Começa-se por aqui porque “A Mulher Que Há Em Mim”, autobiografia editada este mês pela cantora, nunca teria chegado às bancas sem o fim dessa tutoria. E, se tivesse, nunca conteria as críticas que Britney faz da família, na esmagadora maioria das vezes descrita como disfuncional, paranóica, quando não parasita – dado que era o dinheiro de Britney que alimentava os pais e os irmãos.

"A mulher que há em mim". Justin Timberlake e Madonna nas memórias de Britney Spears
"A mulher que há em mim". Justin Timberlake e Madonna nas memórias de Britney Spears
Ver artigo

O hipotético barco não aparece no livro, mas o retrato de Jamie como alguém que se aproveitou da fama da filha está lá. Mesmo que, nos capítulos iniciais, Britney tente justificar as atitudes do pai com o facto de, também ele, ter tido uma infância marcada pelos maus tratos do seu próprio pai, que resultaram em alcoolismo na idade adulta. “A parte mais triste era que tudo o que sempre quis foi um pai que me amasse como eu era, alguém que me dissesse 'Amo-te e pronto'”, escreve, com uma certa candura infantil.

A verdade é que a Britney Spears nunca lhe foi permitido ser adulta. Mesmo agora, que se encontra livre da tutoria, que pode gerir a sua carreira, as suas finanças e as relações amorosas como bem entender, a cantora continua a ser alvo de críticas: seja por publicar no Instagram fotografias e vídeos em que aparece seminua, seja por ter revelado ao mundo que Justin Timberlake a forçou a ter um aborto, quando ainda namoravam (já lá vamos). Tal como acontecia com Amy Winehouse, que também teve de lidar com um pai demasiado presente na sua carreira e pouco presente na sua vida, tudo o que Britney faça é imediatamente dissecado por uma máquina mediática que adora as suas estrelas pop mas ama de facto destruí-las em pedaços. Mas, ao contrário de Amy, Britney ainda viveu para contar a sua história.

Um diário de bordo

Ponto prévio: “A Mulher Que Há Em Mim” não é um bom livro. Aliás, lê-se tão rapidamente que poder-se-á julgar estar na presença de um diário excessivamente resumido, e não de uma autobiografia digna desse nome. O estilo de escrita da cantora não é, claro, literário (e isso não quer dizer, claro, que ela seja pouco inteligente), mas é demasiado básico: uma historieta aqui, uma alfinetadazinha ali, e chegamos ao final dos 49 capítulos num ápice. A música fica para segundo plano, o que numa autobiografia de uma artista pop é inadmissível. Há referências a '...Baby One More Time', a “Blackout” – que considera ser o seu melhor álbum –, à canção que lançou com Elton John, em 2022. E pouco mais. Para alguém que criou nome através da música, e sobretudo para os fãs que adoram a sua música, é pobre.

Mas “A Mulher Que Há Em Mim” também não pretende, e possivelmente nunca pretendeu, ser um Nobel da Literatura ou um compêndio enciclopédico da vida e obra de Britney Spears. Age sobretudo como uma espécie de diário ou de ritual, que Britney planejou para se livrar de toda a bagagem emocional que lhe pesou ao longo dos últimos anos. Estes são os seus pensamentos; há que colocá-los no mundo para se poder despedir deles. Daí que, antes do lançamento do livro, tenham sido noticiadas por vários meios de comunicação todas as revelações gigantes ali contidas, e depois do seu lançamento nada mais se tenha visto. Porque, dito de forma direta: não há mais.

As que há, porém, são bombásticas. Sobretudo porque há muito que se desejava saber mais acerca de uma das relações amorosas que mais marcou a cultura pop do início do milénio, aquela que existiu entre Britney Spears e Justin Timberlake. Os dois conheceram-se quando fizeram parte do “Mickey Mouse Club”, programa de televisão que deu a conhecer muitos outros talentos (Ryan Gosling e Christina Aguilera, por exemplo). “Quando estávamos nas proximidades um do outro, éramos como ímanes”, escreve. Foi sol de pouca dura. Timberlake, ainda membros dos N'SYNC, acabaria a traí-la (e ela, mais tarde, fez o mesmo), e uma gravidez por ele indesejada acabou com o término da mesma. “Disse que não estávamos preparados para ter um bebé nas nossas vidas, que éramos demasiado novos. Se ele não queria ser pai, achei que não tinha grande escolha”.

O aborto acabou por ser feito, não numa clínica, mas em casa, com a ajuda de Timberlake e Felicia, sua antiga assistente – e terminou num momento que alguns fãs já compararam ao Ken de “Barbie”, personagem habilmente interpretada pelo ex-colega Ryan Gosling. “Foi uma das coisas mais dolorosas por que passei na vida. Mesmo assim, eles não me levaram para o hospital. O Justin entrou na casa de banho e deitou-se no chão ao meu lado. A certa altura, ele pensou que talvez a música ajudasse, e foi buscar a guitarra e ficou ali ao meu lado, a tocar”.

Timberlake sai bastante maltratado de “A Mulher Que Há Em Mim”, ao ponto de já ter sido inundado (assim como a sua esposa, Jessica Biel) por comentários de fãs irados, nas redes sociais. Críticas que acabam por constituir algo de kármico; a carreira a solo de Justin Timberlake começou com 'Cry Me A River', canção sobre o fim da relação com Britney, em que esta era apontada como a má da fita por o ter traído. “Nas notícias eu era descrita como uma vadia que tinha despedaçado o coração do menino de ouro da América. A verdade era que eu estava meio morta no Luisiana, e ele andava todo feliz a passear-se por Hollywood”, desabafa.

Malfadados casamentos

Se Timberlake fica mal fotografia, pior fica Kevin Federline, com quem casou e de quem teve dois filhos. Não que a fama deste seu ex-dançarino seja melhor; já à altura, Federline era visto como alguém que se aproveitou da fama de Britney para criar a sua. O seu álbum, “Playing With Fire”, lançado em 2006, ainda hoje é encarado como um dos piores da história da música gravada; o seu apelido foi imortalizado pela série de animação “The Cleveland Show”, que o deu a uma personagem que encarnava o tipo de pessoas caucasianas (demasiado) fascinadas pela cultura negra.

De início, tudo pareceu um conto de fadas. “Era assim que ele era para mim: firme, forte, reconfortante”, escreve. “Não tinha que ver com desejo. Era uma coisa íntima. Ele abraçava-me durante tanto tempo quanto eu quisesse”. O sonho terminou rapidamente, assim que Federline decidiu começar a trabalhar no seu disco, ignorando-a por completo e ao filho recém-nascido. “Voei para Nova Iorque para o ver. Quando cheguei, instalei-me num hotel excelente, excitada por ir ver o meu marido. Mas ele não quis ver-me. Parecia que queria fingir que eu não existia (…) O Kevin estava completamente extasiado com a fama e o poder”.

As revelações de Britney pesam mais porque, pouco tempo depois, Kevin Federline haveria de vencer a batalha judicial pela custódia dos dois filhos, argumentando que a cantora se encontrava inapta para cuidar de uma criança. “Tentou convencer toda a gente de que eu estava completamente descontrolada. Começou a dizer que eu nunca mais devia ver os meus filhos – de todo”, lamenta. O juiz deu razão a Federline, que, garante Britney, passou boa parte do seu tempo em estúdio a fumar substâncias psicotrópicas.

Numa das noites em que Britney insistiu para ver os filhos, então com 17 e 5 meses, respetivamente, deu-se o incidente que marcaria para sempre a vida e a carreira da cantora – e que, e não poderá existir nisso qualquer dúvida tendo em conta o mediatismo da coisa, mais pesou na decisão dos tribunais em darem a custódia das crianças a Federline e a tutoria da carreira de Britney ao seu pai. “Fui a um cabeleireiro, peguei na máquina e rapei o cabelo”, escreve de forma direta, justificando-se com o facto de querer dar “algum material” aos paparazzi que insistentemente a importunavam. As críticas, claro, foram avassaladoras. “Ninguém percebia que eu estava pura e simplesmente fora de mim com o desgosto”, lamenta. “Os meus filhos tinham-me sido tirados”. O ato de rebeldia acabaria por lhe trazer mais dissabores que paz interior.

Livre, leve, solta

“A Mulher Que Há Em Mim” acaba por ser o título certo: é a revolta final de Britney contra uma indústria, e uma sociedade, que quiseram sempre vê-la como menina bonita e virginal, e não como uma mulher adulta e responsável por si própria. Aquando do lançamento de '...Baby One More Time', Britney escreve que “cada vez mais homens, e mais velhos, iam assistir ao espetáculo e, às vezes, passava-me por vê-los a deitarem-me olhares lascivos, como se eu fosse uma espécie de fantasia de Lolita para eles”. Mas Lolita cresce, e foge de Humbert Humbert. Britney não teve essa possibilidade: antes da tutoria, foi forçada a frequentar clínicas de reabilitação; teve a sua própria mãe a criticá-la e a expor a sua vida, em talk shows vários, promovendo o seu próprio livro; era obrigada a pagar uma pensão de alimentos a Kevin Federline, mesmo sem poder ver os filhos como queria.

Entra também em cena o habitual boys will be boys, com que se justificam todas as loucuras das grandes estrelas rock e pop – masculinas, claro, diferenças de tratamento a que a própria alude em “A Mulher Que Há Em Mim”. “Eu tinha crescido debaixo de constante escrutínio. As pessoas miravam-me de alto a baixo e diziam-me o que achavam do meu corpo desde que eu era adolescente”, desabafa. “Rapar a cabeça e exagerar eram a minha maneira de ripostar. Mas a tutela obrigou-me a perceber que esse tempo tinha acabado”.

O período em que esteve sobre tutela, e sobre o qual já muito se escreveu – para além de não poder gerir as suas próprias finanças, era obrigada a fazer tudo aquilo que o pai pretendesse, como entrar em episódios de “Foi Assim Que Aconteceu” ou iniciar uma residência artística em Las Vegas, como ser obrigada a manter sempre um DIU ou frequentar uma instituição de tratamento para a saúde mental –, ocupa boa parte do livro, assim como uma referência particular: Deus. Em “A Mulher Que Há Em Mim”, Britney (até por ter crescido no Luisiana, estado do sul profundo dos EUA, onde mais de metade da população residente é protestante), faz constantes referências ao divino, como que lhe agradecendo o ter sobrevivido.”Algum ser superior devia estar a ajudar-me a atravessar aquele período, porque era demais para eu aguentar sozinha”, comenta.

Se há Deus, também há os fãs, que criaram o movimento #FreeBritney e, em última análise, contribuíram para o fim da tutoria. “É uma dívida que nunca poderei pagar”, escreve, dedicando o livro aos fãs e deixando-lhes um agradecimento final. Foram eles que a ajudaram a ser mulher; doravante, serão eles que também a ajudarão a ser livre. Se a mulher que há nela “foi calcada durante muito tempo”, esta autobiografia é Britney Spears a reerguer-se, não como artista pop, mas como ser humano. Até porque o que se depreende é que essa vida de estrela não terá segundo capítulo (ao contrário deste mesmo livro, que deverá ter sequela em 2024, e que já se encontra desatualizado, dado referir o “marido” Sam Asghari, de quem se divorciou ainda antes da edição): “Já aceitei que é assim e está tudo bem”. Britney Spears está salva. É altura de, e citando Chris Crocker, fã de Britney que se tornou viral em 2007, a deixarmos em paz.