe, é que pelo menos a dança de Henry com June não será a melhor história a relatar do casamento real.

O seu pensamento seguinte é que a mãe o vai matar a sangue‐frio. Ao seu lado, ouve Henry murmurar lentamente:

— Mas que grande merda.

Regista vagamente que é a primeira vez que ouve o príncipe dizer um palavrão, antes de o flash da máquina fotográfica de alguém disparar.