Em fevereiro de 2012, na estrada de Jama, na Cisjordânia, deu-se um acidente de viação que, apesar de trágico, seria, à partida, idêntico a outros tantos pelo mundo: um camião entrou em contramão para fugir ao trânsito e, perante a chuva intensa que se fazia sentir, perdeu o controlo e acabou por colidir contra um autocarro escolar palestiniano que irrompeu em chamas. Do embate resultaram sete mortos, seis crianças e uma professora. Mas este não foi um acidente qualquer.
Há inúmeras circunstâncias que demarcam este desastre dos demais, todas elas minuciosamente detalhadas por Nathan Thrall em “Um Dia na Vida de Abed Salama: Anatomia de uma Tragédia em Jerusalém”, sendo a figura no título pai de uma das crianças que se encontrava no autocarro. Com lançamento mundial este outono — a edição em Portugal ficou a cargo da Zigurate —, o livro do jornalista norte-americano parte deste acontecimento para espelhar a história das relações entre Israel e a Palestina. Mais do que isso, Thrall, que é judeu e vive em Jerusalém há 12 anos, demonstra como a relação desigual de forças vigente se repercute no quotidiano da região, com consequências particularmente penalizadoras para os palestinianos.
“O que este incidente mostra é que está em curso uma política deliberada para negligenciar totalmente estas centenas de milhares de pessoas que vivem do outro lado deste muro, e que essa política está em vigor porque tiveram a infelicidade de nascer palestinianos na área da grande Jerusalém”, conta o jornalista. Em Lisboa para promover o livro, Thrall dedicou uma parcela da sua apertada agenda para falar com o SAPO24, antes de uma sessão organizada pela Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD). O estilo pausado e deliberado com que fala denota uma candura que contrasta com a dureza das suas palavras.
“Veja-se como o muro não está traçado ao longo dos limites da Jerusalém Oriental anexada, tendo sido ao invés desenhado para empurrar o maior número possível de palestinianos para a menor área possível fora do centro da cidade. Todas estas políticas insanas do muro, dos postos de controlo, derivam do facto básico de que Israel quer o menor número possível de palestinianos no centro da cidade. Trata-se, evidentemente, de uma política imoral com enormes consequências para todas as pessoas que aqui vivem”, acrescenta.
O lugar onde ocorreu o acidente é colado a Jerusalém Oriental, zona recortada por muros e colonatos israelitas que cercam as povoações palestinianas. Além disso, trata-se da Área C, que ocupa 62% da Cisjordânia e onde apenas as forças de autoridade de Israel podem operar. Assim, o trânsito caótico, habitual na estrada de Jeda, não seria o mesmo se esta não fosse uma das únicas que serve as populações palestinianas da zona — muitas são exclusivas para israelitas, outras estão interditas a palestinianos sem autorização especial para entrar em Jerusalém. Tal como não haveria este bloqueio à circulação sem a presença de centenas de pontos de controlo que impediram os serviços de socorro de chegar mais cedo.
Além disso, junte-se a inoperância dos serviços israelitas na vizinhança, já que havia quartéis de bombeiros e bases militares a poucos quilómetros de distância do local do acidente. “Todos sabiam da rapidez com que as autoridades israelitas se lançavam sobre uma estrada da Cisjordânia assim que um miúdo atirava pedras. No entanto, os soldados no posto de controlo, as tropas na base de Rama, os camiões de bombeiros nos colonatos vizinhos nada tinham feito, deixando o autocarro arder durante mais de meia hora”, lê-se no epílogo deste livro.
Não obstante estas políticas de exclusão, Thrall diz acreditar que as consequências trágicas do evento não se sucederam “porque os israelitas queriam que este autocarro cheio de crianças em idade pré-escolar ardesse, nem porque queriam que os serviços de emergência e os camiões de bombeiros chegassem mais de meia hora depois do acidente e de todas as crianças já terem sido evacuadas”. A explicação para o que aconteceu é menos maquiavélica, mas nem por isso menos triste: “é porque todo o sistema em vigor é de uma negligência total”. “A Autoridade Palestiniana não está autorizada a entrar na zona onde ocorreu o acidente, nem sequer na zona onde vivem estas pessoas. Israel não vai lá, exceto como força policial. Assim, quando estas tragédias acontecem, estas pessoas são deixadas à sua sorte. E esta é uma política deliberada”, aponta.
Como a história de um acidente conta a história de um país
Ao longo das suas 200 páginas, “Um Dia na Vida de Abed Salama” não se fica por apenas colocar uma lupa sobre esse acidente de fevereiro de 2012. Os seus capítulos intercalam entre o envolvimento dos protagonistas neste acontecimento e as suas histórias de vida, que também são a história de Israel e da Palestina. É por isso que ficamos a saber do tortuoso percurso de Abed Salama. Membro de uma das maiores famílias da região de Anata, viu as terras dos seus antepassados serem sucessivamente confiscadas pelos colonos e cedo se politizou, integrando a Frente Democrática para a Libertação da Palestina — um grupo nacionalista de índole Marxista-Leninista que veio a fazer parte da Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Foi o seu envolvimento nesta formação durante a Primeira Intifada — a revolta palestiniana que durou entre 1987 e 1993 — que lhe valeu a detenção durante seis meses em condições altamente precárias.
Mas a história de Salama não se fica por aqui. Acompanhamo-la desde os contornos shakespearianos com que foi separado do seu amor de infância por desavenças familiares até ao momento de pânico em que percorreu os hospitais da região à procura do seu filho Milad no rescaldo do acidente. Por fim, descobriria tragicamente que foi uma das vítimas mortais. “Escolhi esta história em parte porque fiquei profundamente comovido com este acontecimento e porque partilho uma cidade com as mesmas pessoas, os pais e os filhos, que estiveram envolvidos neste acidente. Eles vivem uma vida radicalmente diferente da minha, apenas a dois quilómetros de distância, do outro lado de um muro. E eu posso visitá-los, sem problema, mas eles não podem visitar-me”, explica o repórter.
O seu contacto com Abed deu-se através de uma amiga da sua família, parente distante do pai que protagoniza este livro. Sendo um americano judeu a viver no outro lado do muro, Thrall ficou chocado com a facilidade que teve em falar com Salama e com muitas das outras pessoas cujas histórias estão aqui plasmadas. “Não tenho uma explicação para o grau de confiança que me concederam, a não ser o facto de haver uma ligação entre nós e de terem confiado que eu queria realmente contar toda a verdade da história, sem qualquer embelezamento”, explica. Mas há ainda um outro elemento que facilitou o contacto, “o facto de estes pais viverem numa nuvem de silêncio, porque à sua volta ninguém quer falar de algo que possa reabrir velhas feridas”. “As pessoas evitavam o assunto do acidente, do seu filho morto. E aqui estava alguém que vinha ter com eles, um estranho, e que queria falar sobre nada mais, nada menos, do que o seu filho e o pior dia da sua vida. E, em vez de me afastarem, abraçaram-me e, na verdade, ansiavam pela oportunidade de fazer o luto e de falar das suas emoções, da sua culpa e da sua raiva em relação a este acidente horrível”, revela.
O processo de escrever este livro, afirma Thrall, expô-lo “de uma forma que jamais tinha sentido à quantidade de angústia mental que se esconde por baixo da superfície para qualquer palestiniano”. “Conversei com pessoas — mesmo com algumas que não eram pais ou filhos envolvidos no acidente, mas que eram periféricas a ele — e todas elas tinham muitas cicatrizes por viverem nesta realidade insana e imoral”. O jornalista dá o exemplo de Huda Dahbour, médica responsável por uma clínica móvel da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados e uma das primeiras pessoas a chegar ao local do acidente para tentar prestar assistência.
Como tantas outras mulheres palestinianas, a história familiar de Huda é uma história de exílio, tendo sido forçada a fugir de Haifa em 1948. A médica só conseguiu regressar à Palestina nos anos 90 porque era casada com um diplomata palestiniano, um dos poucos que foi autorizado a regressar nos anos 90 durante um curto espaço de tempo criado pelos Acordos de Oslo. As cicatrizes de que Thrall fala vão desde ter sido forçada a encarar enquanto paramédica o cenário de destruição na Tunísia em 1985 — quando Israel bombardeou a sede da OLP, na altura em Tunes —, até à detenção do seu filho, Hadi, a meio da noite pelo exército israelita. “Falamos de uma mãe cujo filho — como qualquer rapaz que é assediado por soldados à porta da escola todas as semanas — decide começar a atirar pedras [às autoridades israelitas]. À uma e meia da manhã, o exército chega e diz à mãe ‘Vamos levá-lo’ sem explicar porquê e ela demora 10 dias a descobrir em que centro de detenção é que ele está. Mas esse terror, essa impotência que ela sente como mãe, é algo que todas as famílias palestinianas sentem ao criar os seus filhos na Cisjordânia”, afirma Thrall.
O livro, sublinhe-se, não é feito de relatos de apenas um dos lados do muro — apesar dos palestinianos serem os mais pungentes. Nestas páginas ficamos a saber da história de Eldad Benshtein, o primeiro paramédico israelita a chegar ao local, 24 minutos após o embate, já as crianças tinham sido retiradas por voluntários. Apesar de não poder ter ajudado, a visão de corpos carbonizados marcou-o, recordando-o do período de ataques bombistas no início dos anos 90 “a que ele tinha secretamente dado o nome ‘Era dos Autocarros Voadores’”, lê-se. Ou o relato de Saar Tzur, o comandante de uma brigada israelita que tomou a decisão inédita de ceder o controlo da situação aos palestinianos na fase de rescaldo do desastre. Porquê? Ficamos a perceber pouco depois tratar-se de um homem pragmático e disposto a colaborar com a Autoridade Palestiniana — representada na zona por um primo de Abed, Ibrahim Salama — para facilitar a vida aos dois lados. É desta teia complicada de dependências e negociações que se faz a vida na região, tendo Thrall tido o trabalho de transpôr esse puzzle de relações num puzzle narrativo.
Os desafios de contar uma história que nem todos querem ouvir
Mais tarde, já durante a sessão da FLAD, em conversa com a jornalista Isabel Lucas, Nathan Thrall detalhou as diferentes camadas narrativas com que decidiu abordar o tema do livro. “Antes de me debruçar sobre a história do acidente, interessava-me a ideia de pegar num único acontecimento para contar toda a história de Israel-Palestina. Tinha a ambição de fazer algo que fosse muito mais narrativo e senti, de certa forma, a obrigação de fazê-lo porque senti que o mundo tinha ficado entorpecido em relação a este tema”, afirmou.
A frase parece deslocada quando dita no rescaldo dos acontecimentos de 7 de outubro e do reativar do conflito que se sucedeu — e Thrall admite-o. “É uma loucura ouvir essas palavras agora, porque está na primeira página de todos os jornais, mas essa atenção é de curta duração. Só acontece quando há uma guerra em Gaza — vimo-lo em 2014 e em 2021 e depois desapareceu. E eu queria, antes de mais, romper com essa indiferença”, declarou no auditório.
Esta é uma ideia que, de resto, o autor já transmitira em conversa com o SAPO24, especialmente tendo em conta que o seu livro não se centra tanto em Gaza, mas sim na Cisjordânia. “Assim que a guerra terminar, assim que houver um cessar-fogo, o mundo voltará a dizer ‘isto é demasiado complicado, não pode ser resolvido’. E quando isso acontecer, Israel continuará, como agora, mesmo durante a guerra, a expulsar os palestinianos das suas terras e a destruir as suas residências, a construir novas casas para judeus e, lentamente, a absorver cada vez mais a Cisjordânia. O mundo inteiro tem ignorado isso”, afirma.
Sendo um especialista no tema — dirigiu, inclusive, o Projeto Árabe-Israelita da ONG International Crisis Group durante uma década — Thrall coloca mesmo em causa os pedidos de “calma” habitualmente feitos pela comunidade internacional, afirmando que o desescalar da violência acaba por ser acompanhado da desatenção sobre o tema, permitindo a Israel a continuar a agir à margem da lei internacional. “Qual é a ‘calma’ que estão a pedir? A ‘calma’ não é calma de todo. A ‘calma’ é violenta. A ‘calma’ produz violência. Por isso, o objetivo deste livro era mostrar-nos o que é a ‘calma’ e inspirar as pessoas a agir, a mudar o sistema”, aponta.
Por mero acaso, esse seu intuito de “desentorpecer” o público quanto à realidade na região coincidiu com o recrudescer do conflito: “Um Dia na Vida de Abed Salama” teve lançamento mundial a 3 de outubro, quatro dias antes do ataque do Hamas a Israel.
“Vários amigos disseram-me, antes do lançamento, que este livro serviria como um termómetro, porque a opinião pública dos EUA mudou realmente em relação à questão Israel-Palestina, especialmente entre os judeus americanos de centro-esquerda e entre a geração mais jovem. ‘Com a receção ao livro, vamos ver exatamente até que ponto as coisas mudaram, se o mainstream o aceita e assim por diante’, disseram-me. Nos primeiros dias após a publicação do livro, senti como se fosse uma afirmação positiva dessa previsão”, admite. “Mas depois aconteceu o 7 de outubro e pensei que foi um desastre para todos: para os israelitas, para a população de Gaza. Mas também pensei que era um desastre para o meu livro”, completa, num riso tímido.
Apesar desta obra chegar numa fase mais pertinente que nunca, vivemos tempos de elevada polarização. “Tive vários eventos cancelados. Os anúncios que estavam a passar na rádio foram retirados”, afirma. Se em alguns casos foi por pressão de grupo pró-Israel ou até de políticos, noutros a justificação foi menos clara. “Foram organizações que estavam entusiasmadas com a realização do evento. Mas depois ficaram assustadas e disseram ‘agora não é a altura certa’. Ora, eles sabem que eu vivo em Jerusalém, sabem que estou cá apenas um mês e não me vão trazer de avião apenas para um evento como este. De qualquer forma, os cancelamentos aconteceram por muitas razões diferentes, mas a principal é que existe um verdadeiro clima de medo”, afirmou no auditório da FLAD.
Thrall está habituado a ser alvo de pressões, apesar de garantir nunca ter cedido a nenhuma. “Escrever sobre este lugar significa, em parte, viver sob um conjunto constante de ataques e litígios quanto a cada palavra que se escreve. Que adjetivo se usa, que fonte, porque se escolheu esta fonte e não aquela? Há toda uma indústria de grupos cuja única missão é obter correcções dos principais jornais e revistas quanto a histórias relacionadas com Israel, grupos pró-Israel que tudo o que fazem é queixar-se ao ‘New York Times’ sobre um artigo de opinião ou um artigo que publicaram e pedir uma correção factual, não porque se preocupem apenas com os factos, mas porque sabem que, se o apresentarem como uma correção factual, os editores têm de responder. Têm essa obrigação profissional. Por isso, quando os editores me encomendavam artigos, diziam-me: ‘isto vai ocupar semanas da minha vida depois de ser publicado, porque vou ter de estar a litigar todas estas queixas’. É uma enorme dor de cabeça. E, como em muitos aspectos deste conflito, há um enorme desequilíbrio de poder. Não há essa indústria para os palestinianos. Não há esta inundação de pedidos de correção de factos”, aponta.
O período que vivemos, porém, agudizou esta situação. “Toda a polarização que se verificou desde o 7 de outubro foi muito boa para aqueles que estão a tentar impedir qualquer crítica séria a Israel”, afirma, para depois explicar: “É preciso que se compreenda que isto não é novo, trata-se de um esforço muito antigo, de muitos anos de trabalho, para fazer avançar a noção de que dizer que este sistema de subjugação étnica é racista é algo anti-semita — e isso acontece devido à definição dominante de anti-semitismo criada pela IHRA, a Aliança Internacional para a Memória do Holocausto”, denuncia.
“Durante anos, Israel e os seus aliados têm vindo a promover esta definição, a fim de contrariar a narrativa de que o que está a fazer é praticar uma forma de Apartheid. Mas todos os principais grupos de direitos humanos do mundo estão agora a chegar a esta conclusão: O principal grupo israelita de defesa dos direitos humanos, o B'Tselem; outro grupo israelita de defesa dos direitos humanos, o Yesh Din; uma coligação de outras organizações da sociedade civil israelita; as principais organizações palestinianas de defesa dos direitos humanos; a Human Rights Watch, a Amnistia Internacional, o Relator Especial da ONU — todos eles fizeram estudos jurídicos intensivos sobre a questão e concluíram que Israel está a praticar Apartheid”, aponta.
De volta ao auditório da FLAD, Thrall lamentou que as pessoas tenham “medo de ter várias verdades na cabeça ao mesmo tempo”. “Eu disse, depois do 7 de outubro, que o Hamas tinha cometido crimes de guerra e que Israel, ao castigar coletivamente dois milhões de pessoas inocentes em Gaza, estava também cometer crimes de guerra, mas não se tem muita companhia quando se está a dizer isso”, apontou.
Há, a seu ver, duas tendências antagónicas a decorrer de momento. “Por um lado, tenho a minha experiência pessoal com todos estes cancelamentos e a constatação de que os gatekeepers dos diferentes meios de comunicação social têm muito medo de tocar no conflito de determinadas formas e de abordar o meu livro de certa forma”, afirmou. Mas, por outro, “assiste-se às maiores manifestações de solidariedade para com os palestinianos que alguma vez se viram no mundo. E nos campus universitários dos Estados Unidos, quando fui lá falar, os jovens disseram-me que sentem que nunca houve tanto apoio aos direitos dos palestinianos”, contrapõe. Por essa razão, Thrall conclui haver “”um enorme fosso geracional”, não sendo para si “muito claro qual será o efeito a longo prazo e duradouro de tudo isto”.
Um ponto de não retorno
Só há uma certeza para Thrall: depois do 7 de outubro, nada será como antes. Até agora, entre conceder direitos iguais aos palestinianos ou criar um Estado palestiniano na Cisjordânia e em Gaza, Israel recorreu a uma terceira opção. “Não escolho nenhuma das duas, vou lentamente absorver cada vez mais a Cisjordânia, vocês vão-se cansar de dar-me na cabeça e eu vou ter sucesso porque me preocupo mais com isto do que vocês", teoriza o jornalista. Só que o ataque do Hamas expôs fragilidades como nunca e “esse modelo está agora a enfrentar o seu maior desafio porque, pela primeira vez, o público israelita sente que há um preço muito elevado a pagar por esta política”, disse ao SAPO24.
Em 2017, Thrall publicou o seu primeiro livro, “The Only Language They Understand” [“A Única Linguagem Que Conhecem”], cuja tese era de que essa linguagem, a violência, foi a única que historicamente fez ambos os lados avançar ou recuar nas suas exigências. O 7 de outubro veio dar-lhe uma certa razão, como agora constata.
“Talvez seja chocante ouvir isto, mas digo-o porque senti que grande parte do meu desespero em relação ao futuro deste lugar se baseava no facto de haver uma enorme discrepância de poder entre os dois lados. O mais poderoso estava sentado muito confortavelmente, não tinha qualquer incentivo para mudar, para alterar o sistema que estava a funcionar muito bem para si. Sim, havia algumas reações do mundo exterior, mas, basicamente, não eram obstrutivas. Depois do 7 de outubro, já não me parece que seja esse o caso. Agora, ninguém sente ‘estar sentado confortavelmente’. Os israelitas vão ter de pensar noutra forma de lidar com a questão palestiniana. Pode não ser dar-lhes um Estado independente, pode não ser dar-lhes direitos iguais, mas vão ter de encontrar outra solução. De certa forma, sinto que agora há mais hipóteses de ver uma mudança positiva durante a minha vida do que antes de 7 de outubro”, admite.
Até lá, porém, subsistem várias incógnitas. Thrall não se arrisca a prever quando é que chegará um cessar-fogo nem qual será o panorama aí. O jornalista, todavia, acredita que Benjamin Netanyahu não sobreviverá politicamente à falha de segurança que possibilitou o ataque do Hamas e que qualquer negociação quanto à existência de dois estados terá de passar pelos partidos do centro-esquerda, já que a direita israelita no poder não está sequer disposta a ouvir o lado palestiniano por razões ideológicas. “Isso teria de ser feito falando diretamente com os líderes desses partidos de centro-esquerda e obtendo a sua aquiescência antecipada, e também falando diretamente com o público israelita e persuadindo-o de que esta é realmente a única forma de ter a certeza de que o dia 7 de outubro é muito, muito menos provável de acontecer.” Já do outro lado, “existe o entendimento de que, apesar de existirem muitas opiniões diferentes sobre o resultado a alcançar, a existência de dois Estados nas fronteiras de 67 é um consenso nacional. É o ponto de partida com o qual todos concordaram, incluindo o Hamas, incluindo a OLP”. Mas “não há garantias de nada”, sublinha.
Contando voltar para Jerusalém dentro de algumas semanas, Thrall está preocupado com o estado de coisas dos dois lados do muro. Do lado de lá, o jornalista diz que o clima é idêntico ao da Segunda Intifada, com um aumento da violência na Cisjordânia. Aliás, em resposta a uma pergunta da tradutora do livro em Portugal, Sara Veiga, o autor revelou que Abed foi mandado parar pela polícia enquanto conduzia um taxi e que, ao parar à entrada do colonato de Ofra, foi ameaçado de morte pelo guarda deste espaço.
Por outro lado, preocupa-lhe o bem estar da sua família e o que se seguirá se o conflito continuar. “Penso na quantidade de tristeza, raiva e racismo que paira no ar e em como posso proteger as minhas três filhas disso o melhor que posso. Preocupa-me criá-las nesse ambiente, mas essa é a casa delas, nasceram e cresceram lá. Penso realmente no que significa para elas viverem agora neste ambiente em que vão estar expostas a muito ódio e a muitos estereótipos e a muitas narrativas falsas e muito unilaterais. Como é que as protejo disso sem impor-lhes os meus próprios pontos de vista, a minha própria doutrina”, confessa.
No entanto, há uma réstia de esperança que permanece, nem que seja a proporcionada pelos seus vizinhos. Quando questionado pelo SAPO24 quanto à facilidade com que Abed Salama lhe abriu a porta de casa, Nathan Thrall disse ser “constantemente surpreendido pela quão incrivelmente acolhedores e benévolos os palestinianos são, mesmo em relação aos judeus israelitas que serviram no exército e que vão ter com eles”. “É espantoso o grau de bondade e abertura que os palestinianos demonstram para com os seus opressores”.
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