José Saramago estava errado — e ainda bem
Edição por António Moura dos Santos
“O autor é um rapaz de vinte e quatro anos, calado, metido consigo, que ganha a vida como praticante de escrita nos serviços administrativos dos Hospitais Civis de Lisboa, depois de ter estado a trabalhar durante mais de um ano como aprendiz de serralharia mecânica nas oficinas dos ditos hospitais. Tem poucos livros em casa porque o ordenado é pequeno, mas leu na Biblioteca Municipal das Galveias, tempos atrás, tudo quanto a sua compreensão logrou alcançar”.
Quando José Saramago escreveu estas humildes palavras de introdução ao seu primeiro romance, dificilmente esperaria que o estaríamos a celebrar 100 anos depois do seu nascimento. Tantas vezes inclemente, o tempo, desta vez, trouxe justiça, tanto a si quanto a essa obra de estreia: publicada como “Terra do Pecado” em 1947, foram precisos 75 anos até que fosse reeditado com o título que o seu autor desejou, “A Viúva”.
Iniciadas a 16 de novembro de 2021, concluem-se hoje as celebrações do Centenário de José Saramago, nascido neste mesmo dia em Azinhaga, freguesia ribatejana que nunca esqueceu, nem mesmo quando deixou Portugal para viver a fase tardia da sua vida em Lanzarote.
Um pouco por todo o país, eleva-se o nome do escritor e do homem, daquele que, como a minha colega Alexandra Antunes escreveu a propósito do aniversário de 20 anos da atribuição do Nobel da Literatura, “ainda continua por cá, porque quem escreve nunca morre”.
Sim, Saramago continua vivo, por exemplo, pela voz dos alunos que hoje em Portugal, Espanha e outros países vão ler excertos dos seus romances em simultâneo, ou nas 100 oliveiras plantadas em seu nome em Azinhaga, a última das quais vai neste dia lançar raízes na mesma terra onde nasceu.
Vive também nas iniciativas que continua a inspirar, desde a ópera Blimunda, que hoje sobe a palco no Teatro São Carlos, em Lisboa, até ao prémio literário com o seu nome. Desta vez, deu-se a curiosa ironia de o vencedor, o escritor brasileiro Rafael Gallo, partilhar consigo circunstâncias distintas mas análogas.
Como nos recordou Zeferino Coelho, o “seu editor” de sempre, Saramago, depois de publicar “Terra do Pecado”, chegou mesmo a abandonar “a carreira de romancista quando um editor nem sequer lhe respondeu à proposta de edição de um romance com o título de ‘Clarabóia’ (que só viria a ser publicado mais de meio século depois de ter permanecido esquecido, pelo editor e pelo autor, nos fundos de um armazém)”. Antes do seu retorno às letras, foi desenhador, funcionário da saúde e da previdência social, editor e tradutor.
O retorno ocorreria já depois do 25 de Abril, com “Manual de Pintura e Caligrafia”, já Saramago tinha construído carreira como tradutor, crítico e cronista, e só quando integrou o catálogo da Editora Caminho é que teve a garantia de ser escritor a tempo inteiro.
Em paralelo, Rafael Gallo precisou de lidar com inúmeras rejeições da sua obra até conseguir publicar o livro de contos “Réveillon e outros dias”. E, ainda assim, não foi suficiente. O seu primeiro romance, “Rebentar”, datado de 2015, tinha sido o seu último lançamento desde então. E tal como o escritor ribatejano chegou a fazer, dedicou-se a um ofício burocrático, para pagar as contas. Mas depois os regulamentos do Prémio Literário José Saramago mudaram, passando de aceitar apenas obras publicadas de escritores com 35 anos ou menos, para aceitar apenas obras inéditas de escritores sub-40, inclusive.
Acontece que o escritor paulista tinha "Dor Fantasma" à espera de ser conhecido pelo mundo. E foi com ele que venceu a edição de 2022 do galardão, sendo este "a pedra onde se baseará um novo capítulo" da sua vida, como disse no seu discurso de vitória, esta segunda-feira.
“Tenho uma história muito difícil com este romance. Estou a trabalhar nele há seis anos, já passou por editoras que não o quiseram, por leitores que não gostaram, e eu lutei para fazer alterações e para transformá-lo numa outra coisa”, explicou aos jornalistas, após vencer o prémio.
Tanto Gallo como Saramago precisaram de esperar — este segundo, por muito mais tempo, note-se — por dias melhores. Mas como foi mencionado acima, o tempo foi generoso. Seria já a rondar as seis décadas que o escritor ribatejano enveredou por uma carreira que o cimentaria como um dos grandes nomes da literatura não só portuguesa, como mundial.
Aproveitemos então para voltar a esse mesmo texto de introdução de “Terra do Pecado/A Viúva”, que terminava assim: “Aturdido pela vitória de ir ser publicado e pela derrota de ver trocado o nome a esse outro filho, o autor baixou a cabeça e foi dali anunciar à família e aos amigos que as portas da literatura portuguesa se tinham aberto para ele. Não podia adivinhar que o livro terminaria a pouco lustrosa vida nas padiolas. Realmente, a julgar pela amostra, o futuro não terá muito para oferecer ao autor de A Viúva”.
Felizmente, estava errado.
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