O sorteio ditou que André Ventura iria ter a palavra para arrancar o debate e que Marisa Matias iria ter a voz para o terminar. E, durante uns instantes, ficou no ar a impressão de que até poderia ser mais ou menos cordial. Ninguém esperava 30 minutos iguais ou semelhantes aos encontros anteriores com Ana Gomes (no caso de Marisa) ou até Vitorino Silva (no caso de Ventura), mas ficou a sensação de que seria possível assistir a uma conversa amena. Porém, sessenta segundos bastaram para se desfazer as dúvidas. Muitas acusações. E divergências. Muitas divergências. Discussão, troca de ideias, nem tanto.

O tom foi sempre de trica e a moderadora da SIC, a jornalista Clara de Sousa, teve uma missão ingrata porque os candidatos dificilmente conseguiam ouvir uma resposta até à sua conclusão sem contra-argumentar — e quase sempre arrematando acusações e falando por cima um do outro. As interrupções eram constantes e dificultavam qualquer fio condutor que permitisse seguir a linha de raciocínio até ao fim. Tanto que a moderadora admitiu desligar os microfones aos candidatos na última pergunta, no final de uma discussão em que ambos levantaram "casos" tanto de dirigentes do Bloco de Esquerda como do deputado do Chega.

Também não demorou muito até Marisa Matias acusar o adversário de ser "mentiroso", "vigarista" ou de "cobarde", tal como o visado não se ficou na hora de disparar semelhante galhardete — acusando o Bloco de Esquerda (BE) de ser o "maior troca tintas da História do país". É que nem Ricardo Robles escapou à mira de Ventura, que fez parecer que se tratava de um confronto entre BE e Chega e não de André Ventura e Marisa Matias, tantas foram as vezes que trazia à baila os resultados das últimas sondagens.

O debate foi quente, com sangue na guelra, com o insólito de se estar a discutir a idade em que se começou a vida laboral, quem interrompia quem ou até a diferença entre tráfico e consumo de droga. Mas por partes. E pelo início.

A questão de remate desenhou um cenário hipotético. Mais concretamente sobre o que faria Marisa Matias em caso de vitória de um Governo apoiado pelo Chega ou se Ventura daria posse a um Governo com o Bloco de Esquerda. E digamos que o consenso não reinou e as posições não podiam ser mais antagónicas. A eurodeputada bloquista respondeu prontamente que não dava posse a um executivo do qual o Chega fizesse parte, ao passo que André Ventura garantiu que, caso fosse eleito presidente da República, embora lhe custasse, iria empossar um governo formado pelo Bloco de Esquerda.

"O Chega é um partido que faz parte da democracia portuguesa", lembrou o último, desfazendo o lado hipotético da questão, aludindo ao facto de a adversária não atuar em conformidade com um cenário "que pode acontecer já nos próximos meses" com a coligação entre PSD e o Chega a ser uma realidade em que André Ventura acredita — e a qual Marisa Matias não pode negar apenas e só porque não "gosta" da hipótese. Por isso, além de "repudiar" a posição assumida pela adversária, frisou que uma candidatura que tenha esta posição é "uma candidatura com uma lógica irresponsável".

"É o mesmo que dizer que o Chega, por muito que cresça, que esta parte do eleitorado não interessa. Que há aqui um grupo de eleitores que não faz parte e que o Chega não faz parte disto tudo. Honestamente, acho que se a Marisa Matias fosse presidente, faria [as coisas] de maneira diferente. Confrontada com os factos não vejo que pudesse fazer outra coisa. A outra fórmula era dizer vai haver eleições até o Chega não ter esta votação", ironizou André Ventura.

Após a intervenção inicial do adversário chegaria a vez de Marisa Matias acabar por confirmar que efetivamente não fazia nada de "maneira diferente". Não se alongou muito no tema, preferindo deixar umas palavras à invasão ao Capitólio norte-americano levada a cabo por manifestantes pró-Trump, ocorrida no dia anterior, aproveitando a ocasião para apelidar o Chega de extrema-direita — algo que levou Ventura a abanar a cabeça em tom de indignação para posteriormente acusá-la de "insanidade anti-democrática".

O que se seguiu depois foi um jogo de ataque e contra-ataque. E muitas frases que ficam para posteridade desta história, mas que não acrescentam grande novidade à narrativa de ambos os lados do espectro, da esquerda à direta. De um lado as críticas à falta de humanismo do candidato apoiado pelo Chega, do outro ao Bloco de Esquerda que, acusa Ventura, está de forma sistemática a falhar às famílias portuguesas, às empresas, à economia e ao setor privado.

  • "A extrema-direita é igual em todo o mundo" — Marisa Matias
  • "André Ventura é na verdade um vigarista" — Marisa Matias 
  • "Sei que o André Ventura não gosta que leia aquilo que escreveu, aquilo que está no plano do Chega!" — Marisa Matias
  • "Honra me seja feita porque parece que sou o único no parlamento que faz frente ao Bloco de Esquerda" — André Ventura
  • "Não foi Chega que deu moradas falsas no parlamento" - André Ventura
  • "Eu sei que está mal nas sondagens e hoje ficou muito mal na fotografia" — André Ventura
  • "Não consegue desenvolver uma ideia sem ser para me atacar" — André Ventura
  • "Nem o candidato André Ventura se leva a sério e vou eu levá-lo a sério?" — Marisa Matias
  • "Sabia que vinha debater comigo, que não vinha debater com o Rato Mickey" — André Ventura
  • "Se o Bloco não é extrema-esquerda, já não sei o que é extrema-esquerda"— André Ventura

Neste debate não houve espaço para alfinetadas singelas, mas sim para espetar algo bem maior e pontiagudo. A ordem era espetar dê lá por onde desse. É que se Marisa Matias começou por tentar conseguir aguentar o tom mais ou menos cordial sem perder a compostura, volvidos 10 minutos os decibéis e a indignação começaram de pronto a subir. O esgar da discórdia era palpável quando um tentava ouvir o outro (das vezes que não se interrompiam) e o desdém mútuo invadia os estúdios da SIC como a força de um mar revoltado bate na areia na zona da arrebentação.

A situação levou a candidata apoiada pelos bloquistas lembrasse que Ventura há uns anos tinha sido alvo de uma busca da PJ "num caso de corrupção e de financiamento dos partidos" — a Operação Tutti Frutti, iniciada em 2017 e tornada pública em 2018, estando em causa uma teia de crimes de corrupção, tráfico de influência e financiamento político, decorrentes da contratação de pessoal e da adjudicação direta de serviços a empresas ligadas ou controladas por dirigentes políticos, sobretudo do PSD e do PS. Neste caso em concreto, a candidata quis saber o que se passou para que o gabinete de André Ventura tivesse sido um dos visados, na altura vereador na Câmara de Loures, eleito pelo PSD.

Sem surpresa para realmente ninguém, André Ventura não se ficou e respondeu a Marisa Matias que a investigação decorreu "em trezentas e tal câmaras", incluindo a de Lisboa. Como tal, será que o Bloco retirava o apoio ao socialista Fernando Medina pelas mesmas razões? O candidato não perdia tempo para responder à pergunta com outra pergunta.

A resposta ficou pendurada porque nesta altura o debate não era político, mas sim de "casos". E com Ventura um caso nunca vem só e questionou a adversária se o caso do vereador bloquista Ricardo Robles, um crítico do chamado "carrossel da especulação" e que pôs à venda um prédio por 5,7 milhões comprado à Segurança Social por 347 mil euros.

A esta insinuação Marisa Matias confrontou André Ventura à André Ventura e respondeu às acusações ao repetir a mesma questão três vezes ("Diga o que é que a PJ foi fazer ao seu gabinete?"), mas só para depois respingar com todas as letras que o adversário "está sistematicamente a mentir ao eleitorado".

Ventura, por seu turno, retorquiu de volta sem perder tempo. "Uma candidata do BE aparece num debate a dizer que tive uma busca no gabinete… Mas não foi o Chega que teve o Ricardo Robles. Não foi o Chega que teve moradas falsas no parlamento", indagou, sem contudo responder à questão da adversária. Neste momento ou até ao final do debate.

Não foi bem o momento da verdade em si, mas foi o momento que marca o debate e que empresta as palavras muitos títulos e destaques da imprensa nacional que cobriu a discussão. Depois de ouvir as acusações a Robles, Marisa Matias quando tomou a palavra acusou Ventura de não ter "uma palavra sobre o crime económico e os paraísos fiscais".

Ou seja, o discurso do líder do Chega trabalhar em prol do cidadão comum não pega. Assim, para Marisa Matias, André Ventura não é mais do quem "é cobarde, troca-tintas, na realidade é um vigarista". A defesa para esta acusação advém do facto de Ventura ter defendido a exclusividade dos deputados, quando recebia três remunerações diferentes — situação que, entretanto, já corrigiu.

Resposta leva resposta e Ventura perguntava do outro lado da mesa "e o vigarista sou eu?", depois de dizer que o Bloco não acompanhou propostas do Chega e dá os exemplos de uma que pedia a revisão dos salários dos profissionais de saúde e outra que tinha como intuito reduzir os salários políticos. "O vigarista está do outro lado", disse.

Entre vigaristas de um lado e vigaristas do outro, o debate também passou pela saúde e pela continuação ou não das parcerias público-privadas (PPP). A candidata apoiada pelos bloquistas é contra as PPP como um negócio, salientando que os hospitais privados por pouco ou nada terem feito no combate à pandemia.

Rejeitando este argumento e frisando que cada caso é um caso, o candidato da direita deu um exemplo do Hospital de Braga, elogiando a maneira como este era gerido. "As pessoas ficaram a perder na Saúde por causa da cegueira ideológica do BE", acusou o candidato apoiado pelo Chega. Antes, tinha criticado igualmente a Lei de Bases da Saúde ("que Marcelo nunca devia de ter promulgado") e "as ações" do partido de Marisa Matias nesta área.

Ora, este tópico levou Ventura a insistir no epíteto de "vigarista" para a sua adversária, dizendo que "os maiores vigaristas" estão do "outro lado" da mesa, aproveitando para criticar uma alegada falta de preparação da adversária.

"Eu sou só fico espantado, Marisa, é que sabia que vinha debater comigo. Não vinha debater com o Rato Mickey. Sabia que lhe ia rebater todos os argumentos, sabia que ia perder. Talvez por isso as suas sondagens sejam tão más. É porque não consegue desenvolver uma ideia sem me atacar. Teve azar, eu vinha preparado para acabar consigo", respingou um altivo Ventura.

Marisa Matias respondeu a esta declaração afirmando que o líder do Chega não lhe respondia diretamente às questões — muitas vezes a refutação de Ventura surgia em formato papel A4 de uma notícia sobre o partido apontada diretamente para as objetivas das câmara — pedindo que este "ouvisse" aquilo que "não gosta de ouvir".

"Este senhor chegou a este debate e não respondeu a uma única pergunta. Traz casos e casinhos, quer fazer de tudo um lamaçal. Não respondeu o que é a PJ estava a fazer no seu gabinete, não assume o que tem no seu programa eleitoral em relação ao Serviço Nacional de Saúde, em relação às escolas, em relação aos impostos e não assume o trabalho que fez", frisou.

Não interessa muito quem sai por cima quando quem perde é o eleitorado português por assistir a um debate um pouco à imagem daquilo que aconteceu Biden e o Trump nas últimas eleições. Insinuar que este esteve ao mesmo nível do "pior debate da história norte-americana" é rebuscado, mas existiram muitos momentos em que a qualidade e o nível do seu conteúdo não andou longe. Nem que seja porque a meio de um debate de umas eleições presidenciais de um país se discutiu a diferença entre consumo e a venda de droga.

Contexto: a imigração foi outro tema em que os dois candidatos expuseram as suas divergências. Se Ventura insistiu na ideia de que não se pode "deixar entrar pessoas" que vêm de Marrocos, onde não há registo de perseguições religiosas ou políticas, o que é diferente do asilo político, a eurodeputada do BE acusou de Ventura de recorrer "aos refugiados e às minorias, aos ciganos" para tentar colocar os portugueses "contra os mais fragilizados" e que, por cobardia, "não aponta o dedo" ao "poder económico".

Depois, veio à baila a dicotomia entre o consumo e venda de estupefacientes menos lícitos após Ventura frisar que não vai ser candidato de "todos os portugueses", nomeadamente de pedófilos, dos que subsistem de subsídios estatais ou traficantes de droga. Acontece que a resposta levou a que Marisa Matias retorquisse que "ainda hoje o ouvi numa entrevista a assumir que já consumiu drogas", mas só para depois perguntar se o "candidato André Ventura achava que deveria de ser preso por isso?".

"Eu acho que a Marisa percebe a diferença entre traficar droga e o resto. Ou não? Não compreende? Acha que é a mesma coisa? Marisa, eu não lhe quero dar lições de Direito. Se acha que traficar droga é o mesmo que consumir estamos perante uma candidata que não percebe nada disto", ripostou um Ventura tenso, mas só até Clara de Sousa interromper a discussão relembrando os candidatos que "não estamos a falar de quem consome ou não droga, estamos a falar de uma questão maior, que é um desafio para a Europa". E quando é necessário um moderador fazer uma derrapagem deste nível a meio de um debate é porque algo não vai bem no adro.

Sumário

A conversa teve PPP, buscas, drogas, imigração, paraísos fiscais — e essencialmente muito alarido. Mas iria terminar com Venezuela, Grécia e até com a líder da Frente Nacional francesa. É que se por um lado Marisa Matias criticava André Ventura por "iniciar a sua campanha ao lado de Marine Le Pen, a mesma que quer proibir o ensino de português na escola pública em França", Clara de Sousa perguntava qual era a diferença entre a aproximação do Chega ao partido francês e a visita da eurodeputada à Grécia para se marcar presença num comício do Syriza, partido conotado como sendo da extrema-esquerda. "É uma diferença completa e total", disse, embora sem acrescentar mais nada.

André Ventura, do outro lado da mesa, falava por cima e pedia à adversária para "não mentir aos portugueses" — ao mesmo tempo que insinuava que as acusações eram um "role de mentiras" e pedia para falar da "China, de Cuba, da Venezuela". Sem querer deixar o adversário sem resposta, Marisa fez a vontade deste.

"Mas já que está a tocar na Venezuela, eu lembro-me do André Ventura, dirigente do PSD, estar a aplaudir as negociatas com os presidentes do PSD com a Venezuela. As fotografias dos abraços, os negócios", frisou, antes de rematar que o André Ventura do PSD "era um menino muito bem comportadinho". A esta alfinetada saiu a resposta madura: "antes isso que o MRPP e os partidos que fundaram o Bloco de Esquerda".

Portanto, o nível era este. E à questão "afinal, quem é que ganhou" diria que o mais correto será afirmar que "ninguém". Nem os candidatos nem os eleitores. Ou, a alguém a ter ganho alguma coisa, só Clara de Sousa uma dor de cabeça por não conseguir por cobro às interrupções constantes e ao tom pouco cordial que os candidatos mantiveram durante praticamente todo o debate.