“Têm medo, perderam os pais lá, alguns perderam os seus entes queridos. A maioria são mesmo órfãos, os pais foram decapitados lá, em Mocímboa da Praia”, começa por contar à Lusa Consolata Lucas, professora de 28 anos.

Naquele centro de acolhimento de deslocados, que desde 2021 recebe a Escola Primária de Marocane, no distrito de Ancuabe, aquela professora, com a sua bata branca no meio de uma sala de aula improvisada numa tenda, tem todas as manhãs 72 alunos da primeira classe, de diferentes idades e de vários distritos de Cabo Delgado.

Todos fugiram dos locais de origem e tentam agora aprender a ler e a escrever, alguns em tendas, designadas pelas organizações humanitárias como Espaço Temporário de Aprendizagem (TLS), trespassadas pelo vento e pelo calor que as deixam abertas. Outras salas têm condições ligeiramente melhores, erguidas com madeira e adobe nas paredes, todas com um pequeno quadro, mas igualmente descobertas.

“Motivamos os alunos para que eles possam esquecer aquilo que viveram. Criámos mecanismos ou uma forma de poder concentrar os alunos na aula. Jogámos, cantámos, dançámos. Essa é uma forma de poder ajudar a criança a enquadrar-se na aula. Quando a gente canta e dança a criança consegue mesmo esquecer aquilo que viveu”, explica, antes de os chamar para mais um desses momentos.

Consolata é professora desde 2021, precisamente quando estes deslocados começaram a chegar ao seu distrito, Ancuambe, e nunca pensou dar aulas nestas condições e a estes alunos: “Eu não imaginava mesmo, mas é a nossa realidade. É a nossa realidade”.

Um pequeno quadro preto, partido, e que serve para mais de 70 alunos em cada um dos dois períodos de aulas do dia, como acontece com as outras salas, é uma das dificuldades, precisamente em classes que estão a aprender a ler e a escrever.

“Precisam de quadros visíveis, para conseguirem ver e copiar o que escrevemos”, atira, alargando o rol das queixas à falta de manuais, cadernos ou uniformes, mas não só.

“Assim não dá. Estamos no tempo do frio, as crianças passam frio”, desabafa.

Cabo Delgado contava em 2021 com cerca de 96.000 alunos deslocados, número que caiu em 2023 com 40.000. Isto porque mais de 188.000 famílias estavam deslocadas em Cabo Delgado, em fuga à violência armada no norte de Moçambique — que provocou mais de 4.000 mortos nos últimos seis anos –, totalizando mais de 773 mil pessoas.

Naquele centro, supostamente temporário, numa outra tenda, Somar João Varrossa, 32 anos, tem 85 alunos da segunda classe a seu cargo, todos com uma história de fuga e drama para contar, disfarçada pelas brincadeiras habituais em grupo.

“Têm medo. Um pequeno ruído constitui algo de ameaça (…) Tem um número maior de crianças que perderam os seus pais. Órfãos de pai e mãe ou só de uma parte”, conta.

Professor há sete anos, está em Marocane há mais de dois anos, na escola improvisada neste centro de deslocados onde centenas de famílias vivem em palhotas ou outras construções em madeira e adobe.

Somar reconhece as difíceis condições em que estas crianças tentam aprender.

“Criamos canções para ver se eles esquecem o que passaram, tentar disfarçar a memória deles cantando, fazendo pequenos jogos. Futebol e também jogos tradicionais a nível local (…) Ajuda um pouco, faz esquecer o que viveram”, garante.

Somar João Varrossa foi, de resto, o primeiro professor em Marocane, aonde chegou em 2021: “A escola iniciou connosco”.

“Outras escolas têm salas dignas, nós ainda não temos”, diz ainda.

Hoje são 1.010 crianças que estes 15 professores vão matricular porta a parta, no centro, apesar de nestas salas pouco haver para oferecer.

“As condições são precárias, assim como hoje está a fazer muita ventania, o trabalho não anima, assim como a criança não recebe de forma digna as aulas”, diz.

Ainda assim, a oferta do lanche escolar, quente, em cada turno, ajuda a travar as faltas dos alunos: “Por causa disso as crianças aparecem na escola, porque come-se algo”.

Num dia em que em as crianças do centro de acolhimento receberam material escolar doado pelo banco Millennium BIM em conjunto com a organização não-governamental portuguesa Helpo, Gonçalves Negungoa, de 39 anos, tenta captar a atenção para a leitura e escrita da letra m, por entre o vento forte que se faz sentir noutras das tendas e que constantemente faz cair o que resta do quadro.

Ainda assim garante: “os meninos estão a entender”.

Professor há 15 anos, tem 60 alunos na primeira classe no turno da manhã e está naquela escola desde 2021. Além de professor é ele próprio um deslocado, desde que fugiu de Macomia, outro distrito de Cabo Delgado fustigado pelos ataques terroristas.

O regresso ao que foi a sua casa, de onde partiu em fuga a pé com a mulher e seis filhos, está fora de questão: “Nunca mais voltei. Vou ficar definitivo aqui”.

No centro de Marocane viu nascer, entretanto, o sétimo filho, mas ainda hoje não esquece o momento da partida.

“Fugimos pela noite, andámos pela mata uma semana”, conta.

Sobre os alunos, a generalidade com pouca roupa e manuais quase ilegíveis e rasgados, sem lápis ou canetas, reconhece que a falta de uniformes é apenas uma das muitas dificuldades diárias.

“Alguns perderam os seus bens”, explica, enquanto o quadro volta a cair, logo levantado, entre brincadeira, pelas crianças.

“Eles precisam de mais cadernos, livros e alguns materiais escolares”, para não falar, claro está, de um novo quadro.

Contudo, o professor e deslocado Gonçalves Negungoa sabe facilmente identificar a maior necessidade para estas crianças.

“É a paz”, conclui.