Acompanhou o ex-presidente do Brasil, e quem sabe futuro também,  ao longo de dez anos, incluindo na prisão, em Curitiba, e escreveu "Lula", a biografia de Luiz Inácio da Silva, volume 1, lançada no Brasil no ano passado e em Portugal há poucas semanas.

Mas muito ficou por contar, o segundo volume deverá estar pronto no primeiro semestre de 2023, e um dos capítulos mais importantes está a ser vivido agora, com as eleições no Brasil: Bolsonaro vs. Lula.

Fernando Morais, nascido em Mariana, Minas Gerais, é jornalista, trabalhou no Jornal da Tarde, na revista Veja e em várias publicações da imprensa brasileira. Recebeu quatro vezes o prémio Abril de jornalismo.

Foi deputado (1979-1987) e secretário da Cultura (1988-1991) e da Educação (1991-1993) do Estado de São Paulo. É autor de "A Ilha", "Cem Quilos de Ouro", "Os Últimos Soldados da Guerra Fria" ou "Corações Sujos", todos publicados pela Companhia das Letras.

Agora, dedica "Lula" às mulheres da sua vida, incluindo duas netas, uma delas, Clarisse, de 20 anos, que está a estudar Física em Portugal, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto. Diz que se Bolsonaro ganhar terá de fazer as malas, como tantos amigos, e viajar para cá. Mas não é isso que quer.

Prefere que ganhe Lula, mesmo não sendo ele, garante, do PT (Partido dos Trabalhadores). Tem 76 anos, a mesma idade que o seu biografado, e fez uma aposta com o barbeiro: se Lula não ganhar na primeira volta, corta a barba que mantém desde os 16 anos. 

O que pretende este livro e qual a sua história?

A história deste livro é antiga. Na verdade, desde que Lula foi eleito a primeira vez, há vinte anos, eu tinha planos para fazer a sua biografia. Tinha uma relação com ele já do tempo das greves, no final dos anos 70. Quando ele foi eleito pelo PT - eu nunca fui do PT, era contra, achava que o partido ia romper a frente democrática do MPD contra a ditadura (não foi assim, a história acabou a provar que Lula estava certo e eu errado) - propus-lhe fazer um livro durante o seu mandato, uma coisa inspirada no Arthur Schlesinger, que escreveu um livro muito bom, sobretudo para nós jornalistas, "Mil Dias John F. Kennedy na Casa Branca". Mas Lula não topou. Quando ele foi reeleito, voltei a falar com ele, e de novo ele disse "não quero". Pronto, esqueci o Lula.

Esqueceu como, se o livro está aí?

Meses depois de ele ter passado o governo para a Dilma Rousseff, procurou-me e disse: "Estou pensando que talvez valha a pena, vamos conversar". E acabámos por nos entender, ele, eu e o editor, sobre fazer um livro, que não seria uma biografia convencional, mas que trataria do período que vai da sua prisão - a primeira prisão, em 1980, a que eu assisti, estava lá -, até ao fim da presidência. O livro chegaria ao fim na hora em que ele pusesse a faixa no ombro da Dilma. Estávamos todos de acordo.

"Lula não metia o nariz no livro (...) Mandei entregar-lhe o primeiro exemplar que saiu, ia ele para a Alemanha, para se encontrar com Merkel, ainda. Leu o livro no avião, não pediu para colocar nada nem para tirar nada"

Mas não foi isso que aconteceu.

Acontece que em 2011 eu grudei nele e não o larguei até ontem [véspera da nossa conversa, há exatamente uma semana], estive com ele no comité de campanha. Essa proximidade minha com ele acabou por me dar o privilégio casual de ir acompanhando a crise brasileira pelos olhos do Lula, ao lado dele. Ou seja, tudo o que ele fez para tentar impedir a derrubada da Dilma, com quem ele falou e não falou, as iniciativas que tomou. Na verdade, o objetivo não era a Dilma, o alvo era ele, porque não queriam que Lula voltasse à Presidência da República.

"Não queriam" quem e porquê?

Por um preconceito que os brasileiros, sobretudo de São Paulo, têm contra os nordestinos, um preconceito de natureza cultural, acham que é uma gente que serve para ser pedreiro, para mão-de-obra barata. Para essas pessoas, era uma afronta ter como presidente da República um sujeito que foi analfabeto até aos 14 anos, que não tem um dedo - perdeu um dedo numa máquina, numa fábrica -, e que era um nordestino típico, veio de camião do interior de Pernambuco até São Paulo e viveu experiências dramáticas, 27 pessoas, família mais aparentados, a viver num imóvel de um dormitório.

Mas, se fosse assim, não teria sido eleito presidente do Brasil. E foi. O que o derrubou foi o preconceito ou a corrupção de que foi acusado?

Não, não. Isto foi montado, estou convencido disso. Ministério Público, Polícia Federal, parte do judiciário e toda a imprensa que importa no Brasil. No final do livro publico um apêndice - a editora contratou uma empresa especialista no Rio de Janeiro para analisar o comportamento dos grandes meios de comunicação brasileiros, que estão nas mãos de cinco famílias, ao longo de todo este processo. E é de arrepiar os cabelos, parece que estamos no país mais medieval de todos os tempos. Quando percebi que iam avançar contra Lula e iam acabar por levá-lo para a prisão (a única maneira de o impedir de disputar a presidência), procurei o editor e o próprio Lula: "Quero mudar o formato do livro", disse. Assisti a tanta coisa neste período que antecedeu a prisão e durante a prisão que não podia de maneira alguma deixar de revelar isso. É uma coisa de jornalista, de repórter; se publicasse um livro sobre Lula e não contasse as coisas que descobri nesse período, seria apedrejado na rua.

Foi isso que o levou a mudar o formato do livro?

Uma curiosidade: há uma semana, quando morreu o [Jean-Luc] Godard, vi na cobertura de um jornal uma frase dele, a propósito de um crítico ter sido muito duro quando exibiu "Pierrot le Fou" e ter dito que era um filme sem pés nem cabeça. E ele respondeu da seguinte maneira: "Toda a história, para ser boa, tem e ter começo, meio e fim. Não obrigatoriamente por esta ordem". Achei que seria interessante fazer o livro a começar no momento atual e depois um flashback para a prisão dele, em 1980. E tive a anuência do editor, porque o Lula não metia o nariz no livro - não leu um parágrafo, uma linha. Mandei entregar-lhe o primeiro exemplar que saiu, ia ele para a Alemanha, para se encontrar com Merkel, ainda. Leu o livro no avião, não pediu para colocar nada nem para tirar nada. Mas achei que a opção por este formato seria mais jornalística, mais sedutora.

Fernando Morais, biógrafo de Lula. montagem com frames da entrevista a Isabel Tavares, do SAPO24
Fernando Morais, jornalista e escritor, em conversa com o SAPO24, a partir da sua casa em São Paulo, Brasil | MadreMedia

Quanto tempo conversou com Lula para escrever o livro?

Dez anos. Comecei em junho de 2011, mas três meses depois foi-lhe diagnosticado um tumor na garganta, teve de ficar seis meses praticamente sem falar, e os médicos disseram que ficar o dia inteiro a falar para um gravador estava fora de questão. Fui obrigado a esperar até julho do ano seguinte, quando readquiriu a voz. Fora esse pequeno hiato, fiquei grudado nele - acho que fui a 18 países com ele. Descobri que era bom viajar com Lula, porque em avião não tem secretária, não tem deputado, não tem senador, não tem puxa-saco [bajulador]. E como ele não dorme no voo - e, por exemplo, uma viagem de São Paulo a Nova Deli são 23 horas, com uma escala em Luanda para reabastecer - eram 23 horas de gravação na ida e 23 horas e gravação na volta. Fui a quatro continentes com ele e ficava junto o tempo todo, desde a hora em que ele acordava e mandava alguém chamar-me ao meu quarto de hotel, para já começar a tomar o café da manhã com ele - vinha bisbilhotar os meus remédios, contra a pressão [tensão] alta, e tal, e perguntava : "O que é que você está tomando? Não toma não, isso é veneno".

Por momentos pensei que trocassem comprimidos...

É, também podíamos dividir. 

Tem uma história memorável com Lula que possa contar?

São tantas, não saberia dizer uma. Certamente seria injusto com uma coisa saborosa que tenha visto. E foi uma coisa que me deixou com um conflito ético muito grande, ele não tem papas na língua - e fala muito. E eu ali ao lado, às vezes era obrigado a dizer: "Presidente, o senhor esqueceu que estou a escrever um livro a seu respeito? O senhor acabou de falar um negócio que não sei como vou tratar no livro". E ele, com aquele vozeirão, diz: [imita Lula a falar] "Você cuida do seu livro e eu cuido da minha vida".

"Mesmo pessoas que tinham absoluta confiança na lisura dele, na honestidade dele, começaram a duvidar. Não era possível, estava toda a noite no Jornal Nacional, que fala para 100 milhões de pessoas, todos os dias, às 20:30"

Este é o primeiro volume da biografia de Lula. Quando espera publicar o segundo volume?

Já estou a trabalhar no volume 2, e vou vir de trás para a frente: vou contar as três derrotas de Lula para a presidência, os dois governos da presidência dele, com todas as virtudes e todas as misérias ao longo desses oito anos, o governo da Dilma e o golpe e a prisão do Lula, que acompanhei de perto. Será publicado depois das eleições, provavelmente em meados do primeiro semestre de 2023. Se pudesse ver, estou rodeado de pilhas de papéis. 

Como foi durante o tempo em que Lula esteve preso?

Eu ia a Curitiba com muita frequência para o entrevistar na cela, às vezes com muita dificuldade: a Justiça autorizava e depois obstruía, obrigava-me a pagar uma viagem de avião até Curitiba, a dormir lá uma noite, porque as visitas eram de manhã, e à hora aparecia a Polícia Federal a dizer: "Temos aqui uma ordem da juíza a dizer que o senhor está impedido de entrar. É jornalista e jornalista não pode. Por isso, com muita dificuldade, acompanhei a prisão dele. E a paixão dele - o que é curioso, ele conhece a atual esposa num campo de futebol, numa partida de futebol, a equipa do Chico Buarque contra a equipa do Movimento dos Sem Terra. E o Lula, que é um apaixonado por futebol, foi convidado para jogar, e foi lá que conheceu a moça que tinha passado 580 dias na vigília, à porta da cela, em Curitiba. E acabou a casar com ela.

Voltando um pouco atrás, acredita, então, na inocência de Lula. Foi tudo uma armação, uma cabala orquestrada pela comunicação social?

Sugiro que dê uma passada no livro de trás para a frente. Que veja esse anexo, que não é feito por gente do PT, não é feito por gente de esquerda, mas por uma instituição académica do Rio de Janeiro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que faz o acompanhamento de media aqui e presta serviços a quem quiser, pode pedir-lhes uma análise sobre como a media brasileira tratou Portugal nos últimos anos. Se bater os olhos ali, vai ver o massacre contra Lula. Mesmo pessoas que tinham absoluta confiança na lisura dele, na honestidade dele, começaram a duvidar. Não era possível, estava toda a noite no Jornal Nacional, que fala para 100 milhões de pessoas, todos os dias, às 20:30.

Talvez por isso eu estivesse à espera que o livro desmontasse as acusações feitas a Lula. Mas isso não acontece. 

Isso acontecerá no volume 2. Inclusive com a utilização de documentos secretos que estou a conseguir a poder de sangue lá com os gringos. Mas sabe, chamaram-me a atenção para isto, Lula sempre teve a convicção da sua inocência e não aceitava a prisão domiciliária. "Não aceito. Entrei nesta cela, nesta cadeia, pela porta da frente e vou sair pela porta da frente. E sem tornozeleira [pulseira] no pé, porque sou inocente. O problema deixou de ser meu, o problema agora é da Justiça, é do Moro, é da procuradoria, porque vão ser obrigados a provar as acusações que me fizeram". Dizer que não houve corrupção na Petrobras? É uma ingenuidade. Havia corrupção e havia promiscuidade. Há funcionários envolvidos, um deles tinha 170 milhões de dólares depositados num banco na Europa. Mas já estava na Petrobras antes de o Lula ser presidente. Ou seja, já havia uma máquina de corrupção a funcionar a todo o vapor. A gente brinca e diz que "a Petrobras é um país amigo do Brasil", porque, como é uma empresa gigante, dirigi-la é como dirigir um país. 

Lula foi perseguido?

Tenho a convicção de que as minhas netas - tenho duas netas pequeninas, uma delas, aliás, está a estudar Física no Porto -, quando crescerem e olharem pelo espelho vão perguntar-se o seguinte: como é que o Brasil permitiu isto? Como é que o meu pai e o meu avô permitiram isto? Acho, pode parecer um certo cabotinismo, que o facto de vender tantos livros, mais de seis milhões em 35 países, se deve muito à honestidade com que escrevo. Estou com 76 anos, sou da idade do Lula, uma diferença pequena, sou jornalista há 60 anos, comecei muito precoce, quase adolescente, e estou cada dia mais convencido de que este foi um dos momentos mais tristes da história do Brasil. Guardadas as distâncias e as proporções, é uma coisa parecida com o que aconteceu em Itália, com a operação "Mani Pulite" ["Mãos Limpas", grande investigação judicial sobre casos de corrupção na década de 90, que ligavam o poder público em benefício particular e de partidos políticos], que deu no Berlusconi. Porque a sociedade foi instrumentalizada de tal maneira que generalizou as acusações: é governo, é ladrão. Aqui é parecido.

Falou em documentos secretos na posse dos americanos, que irá revelar no volume 2. Que documentos são esses?

Disponho de informações, informações brasileiras e informações estrangeiras, informações levantadas utilizando o FOIA nos arquivos norte-americanos. Acho que vou fazer um livro, o segundo volume, extremamente saboroso, ainda valendo-me do privilégio casual de ter acompanhado por dentro e de me ter aproximado do Lula. Por exemplo, para fazer essas pesquisas nos Estado Unidos, na CIA, no FBI, na Agência Nacional de Segurança, precisava de uma autorização do Lula, mas não podia entrar e sair da prisão com papéis. Então foi um sufoco, porque eram 17 procurações, são 17 agências.

Como fez para as conseguir?

No final consegui tirar por intermédio dos advogados e enviei para os Estados Unidos. Já sei os arquivos que têm registos de Lula e estou agora num braço-de-ferro com o governo americano - pela lei americana são abrigados a abrir esses arquivos para mim, não há nenhuma exceção de natureza legal. Então, é possível que eu tenha de entrar numa briga jurídica com o Departamento de Estado para exercer um direito que a lei americana me garante.

O que acha que eles têm a esconder?

A participação deles na chamada "Operação Lava Jato" é escandalosa. Escandalosa. Além das pregações pró-privatização feitas por diplomatas-coach há os contactos feitos à sorrelfa por ministros do governo Temer com autoridades do Departamento de Estado, não se deve esquecer que o autor do projecto de lei que entrega o Pré-Sal [reserva de petróleo e de gás natural abaixo de uma camada espessa de sal, no Rio de Janeiro, descoberta em 2006] é o chanceler de Temer, José Serra, senador do PSDB [Partido da Social Democracia Brasileira]. Repare, o que fizeram com o Lula é um negócio tão escandaloso, mas tão escandaloso... A justiça, o Supremo Tribunal Federal, que está longe de ser uma corte progressista, ao contrário, é uma corte de pessoas conservadoras, mesmo os que foram nomeados pela Dilma e pelo Lula acabaram por se revelar absolutamente conservadores, levaram a independência em relação ao presidente que as nomeou ao paroxismo, meteram-no na cadeia. E, no momento em que se deram conta, no momento em que o hacker invadiu as chamadas de telemóvel do juiz Moro e dos procuradores do Ministério Público, aquilo deixou claro para a Justiça algo que os advogados e Lula já tinham denunciado, mas a que ninguém dava muita credibilidade. Mas tem muita, muita coisa saborosa que vem de fora.

Ou seja, o interesse dos Estados Unidos é o Pré-Sal?

Não tem dois, não tem três: era o Pré-Sal. O Pré-Sal é uma mina de ouro. Para ter uma ideia, transformaria o Brasil na quarta maior potência petrolífera do mundo, iria fazer parte da OPEP [Organização dos Países Exportadores de Petróleo], certamente, e com uma vantagem: hoje o barril custa 100 dólares, aproximadamente. O Pré-sal é uma riqueza tão palpável que, mesmo que o preço do barril caia para sete dólares, a operação de extração do Pré-Sal é economicamente viável.

De quem são esses números?

De técnicos da Petrobras e da FUP – Frente Única de Petroleiros.

As reservas do Pré-Sal foram descobertas no tempo de Lula, a exploração começou a ser feita em 2010...

Então, era a chave do Brasil para o futuro, para um futuro das pessoas pobres. Mas o Brasil entrou de novo na linha da fome, de onde já tinha saído. E o projeto do Lula pretendia que entre 70% e 80% dos recursos que viessem do Pré-Sal fossem destinados à Educação. E era uma fortuna, um Pirenéu de dólares e de euros. Então era isso que eles queria, está comprovado - porque eles lá nos Estados Unidos levam algumas coisas, mas dão outras, é um jogo de cão e gato muito bem armado lá dentro. Por exemplo, tenho aqui na minha mão, posso mostrar a cópia, a data em que o senhor Sergio Moro foi visitar a CIA, quem estava com ele, quem o acompanhou, ou quando Bolsonaro visitou a CIA, quando visitou o FBI, com quem estava, quando os ministros do governo Temer foram fazer encontros nos Estados Unidos com a Exxon Mobil, com a Chevron...

Bolsonaro está no poder há quatro anos. A relação entre o Brasil e os EUA mudou assim tanto?

Bolsonaro só não entregou integralmente o Pré-Sal (e a Petrobras) às grandes petrolíferas internacionais porque Trump perdeu eleições e interrompeu o processo de entrega. Mas lembre-se: se o presidente Lula se eleger com maioria no Congresso, tudo isso pode ser legalmente tornado sem valor.

"Se o sujeito tem a perspetiva, a possibilidade, ainda que remota, de acabar com este cancro, porque isto é um cancro social, candidata-se"

Se Lula for eleito, qual o maior desafio que tem pela frente, qual o principal problema que vai ter de ultrapassar?

Fome e soberania. Matar a fome das pessoas, criar programas - podem até ser os mesmos atualizados -, e a questão do Pré-Sal - você teria de ter transformado a posse do Pré-Sal numa cláusula pétrea na Constituição, que não pode ser mexida. Hoje o Lula vai ter de brigar uma briga de faca para recuperar a fatia do Pré-Sal que o governo abriu para a exploração estrangeira.

Mas não basta ser eleito, como disse, tem de ter maioria no Congresso.

Estou a gravar apoios para candidatos a deputado federal do Brasil inteiro - gravei para a neta da Marinela, gravei para a neta do Luiz Carlos, gravei para dois amigos aqui de São Paulo, gravei para o médico que me socorreu quando tive Covid e quase morri (não porque ele me socorreu, porque ele foi um grande ministro da Saúde). Gravo estes vídeos curtinhos a dizer "olha, se eu fosse baiano, eu votaria na Marinela", porque, e digo sempre isto, não adianta o Lula ganhar na primeira volta com 75% dos votos se ele não tiver uma bancada que apoie o seu programa. Sem isso, se eu, Fernando Morais, morrer, ele não vai nem poder dar o meu nome a uma pracinha para homenagear a minha memória. Sem uma maioria no Congresso você não faz avançar o país, não muda os costumes. Não adianta fazer o Lula presidente da República e colocar no Senado a canalha, essa escória, que está lá até hoje.

O que leva um homem de 76 anos, muito em breve de 77, a candidatar-se à liderança de um país?

Se sair de minha casa à noite, aqui em São Paulo, e eu moro num bairro de classe média-alta, tenho como vizinho Fernando Henrique Cardoso, apanhar um táxi e andar cinco minutos, vai encontrar uma multidão de miseráveis a dormir na rua e a pedir comida. Se o sujeito tem a perspetiva, a possibilidade, ainda que remota, de acabar com este cancro, porque isto é um cancro social, candidata-se.

"Há uma parcela substantiva da população que acha que não tem nada a ver com isto, que fecha os olhos, que não se sente comprometida com a sorte dos que estão nas ruas"

Lembro-me de assistir a alguma degradação, exatamente em São Paulo, entre 2013 e 2018, por exemplo. Já vi mais pobreza nas ruas, mais criminalidade, mais polícia nas ruas. Bolsonaro ainda não tinha sido eleito.

Mas ele agravou a situação. Ele estabeleceu um tecto para gastos públicos para não ter défice fiscal, uma coisa anti-povo. Aqui, não sei porquê este ano o inverno chegou fora de horas e nas madrugadas faz quatro ou cinco graus, você vai para a porta da igreja da sé e tem vontade de fazer uma revolução. Você é jovem, mas se fosse velhinha, virava uma velhinha incendiária. Porque é muito difícil assistir a isto. E isto explica a tentação do Lula de querer ser presidente mais uma vez.

Em que é que Bolsonaro tornou o Brasil pior?

Em primeiro lugar cortou verba, recursos, de todas as áreas sociais. Para quê? Para pagar juros para o capital financeiro internacional. Ele não tem absolutamente nenhum compromisso com a sociedade mais pobre, como eu disse. 

Por que motivo recebeu tantos votos das classes mais baixas?

Por causa de um fenómeno chamado igrejas neopentecostais, igrejas evangélicas, que no Brasil viraram uma coisa inacreditável. São grandes bancos, porque recebem fortunas e não pagam imposto, por serem, entre aspas, uma igreja. E lá é uma picaretagem [vigarice] fora do comum. Os pastores das igrejas pentecostais pedem aos seus seguidores espalhados pelo Brasil, que são milhões, para votar no Bolsonaro. E, naturalmente, não se pode colocar a culpa só nas igrejas evangélicas. Só agora descobrimos isto, mas há uma parcela expressiva de gente profundamente conservadora, profundamente egoísta, entre as elites e entre parte da população média também. O egoísmo é uma coisa inacreditável, a pessoa vê um camarada a morrer de fome ou de frio na calçada (vários aparecem mortos por hipotermia). Ou seja, há uma parcela substantiva da população que acha que não tem nada a ver com isto, que fecha os olhos, que não se sente comprometida com a sorte dos que estão nas ruas.

créditos: Miguel SCHINCARIOL / AFP

Cada vez mais as campanhas vão baixando de nível. Nesta em concreto o insulto e a vulgaridade tornaram-se mato. O que é que isto diz das chamadas elites?

Isso dói. E vejo isso com uma enorme vergonha. Há dias o presidente de Portugal esteve aqui para fazer parte da celebração dos 200 anos da Independência. Ele está num palanque oficial com o presidente da República, cheio de senhoras à volta, de generais de quatro estrelas, e o Bolsonaro começa a falar palavrões? Na frente do presidente de Portugal - que, aliás, foi elegantíssimo, fingiu que não era com ele, olhava para cima, olhava para os lados... Mas é um negócio que me faz morrer de vergonha. O que essa gente fez ontem em Londres, no funeral da Rainha, com a polícia a ter de proteger os ingleses, porque havia um grupo na porta do hotel onde estava Bolsonaro com faixas dizendo "ladrão", "assassino", "genocida", foi preciso fazer um cordão de segurança para proteger os britânicos... Um senhor de cabelo branco dizia: "Isto é uma coisa desrespeitosa, nós estamos de luto. Podem não concordar, mas estamos de luto". Envergonho-me muito. Coloquei uma notinha na Internet a dizer o seguinte: "Agora a gente vai entender quando chegar no Aeroporto de Heathrow, em Londres, e o sujeito olhar o passaporte e, ao ver que é brasileiro, fizer um certo ar de náusea". Agora, consegue-se mudar um país com estas características com democracia burguesa? Não sei. 

"Os brasileiros ricos são ingratos, porque ganharam dinheiro no governo Lula, durante os oito anos. Os bancos, as indústrias, as empresas aéreas, as grandes empresas de supermercados"

Não receia que a escolha de Lula seja o mal menor, que votem nele por ser o menos mau?

Na política, aqui, diz-se que você é obrigado a engolir sapos e, às vezes, a engolir gambás. Porque não adianta pensar que sozinho vai conseguir. Sem essa aliança ampla que Lula está a fazer, que envolve o Geraldo Alckmin (PSB), que era governador neo-liberal, provavelmente não conseguiríamos derrubar Bolsonaro. Hoje li na "Folha de S. Paulo" a carta de um advogado célebre aqui, Flávio Bierrenbach, ex-deputado constituinte, que chegou a ser ministro do Superior Tribunal Militar, a dizer que abriu mão de votar no Ciro Gomes e vai votar no Lula. Boa parte vai votar no Lula por ser o menos pior, concordo. Acho que há gente que não gosta do Lula, não concorda com as ideias do Lula, tem preconceito ou tem objecções palpáveis, a deixar de votar nos outros candidatos, a tal terceira via que se imaginava aqui, para votar no Lula. 

Há quem diga que a culpa de Bolsonaro estar no poder é de Lula. Concorda?

Não concordo. Aliás, o tal advogado de que falei termina a nota a dizer: na próxima voto no Ciro [Gomes]. Agora vou votar no Lula. Acho que estas pessoas vão ter de votar no Lula, não vai ter saída. Se Bolsonaro for reeleito, vou juntar a minha família e vou-me embora para Portugal. Porque esta é a única língua que sei escrever. Vou bater aí e pedir emprego. Muitos amigos estão já a viver aí desde o começo do governo Bolsonaro. Espero que eu não tenha de ir.

Dados de agosto do FMI - Fundo Monetário Internacional apontam para um crescimento de 1,7% da economia brasileira em 2022. Para 2023, a projecção foi reduzida de 1,4% para 1,1%.

Mas isso é agora, nos últimos meses, e com os mesmos mecanismos que usaram para depor a Dilma Rousseff  ["pedalada fiscal", nome dado à manobra contabilística para cumprir metas fiscais, de que Dilma viria a ser absolvida nos tribunais]. O que Lula quer é utilizar parte dos recursos para colocar na economia, financiar casa própria a juros subsidiados, dar uma bolsa a quem tem filhos na escola. As pessoas começam a comer, a comprar geladeira [frigorífico], a comprar fogão, a viajar. No governo Lula era uma coisa surpreendente, você ia aos aeroportos e encontrava pessoas que nunca tinham andado de avião na vida, normalmente iam de ónibus [autocarro] visitar as suas famílias. E os ricos ganharam muito. Os brasileiros ricos são ingratos, porque ganharam dinheiro no governo Lula, durante os oito anos. Os bancos, as indústrias, as empresas aéreas, as grandes empresas de supermercados. A economia começou a esquentar novamente. Ele pode fazer isso de novo. Ah, vai enfrentar Fundo Monetário Internacional, vai enfrentar a grande banca norte-americana? Vai. Vai e vai encontrar dificuldades. Lutar contra a Chevron e a Exxon Mobil não é o quitandeiro da esquina, tem gente que mata, gente que depõe  governos, gente que dá golpes de Estado. Sabemos o tamanho da encrenca. 

"Obama e Hillary não queriam que o Brasil adquirisse uma autoridade internacional e cortaram as asas do Lula"

Foi ou não o PT o partido mais responsável pelo descalabro do país?

Não. Na verdade, acho que o governo da Dilma foi um governo com problemas, até de natureza pessoal - ela é uma pessoa que tem muito mais dificuldades de aproximação com o Parlamento, por exemplo, do que Lula. O Lula ama estas coisas, faz isto porque gosta. E ela tinha - não é um defeito, uma pessoa com a sua trajetória, que foi torturada -, dificuldade em fazer alianças com este submundo da política brasileira, o chamado centrão. Que não tem nada de centrão, é uma direita preocupada apenas em ganhar dinheiro, não tem outro objetivo que não seja indicar diretores para a Petrobras, indicar diretores para a Elecrobras, para roubar para eles. É esse o universo. Agora, você precisa ter fígado de javali para poder aguentar. O Lula aguentou. Com enormes dificuldades. E se ele tivesse tido oportunidade de fazer parte do governo de Dilma quando ela já estava para ser degolada, ele muito provavelmente iria impedir o impeachment.

Como será um governo Lula no que respeita às relações exteriores?

Um dos grandes passos que o governo dele deu foi exatamente nisso: de uma hora para outra o Brasil passou a ser respeitado. Há um episódio extremamente saboroso, que vou publicar no segundo volume. Obama deu a Lula uma carta a pedir-lhe que ajudasse a negociar com Ahmadinejad, então presidente do Irão, e com Erdoğan, presidente da Turquia, para tentar um acordo sobre desenvolvimento de armamento nuclear. Mas achou que o Lula não tinha bala suficiente para tocar essa tarefa. Aí aconteceu uma coisa curiosa, o Lula saiu rodando pelo mundo. Chegava a França, e Sarkozy dizia: quem acabou de me ligar foi o Obama, a dizer para eu tomar cuidado, sabia que você vinha aqui. Chegava a Itália, e era Berlusconi: ligou-me a Hillary Clinton a pedir para eu tomar cuidado... Então, Obama e Hillary não queriam que o Brasil adquirisse uma autoridade internacional e cortaram as asas do Lula. Obama, que lhe deu a carta, telefonava antes a avisar para terem cuidado.

Era um agente duplo?

Exatamente. Fazia um jogo duplo. E cínico. 

A credibilidade não está agora mais abalada por ter sido preso?

Não é a impressão que tenho pelas viagens que ele tem feito para o exterior depois da prisão. Pessoas como o presidente do SPD alemão foram visitá-lo dentro da cadeia. É claro que com a maioria dos chefes de Estado ele tem de ter um cuidado muito, muito grande, porque virou uma afronta. Mas estou convencido de que o reconhecimento internacional do Lula vai ser imediato. Falo da experiência que tive com ele pelo mundo. Para ter uma ideia, o presidente Bush filho ligava para o Lula com frequência a pedir-lhe para amansar o presidente Chávez: "Olha, o Chávez está muito agressivo, você é amigo dele" tal, tal. E o Lula ia para Caracas, ou chamava o Chávez a Brasília, e conversava com ele: "Olha, puxa o freio [travão] de mão". Três dias depois o Lula liga a televisão e vê a Condoleezza Rice [Secretária de Estado dos EUA entre 2005 e 2009] a desancar Chávez. Liga para Bush e diz: "Desse jeito não tem pacificação". Acho que Bush ficou bravo porque o Chávez foi à ONU e falou logo depois dele. Entrou na tribuna a dizer "estou a sentir o cheiro de enxofre, dá impressão de que o capeta [diabo] passou por aqui". O Bush ficou doido, ligou para o Lula mais uma vez - e aí vem a Condoleezza a encher o Chávez de patadas mais uma vez. "Assim não dá para fazer as pazes", dizia Lula.

Mas, nesse caso, George W. Bush tinha, mais do que respeito, um interesse.

Bush tinha com Lula uma relação de igual para igual. O primeiro encontro do Lula com Bush foi em dezembro, já estava eleito, mas ainda não tinha tomado posse. Bush chamou-o para uma visita à casa de hóspedes, a Blair House. Lula foi para lá, sentaram-se, Bush fez o trololó inicial e depois disse: "Temos uma guerra contra o terrorismo e precisamos do apoio do Brasil, ainda que seja um apoio político apenas, para invadir o Iraque". E o Lula respondeu: "Presidente" - aliás, ele não o chamava presidente, chamava "companheiro Bush", engraçado - "Companheiro Bush, deixe-me falar uma coisa: não conheço Saddam Hussein, nunca pus os pés no Iraque, não estou convencido de que o Iraque tenha armas de destruição em massa. A guerra que eu quero fazer no Brasil, e em que poderá nos ajudar, é a guerra contra a fome. E é nessa guerra que vou colocar as minhas energias, não conte comigo para a invasão do Iraque". Então, ele tinha prestígio.

Qual a posição de Lula na questão da invasão da Ucrânia pela Rússia?

Ele pronunciou-se e disse que a melhor maneira de encerrar esta guerra é colocar os dois [Putin e Zelensky] para conversar, forçar esse diálogo. Ele aposta muito nessa reaproximação.

Lula visitou a Rússia em 2010, era Putin primeiro-ministro, para impulsionar as relações bilaterais. Conhece alguma história entre os dois?

Sei que tinham relações boas por causa do BRICS [agrupamento de países que inclui Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul] e do Novo Banco de Desenvolvimento. Sei que tiveram uma relação cordial, fraterna, mas veja que o Bolsonaro se absteve agora [resolução contra a Rússia votada na ONU em Março]. Esperteza do Bolsonaro.

Lula teria votado de maneira diferente?

Provavelmente Lula teria votado contra a guerra. Ele já disse isso várias vezes.

Como é que pode um país tão rico como o Brasil estar tão maltratado?

Acho que o Lula vai enfrentar agora, porque espero que seja eleito - não sei se ainda terá energia para se candidatar à reeleição, aos 81 anos -, grandes desafios. Estou convencido de que ele enriqueceu muito por dentro na prisão. E estou convencido de que é neste mandato que Lula vai ter de decidir se quer entrar para a História pela porta da frente, seja um ou dois governos, e acredito que sim. E insisto em que não sou do PT. Vai ter de enfrentar interesses poderosíssimos - não temos um exército com consciência política, como tinha parte do exército português, nem temos organização social que possa fazer sonhar com uma sustentação de um governo progressista, um governo de olhar social. Por isso, acho que Lula vai enfrentar dificuldades enormes.

Foi Leonel Brizola, já falecido, governador do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, que começou a chamar Lula "sapo barbudo", não por um bom motivo.

Foi. Aliás, a referir-se a si próprio: vou ter de engolir um sapo barbudo no segundo turno.

E no dia 2 de outubro, Bolsonaro vai ter de engolir o "sapo barbudo"? Logo no primeiro turno ou haverá segunda volta?

A distância [entre Lula e Bolsonaro] está a aumentar, está nos doze pontos percentuais - numa pesquisa insuspeita, porque é feita pela TV Globo, que não tem nenhum motivo para induzir a favor do Lula. Mas apostei com o meu barbeiro que se o Lula não ganhar no primeiro turno, ele rapa a minha barba. E esta é uma barba que eu tenho desde os meus 16 anos, nunca tirei [ri].