É difícil de imaginar o cenário, nomeadamente no contexto de países democráticos e alinhados com a trajetória que o direito internacional fez ao longo do século XX. Mas é um cenário real: desde dia 7 de outubro de 2023, data do infame ataque do Hamas sobre pessoas indefesas em Israel, que o secretário-geral da ONU, António Guterres, tenta falar com o primeiro-ministro israelita, Benjamim Netanyahu sem sucesso.  São mais de quatro meses que decorreram sob um cenário de catástrofe humanitária - e Netanyahu continua sem atender o telefone.

Tudo isto é especialmente grave quando se sabe que Israel está a planear um ataque a Rafah, no sul da Faixa de Gaza e junto à fronteira com o Egito, contra todas as posições manifestadas por aliados e organizações internacionais, alarmadas com potenciais consequências humanitárias.

Em Rafah, aos cerca de 200 mil habitantes que residiam na cidade, juntaram-se mais de 1,3 milhões de deslocados vindos no centro e norte do enclave palestiniano, na sequência dos numerosos ataques do exército israelita contra posições do Hamas tanto em Gaza (norte) como em Khan Yunis (centro/sul), iniciados em 7 de outubro de 2023.

António Guterres foi, mais uma vez, claro sobre as consequências humanitárias do que se vive em Gaza.

“Há um colapso na ordem pública. Ao mesmo tempo, temos restrições impostas por Israel que não melhoram e limitam a distribuição humanitária. Por outro lado, os mecanismos de resolução de conflitos para proteger a prestação de ajuda humanitária em relação às operações humanitárias não são eficazes”, afirmou hoje.

Guterres disse mais. No debate de alto nível do Conselho de Segurança da ONU para abordar o impacto das alterações climáticas e da insegurança alimentar na manutenção da paz e segurança internacionais, não deixar de apontar que “em Gaza, ninguém tem o que comer. Das 700 mil pessoas mais famintas do mundo, quatro em cada cinco habitam aquela pequena faixa de terra”, frisou.

O atual cenário configura uma espécie de Israel contra todos. Não serão exatamente todos, já que a política internacional tem sempre ângulos mortos que custa percerber. Mas, neste momento, Netanyahu, o homem que não atende o telefone a Guterres tem a UE, a ONU, os Estados Unidos e até a China a dizer: "Não faças isso". E ainda assim, numa Gaza destruída, faminta e sem qualquer vislumbre de ordem, o tempo é de vésperas sob  a ameaça do ataque a Rafah.

Os conflitos prolongados no tempo, seja na Ucrânia ou em Gaza, tendem a gerar uma espécie de anestesia na opinião pública mundial. Os ciclos infernais de notícias contribuem para isso mesmo. Talvez por isso mesmo valha a pena usar outras fontes. O livro "Um dia na vida da Abed Salama", de Nathan Thrall, pode fazer alguma coisa sobre todos aqueles que sentem anestesiados.

Nathan Thrall é um jornalista, analista e ensaísta norte-americano a viver em Jerusalém. É colaborador, entre outras publicações, do The New York Times Magazine, da The New York Review of Books e da London Review of Books. Dirigiu durante uma década o Projeto Árabe-Israelita do International Crisis Group, uma organização independente dedicada à prevenção de conflitos.

O livro que escreveu é uma não-ficção, o que significa que tudo o que relata aconteceu mesmo. O resumo é este.

"Milad Salama tem cinco anos. Está entusiasmado com a viagem escolar a um parque temático nos arredores de Jerusalém. O autocarro, porém, não chega ao destino. Ao saber do acidente, Abed, pai de Milad, inicia uma via-sacra em busca do filho desaparecido. As crianças acidentadas foram levadas para diferentes hospitais de Jerusalém e da Cisjordânia. Abed, em desespero, vê-se confrontado com um labirinto de obstáculos físicos, emocionais e burocráticos. É palestiniano e está do lado errado do muro que separa dois povos vizinhos e inimigos."

Depois de ler é difícil que a anestesia permaneça.