CAPÍTULO 9 — Depois de uma infância cruel, morando em lugares degradantes, Lula recebe a chave do paraíso: o diploma do SENAI.

Depois de uma infância cruel, a morar em lugares degradantes, Lula recebe a chave do paraíso: o diploma do Senai.

O torneiro mecânico e contramestre júnior Luiz Inácio da Silva, encarcerado naquela manhã de sábado por ordem do presidente da República, tinha uma história muito parecida com a da maioria das centenas de milhares dos seus companheiros de greve. Nordestino do distrito de Caetés, a três léguas de Garanhuns, no Agreste pernambucano, 35 anos, migrara para o Sul no «pau de arara»1, em 1952, aos sete, juntamente com a mãe, Eurídice Ferreira de Melo, a dona «Lindu», e mais sete irmãos. Lula era o penúltimo de uma escadinha que começava com José Inácio, o «Zé Cuia», nascido em 1936; Jaime (1937); Marinete (1938); Genival, o «Vavá» (1940); José, o «Ziza» — sim, havia dois irmãos chamados José na família Silva — (1942); Maria «Baixinha» (1943); Lula (1945); e a filha mais nova Ruth, a «Tiana» (1951).

Quando se tornou adulto, Ziza ficou careca, e o cabelo que restou, semelhante a uma tonsura clerical, deu-lhe o apelido pelo qual seria conhecido pelo resto da vida: Frei Chico. Dos avós maternos ficaria na memória de Lula um mero espectro, a vaga lembrança de que a avó bebia muito. Dos paternos, nem isso:

«Não sei quem foram nem me lembro de ter tido avô ou avó», diria tempos depois.

Embora a tragédia social do Nordeste de meados do século xx impusesse à população uma esperança média de vida de 35 anos — só com muita sorte alguém vivia o suficiente para ver crescer os netos —, a verdade é que os avós paternos que Lula nunca conheceu, João Inácio da Silva, o «João Grande», e Guilhermina da Silva, contrariaram as estatísticas e morreram octogenários.

"É Desta Que Leio Isto"

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Do pai, Aristides Inácio da Silva, Lula guardaria, sim, fortes lembranças. As piores possíveis. Como ocorria com três quartos dos nordestinos, o lavrador Aristides era analfabeto «de não conseguir ler um “o”», nas palavras do filho. Nunca exagerou na bebida, trabalhava incansavelmente, mas tinha um comportamento conflituoso com a família e a mulher. Ou, mais precisamente, com as famílias e as mulheres, já que em 1945 abandonou dona Lindu, grávida de Lula, apanhou a camioneta e rumou a Santos, no litoral paulista, levando em segredo como companhia Valdomira Ferreira de Góis, a «dona Mocinha», prima de Lindu de apenas 16 anos, com quem viria a ter dez filhos — o primeiro dos quais ainda estava no ventre da mãe quando ela embarcou escondida para o Sul. E entretanto, ao regressar a Pernambuco, em 1950, Aristides engravidou mais uma vez dona Lindu, que no ano seguinte daria à luz Ruth, a Tiana. Só então ele conheceu Lula, que já era um menino de cinco anos. De regresso ao Sul, Aristides levou consigo o filho Jaime, de 12 anos, destino que logo tomaria o primogénito Zé Cuia.

Em 1952, dona Lindu decidiu mudar de vida, vendeu por 13 mil cruzeiros (18,6 mil reais em 2021)2 o sítio de dez alqueires — o valor pago incluía um casebre, uma mula, meia dúzia de galinhas e a vaquinha que garantia o leite da família — e apanhou o «pau de arara» juntamente com os seis filhos que haviam ficado em Caetés. Após treze dias e treze noites na camioneta, período em que se alimentaram apenas de rapadura3 e farinha, a viagem terminaria em Santos. Com o que restara das economias, dona Lindu contratou dois táxis que os levaram até Itapema, que logo mudaria de nome para Vicente de Carvalho, subúrbio da estância balnear de Guarujá, cidade colada a Santos, local onde já viviam Aristides, dona Mocinha e a catrefa de filhos que o casal tivera.

Nos primeiros treze meses após a chegada da nova leva de migrantes, viveram todos em duas casas separadas, nas quais Aristides mantinha as duas mulheres e mais de uma dúzia de filhos, que iam de Zé Cuia, então com 16 anos, até um bebé de colo, filho de dona Mocinha. A organização familiar concebida por Aristides, porém, não implicava bigamia. Desde que soube que o marido se amancebara com a sobrinha, dona Lindu nunca mais permitiu que ele lhe tocasse com um dedo sequer.

As excentricidades da família Silva não terminavam aí, nem na peculiaridade de haver dois irmãos com nomes idênticos. Batizada à nascença com o nome de Sebastiana, a filha mais nova era «uma criança bonitinha, que não merecia um nome tão feio», comentavam as amigas da mãe, assim que os Silva chegaram a São Paulo. Dona Lindu concordou e não pensou duas vezes. Ao responder ao tabelião qual seria o nome da criança, no dia em que foi registá-la no cartório, já no litoral paulista, não hesitou em anunciar: «Ruth». Com «th». Do nome original, ficou apenas o apelido pelo qual seria conhecida para sempre: Tiana.

Morando na zona portuária de Vicente de Carvalho, Lula foi matriculado pela mãe no antigo curso primário (atual fundamental)4 da escola pública Marcílio Dias, a três quarteirões da casa em que viviam. Aos fins de semana juntava-se aos amigos do bairro, apanhava a balsa que atravessava o canal do estuário, e em Santos embarcava na «maria-fumaça», o pequeno comboio a vapor até Guarujá. A diversão, na verdade, era dar um calote ao cobrador de passagens do comboio, saltando de um vagão para outro, e, à volta, roubar e comer bananas plantadas nas margens daquela que, décadas depois, viria a ser a Rodovia Piaçaguera-Guarujá. Local que se converteria na estância balnear mais chique e elegante do estado, até por volta dos anos 1970, o Guarujá dos passeios de Lula, talvez pela dificuldade de acesso, não passava de uma praia inóspita, quase deserta.

Estas foram as únicas boas lembranças que ficaram de uma época dura. Pior que todas as vicissitudes da pobreza, porém, foi a convivência com o pai, de quem Lula guardaria para sempre as piores recordações. A vida e o correr do tempo encarregar-se-iam de diminuir e racionalizar o rancor do filho pelo pai, mas não apagaram por completo o sentimento amargo deixado na alma de Lula. Aristides era um homem moreno, alto, forte mas seco, ossudo, com as orelhas de abano e o nariz adunco herdados pelo filho. Vaidoso, embora fosse um estivador que passava os dias a carregar sacos de café no porto, ia e voltava do trabalho de fato e gravata. Para disfarçar o analfabetismo que tanto o envergonhava, levava sempre sob o braço um jornal dobrado. Como tarefeiro, não sindicalizado, ganhava consoante a sua produtividade — ou seja, por sacos de café embarcados — e tirava proveito da força física para trabalhar até doze horas seguidas. Em toda a estiva era possível contar pelos dedos de uma das mãos os carregadores capazes, como ele, de levar de uma só vez três sacos de 60 quilos de café — um sobre cada ombro e o terceiro sobre a cabeça. O desempenho acima da média fazia dele um carregador disputado pelos intermediários de mão de obra dos armazéns portuários.

A sua principal diversão era a caça. Célebre pela pontaria certeira, aos fins de semana Aristides partia com um grupo de amigos e uma pequena matilha de rafeiros pelas brenhas da serra do Mar, empunhando a sua «folobé» — como eram conhecidas as espingardas francesas Flobert calibre .22, que precisavam de ser recarregadas a cada disparo. Os tatus, pacas, queixadas e, eventualmente, veados abatidos nas caçadas ajudavam a matar a fome das duas famílias e às vezes até a fazer um agrado a um chefe nos armazéns. Sobrando pouco ao final do mês, Aristides esbanjava esses trocos no jogo do bicho5. A sua fé na sorte era compreensível. Foi com dinheiro ganho no bicho que ele conseguiu visitar dona Lindu em Pernambuco, em 1950. A despeito de ser um marido e pai violento, fazia de tudo para que não faltasse comida à família. Ou às famílias, porque, no arranjo conjugal que concebera, Aristides mantinha tanto os filhos de dona Lindu como a prole de dona Mocinha. Às quartas-feiras, chovesse ou fizesse sol, o vendedor de verduras parava a charrete à portas das duas casas — separadas por vários quarteirões — para entregar às duas famílias a reserva semanal de legumes e verduras. Tudo pago por Aristides.

Mas o pior de tudo era a sua relação com os filhos, o tratamento brutal que destinava tanto aos do primeiro como aos do segundo casamento. A começar pelas regras ditatoriais que ele impunha às duas famílias: as meninas não podiam frequentar a escola, namorar ou dançar, ninguém podia sair à noite para passear, ir ao cinema ao fim de semana era proibido e ninguém podia fumar. Nem Zé Cuia, que já tinha 18 anos e era fumador. Os castigos físicos, como as sovas de chinelo ou de cinto, eram algo comum na educação dos filhos em todas as classes sociais do Brasil, mas as memórias que Lula e alguns dos seus irmãos têm de Aristides são relatos próximos do sadismo e da teratologia familiar. Não se tratava de um pai severo a punir um filho rebelde, mas um torturador diante da vítima. Nenhum dos filhos tinha desvios de conduta, traços delinquentes, nenhum podia ser apontado como mau exemplo. Eram jovens bem-comportados, mas mesmo assim recebiam do pai, todos, sem distinção, um tratamento visivelmente cruel. E não foram só os castigos físicos que ficaram na memória dos filhos. Lula lembra-se de ter testemunhado repetidas vezes um desses atos de pura maldade de Aristides:

— Para todos nós, meu pai comprava pão comum, e para si uma broa especial, feita de pão doce. O que sobrasse da iguaria ele guardava numa lata em que ninguém se atrevia a mexer. À noite ele voltava, pegava o resto da broa na lata. Ao vê-lo com nacos de broa na mão, minha irmã Tiana, de dois anos, chorava de fome, pedindo um pedaço. Ele não se comovia: sentava do lado de fora da casa e dividia com seus cachorros o resto da broa, indiferente à fome e ao choro da filha bebé.

Lula não conseguia entender o que se passava na cabeça de Aristides, um trabalhador obcecado em garantir pequeno-almoço, almoço e jantar — por mais simples que fossem — às duas famílias e, ao mesmo tempo, um homem que dedicava aos filhos um tratamento tão cruel. O comportamento contraditório do pai deixava-o perplexo: seria algo cultural, fruto da áspera, difícil sobrevivência no sertão nordestino, ou Aristides era mesmo um ser humano monstruoso, com graves desvios de personalidade?

As surras aconteciam sem motivo e às vezes ameaçavam pôr em risco a vida da vítima escolhida para o castigo. Como no dia em que o velho embicou com Rubens, o segundo dos seus filhos com dona Mocinha, e resolveu aplicar-lhe um corretivo, a golpes de corrente. Com a mão esquerda imobilizou o rapaz de 16 anos, acocorado no chão, enquanto com a direita lhe vergastava as costas. Quando o corpo do adolescente já estava em carne viva, dona Lindu decidiu intrometer-se num problema familiar que não lhe dizia respeito e arrancou Rubens, ensanguentado, das mãos de Aristides. Lula, que assistiu à cena horrorizado, teve a certeza de que, se a mãe não o socorresse a tempo, o meio-irmão teria sido morto pelo pai.

Passadas mais de seis décadas, Lula ainda seria capaz de reconstituir ao pormenor o testemunho da última surra que Aristides aplicou a um filho. Ele e Ziza haviam recebido ordens do pai para cuidarem da chata de madeira que Aristides comprara para pescar e que deixava amarrada às margens do Acaraú, um dos muitos ribeirinhos que desaguam no estuário de Santos, a meio caminho entre a casa da família e a pista de aterragem da Base Aérea da FAB (Força Aérea Brasileira). Quando a maré baixava, os pequenos botes, canoas e chatas costumavam encalhar na areia, facilitando o trabalho dos ladrões de barcos que infestavam a zona portuária. O encargo atribuído aos irmãos era simples: ficar de olho na chata até que a maré subisse e a ameaça de furto desaparecesse. Mesmo sabendo o que significava desobedecer ao pai, os dois cometeram o pecado mortal de mandriar na tarefa e foram jogar uma futebolada. Ao voltarem para casa, deram com Aristides, sempre de maus fígados, à espera deles:

—E a chata, como está? Cuidaram dela direito?

Foi Ziza quem mentiu:

—Cuidamos. Ela está lá, do jeito que o senhor deixou. Está tudo bem.

Desconfiado, o pai resolveu caminhar até à boca do rio onde costumava amarrar a improvisada embarcação e recebeu a notícia de um pescador:

—A maré desceu, Aristides, e roubaram sua chata.

O velho voltou a toda a brida para casa, furioso, e pegou no primeiro objeto ao alcance da mão: um pedaço de mangueira de borracha para água, que usou como chicote sobre o lombo de Ziza, com extrema crueldade. Só parou quando o menino, depois de urinar nas calças, desabou no chão, gritando de dor. E partiu para cima de Lula, em quem, por inexplicáveis razões, nunca tinha batido. Ao ouvir a gritaria do lado de fora, dona Lindu foi a correr e chegou ainda a tempo de se colocar entre o ex-marido e o filho, tentando protegê-lo. A primeira bofetada atingiu a mãe em cheio, no meio do rosto. Por mais violento que fosse, Aristides jamais ousara agredir dona Lindu. Aquela seria a primeira e última vez.

Dona Lindu acordou bem cedo no dia seguinte e a meio da tarde já havia encontrado uma nova casa para alugar, esta a suas expensas — pouco mais que uma barraca —, para onde se mudaria com a família, imóvel que ficava na mesma Rua Minas Gerais em que tinham vivido com Aristides. O espólio da mudança resumia-se à roupa que cada um trazia no corpo, uma tina de madeira para lavar a roupa, uma faca e uma lata vazia de leite em pó Mococa — o cofre onde a mãe guardava os tostões amealhados com os biscates e subempregos dos filhos. Na antiga casa, dona Lindu deixou apenas a filha mais velha, Marinete, encarregada de informar Aristides de que a vida em comum chegara ao fim. O velho não acreditou no que ouviu e tentou trazê-los de volta com uma tentadora chantagem: foi ao armazém e gastou o que tinha em carne seca, bacalhau e broa de pão doce para todos. Nada feito. Dona Lindu mandou avisar que nem ela nem nenhum dos seus filhos tornariam a pôr os pés naquela casa. Apesar de prever um futuro enevoado, estava orgulhosa por não admitir que o marido a agredisse.

Lula da Silva
créditos: TOMAS GARCIA / PRENSA LATINA / AFP

Depois de três anos de vida miserável na Baixa da Santista, em 1955, quando Lula fez dez anos, a severa e incansável dona Lindu, em busca de um destino melhor para a família, arrastou a filharada para a capital do estado. A mudança obrigou Lula a interromper o curso primário iniciado na escola pública Marcílio Dias. Em Itapema ficou apenas Marinete. O escasso dinheiro que a mãe amealhou das suas economias e da dos filhos só deu para alugar uma casa com um quarto e uma cozinha nas traseiras do bar de um tio dela na Rua Albino de Morais, na Vila Carioca, no Ipiranga. Um dos distritos mais antigos de São Paulo, o Ipiranga era um amontoado de indústrias de diversa dimensão, de gigantes multinacionais a oficinas de uma só porta. Os seus limites terminavam na região que viria a ser conhecida como «o ABC», a qual abrangia os municípios de Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul e, depois, Diadema.

Espremidos em camas de armar, redes, beliches, esteiras e colchões espalhados pelo chão, além dos oito migrantes e de um irmão de Lindu, Odorico, a sua mulher, Laura, e os filhos Leoni, Luiz e José «Graxa», ali viviam um agregado da família, Severino, e ainda dois inquilinos que pagavam aluguer para dormir num cubículo incorporado à casa. Os Silva e agregados, que às vezes chegavam a somar mais de vinte pessoas, tinham de dividir a única casa de banho do imóvel com a clientela do estaminé.

—Eu sei o que que é morar no fundo de um bar — Lula não se esqueceria —, tendo que usar o banheiro6 em que um bêbado tinha acabado de vomitar na pia, cagar num pedaço de jornal. Era aquele banheiro que a gente utilizava, eu, minha mãe e minhas irmãs. Disso eu sei como ninguém.

Como não havia chuveiro, a água era retirada com um balde do fundo de um poço e garantia um «banho de gato» aos moradores. Em vez de papel higiénico havia sempre uma pilha de jornais velhos ao lado da sarjeta que fazia as vezes de sanita. em avançada idade, Lula reconstituiria esse período ao pormenor:

—No quarto dormiam minha mãe, duas irmãs e eu, que era o caçulinha7 e podia dormir junto com as mulheres. Na cozinha, naquelas caminhas de abrir, dormiam sete ou oito pessoas. E o banheiro não tinha vaso sanitário, era bacia turca, daquelas de agachar, que usam nas cadeias. De segunda a sexta o movimento do bar era pequeno e nós conseguíamos mantê-lo limpo, mas quando ia chegando sexta, sábado e domingo aquilo virava uma pocilga.

A penúria familiar não endurecera o coração de dona Lindu. Se alguém batesse palmas ao portão a pedir comida, ela convidava a pessoa, por mais maltrapilha que estivesse, a entrar em casa, sentar-se à mesa e comer com os demais. Sentar-se significava acomodar-se num caixote ou banquinho. Quando Ziza adoeceu, com suspeita de pneumonia, chamaram um médico do IAPI a previdência social dos operários industriais, na época que pediu uma cadeira para atender o enfermo. O doutor teve de realizar a consulta de pé: não havia cadeiras em casa.

Mas as precárias condições da casa e a náusea de ter de dividir a casa de banho com bêbados acabaram por levar dona Lindu a mudar-se da Albino de Morais um ano depois de ali ter chegado. Já pré-adolescente, Lula foi matriculado na escola pública Visconde de Itaúna, no Ipiranga, onde se pretendia pelo menos que terminasse o curso primário. O boletim guardado até hoje na Visconde de Itaúna revela que, durante o ano em que frequentou a escola, Lula teve aproveitamento acima da média em linguagem escrita e oral e em conhecimentos gerais, mas era fraco nas demais matérias:

Resultado dos exames realizados no 5.º ano B masculino, sob a regência da prof. Selma de Campos em 19 de novembro de 1959. Notas: Linguagem Escrita — 45; Aritmética — 25; Leitura e Linguagem Oral — 70; Conhecimentos Gerais — 80; Média — 55. Luiz Inácio da Silva, Conservado.

Com esse resultado Lula não se pôde habilitar a fazer o antigo ginásio (o atual fundamental II)8. Muitos anos depois, já sindicalista, chegou a iniciar o curso de «madureza» — mais tarde rebatizado supletivo9 —, mas logo percebeu que era impossível passar o dia a dirigir o sindicato e consumir a noite debruçado sobre livros e cadernos, e desistiu da ideia. Mesmo sendo um rapazola, usava calças curtas de sarja castanha, as únicas que tinha, penduradas por suspensórios de cores diferentes, uma tira verde, a outra amarela, feitos com restos de tecido que a mãe arranjara. Lula completou o ano letivo de 1959 com três peças de roupa: as calças castanhas, uma camisa branca e um calção. De segunda a sexta-feira saía de casa cedo, rumo à escola, vestindo as calças e a camisa. Retornava à tarde, esticava a roupa em cima da cama e vestia os calções. No dia seguinte, o calções, que serviam também de pijama, era largados a um canto.

A sua rotina semanal não mudava muito. Frequentava a escola durante a manhã, almoçava, trabalhava à tarde como entregador de roupa de uma tinturaria e dedicava o que restasse do dia à sua grande paixão, o futebol — às vezes jogando como central-esquerdo, às vezes como médio-direito. E foi no futebol que Lula revelou os primeiros traços de liderança. Era ele quem formava as equipas, arranjava a bola e o campo, e organizava campeonatos entre vilas, disputas que muitas vezes terminavam em pancadaria. Nessas ocasiões, era Lula quem ia à frente, para desafiar e enfrentar os adversários. Um pouco dessa valentia e do respeito de que desfrutava vinham de uma garantia familiar: quem o ameaçasse sabia que a seu lado estavam os irmãos mais velhos, Vavá, que sempre foi robusto, e Frei Chico, que já então começara a praticar halterofilismo. Era comum que o pugilato acabasse em guerras de fisgas e que acabasse por levar um sopapo. Dona Lindu já se habituara a ver os filhos chegarem a casa, à noite, com um olho roxo, o nariz amassado ou com ferimentos provocados por pedradas. Duas décadas depois, Lula teria a seu lado, nos piquetes e nas greves, muitos dos seus antagonistas dessas batalhas juvenis.

Nas manhãs de sábado e domingo, calcorreava o bairro para engraxar sapatos contando com uma caixa de madeira feita por ele mesmo. Aos sábados engraxava quatro, cinco pares, mas aos domingos a clientela quase duplicava. Ao contrário do modesto salário da tinturaria, o dinheirinho amealhado nesse trabalho não entrava na contabilidade da mãe e tinha destino certo: os filmes de Tarzan, os westerns de Roy Rogers e as sequelas de Zorro e de Buffalo Bill. Quando não havia dinheiro suficiente para o cinema, ele ia à casa de um amigo que tivesse grafonola para ouvir Carlos Alberto, Trio Irakitan, Trio Los Panchos ou o insuperável «Rei do Bolero», o cubano Bienvenido Granda. Só depois é que vieram Roberto e Erasmo Carlos, Wanderléa e os demais cabeludos da Jovem Guarda. Nessa época, televisão era coisa de ricos. Eram raros os proprietários de um televisor na Vila Carioca. O próprio Lula viria a comprar um aparelho somente nos anos 1970, já casado.

As suas tentações materiais eram infinitamente menores que a posse de um aparelho de televisão. Uma delas era uma prosaica maçã. Uma vez por semana, no caminho entre a escola e a casa, ele passava em frente à barraca de um feirante que vendia maçãs argentinas — embaladas uma a uma em papel de seda azulado onde se podia ler, impressa, a origem da fruta: «Manzanas de Neuquén» (o Brasil só se tornaria um produtor de maçãs dez anos depois). Lula sabia que bastava esticar a mão para surripiar uma maçã sem que o dono visse. E mesmo que visse, apenas havia o risco de o indivíduo o obrigar a devolver a fruta. Mas no momento de cometer a proeza, o espectro de dona Lindu assomava à sua consciência e ele desistia. Outro objeto da sua cobiça era ainda mais modesto que as maçãs argentinas: as pastilhas elásticas Ping Pong, lançadas no Brasil pela fábrica de gelados Kibon. Lula roía-se de inveja ao ver os amigos fazerem balões, que chegavam a cobrir-lhes o rosto, de tão grandes. Nas ocasiões em que o tio Odorico lhe pedia que tomasse conta do balcão do bar, Lula até tinha comichões só de olhar para os boiões de vidro cheios de… pastilhas Ping Pong. O estoicismo que impedia o adolescente de surripiar uma pastilha que fosse apenas não se devia ao medo de ser apanhado em flagrante, mas à vergonha de um dia a mãe vir a saber que ele se havia apropriado de algo que não lhe pertencia. A única maneira de saciar o desejo era pedir ao amigo «Boquita», um voraz consumidor de Ping Pong, que lhe desse as pastilhas já mascadas, que ele embrulhava num papelinho e, em casa, lavava, salpicava de açúcar e mascava até que restasse somente uma goma rala e sem sabor. Etérea como uma sombra, a severa dona Lindu e as suas lições de honestidade acompanhavam-no onde quer que ele estivesse. Uma vez, Lula passou por uma camioneta vazia, com os vidros em baixo e, no porta-luvas aberto, uma tentadora nota de 20 cruzeiros. Por instantes chegou a pensar em enfiar a mão pela janela do veículo e pegar no dinheiro. Mas a mera lembrança da mãe foi mais forte que o demónio que quase o fizera cair em tentação, e os 20 cruzeiros continuaram onde estavam.

Em 1960, antes de completar quinze anos, Lula arranjara o seu primeiro emprego como office boy10 com carteira profissional assinada na Colúmbia, uma empresa de armazenamento e logística. O trabalho resumia-se a atender o telefone, levar recados e papéis aos funcionários administrativos. Foi nessa época que soube que a Parafusos Marte, metalúrgica que ficava na Vila Carioca, entre o Sacomã e o Ipiranga, estava à procura de um aprendiz de torneiro mecânico. Ele não tinha ideia do que era e o que fazia um aprendiz de torneiro mecânico, mas o emprego vinha acompanhado de uma promessa sedutora: um processo de seleção escolheria quem ganharia um curso de aperfeiçoamento no SENAI. Lula inscreveu-se, conseguiu a vaga e dias depois, envergando o macacão remendado que herdara do irmão Jaime, passou a ser o primeiro filho de dona Lindu a receber o salário mínimo, fixo e mensal. Aos olhos da vizinhança, dos amigos e principalmente das raparigas, o macacão era um motivo de orgulho. Ninguém via a carteira profissional assinada, que andava no bolso, mas o macacão era um símbolo de que quem o vestia tinha emprego, tinha futuro.

Os primeiros tempos na Parafusos Marte constituíram um balde de água fria no entusiasmo de Lula. Mesmo sem saber a diferença entre uma prensa e um torno, ele imaginava que, mal chegasse à fábrica, iria instalar-se na linha de montagem, a fundir peças e a construir máquinas, e ficou dececionado ao saber que o seu trabalho resumir-se-ia a apanhar do chão as limalhas e restos do ferro cortado pelas prensas, juntar tudo num latão e deitar ao lixo. Na verdade, aquilo era serviço para um empregado de limpeza, não para o que supunha ser um aprendiz de torneiro mecânico. Desconcertado, no fim do expediente do primeiro dia untou as mãos e o macacão com resíduos de graxa, para dar a impressão, na rua e em casa, de que trabalhava como metalúrgico, não como lixeiro. A despeito da frustração, cumpria pontual e disciplinadamente as ordens e a jornada de oito horas diárias, com uma hora de intervalo para o rancho tempo que era quase todo consumido nas futeboladas improvisadas no pátio da empresa.

Apesar de cru na profissão e de só ter o diploma do curso primário, a dedicação dele no dia a dia chamou a atenção dos chefes, e em poucos meses de trabalho Lula acabou por ser escolhido para fazer o teste de admissão ao SENAI. Fez o exame, passou e, segundo as suas próprias palavras, ganhou «a chave do paraíso». Tudo o que um operário sem qualificação podia almejar era um dos cursos oferecidos pelo Serviço Nacional de Aprendizado Industrial, instituição mantida por uma fatia de 2,5% das folhas de pagamento das indústrias e que formava trabalhadores e técnicos em todo o país. Pelo convénio da Parafusos Marte com o SENAI, Lula poderia optar por um dos três cursos disponíveis: aprendiz de mecânica geral, torneiro mecânico ou ajudante de mecânico. Lula escolheu a segunda alternativa, o que significaria passar os três anos seguintes a meio-tempo na fábrica e outro meio-tempo no SENAI. Os dois primeiros anos do curso eram ministrados na unidade do Ipiranga, num enorme edifício de dois andares, a poucos quarteirões de onde viria a ser instalado, três décadas depois, o Instituto Lula. O último ano de formação deu-se na unidade Roberto Simonsen, também sob o regime de meio-tempo na produção e meio-tempo nas salas de aula. Muitos anos mais tarde, quando se preparava para ser presidente da República, Lula lembrar-se-ia com emoção desse período:

—Foi o paraíso! O SENAI foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida. Por quê? Porque aí, eu fui o primeiro filho da minha mãe a ter uma profissão, eu fui o primeiro filho da minha mãe a ganhar mais que o salário mínimo, eu fui o primeiro a ter uma casa, eu fui o primeiro a ter um carro, eu fui o primeiro a ter uma televisão, eu fui o primeiro a ter uma geleira. Tudo por conta dessa profissão, de torneiro mecânico, por causa do SENAI. O período que eu passei no SENAI talvez tenha sido o mais importante período na minha vida. Primeiro porque eu estava aprendendo uma profissão, segundo porque acho que foi a primeira vez que eu tive contacto com a cidadania. Sabe aquele negócio de você estar numa escola de boa qualidade, de você almoçar, de você tomar café decentemente? Acho que foi a primeira vez que eu alcancei a cidadania, porque, fora do SENAI, a vida era muito dura e no SENAI a gente tinha o aventalzinho da gente, a gente tinha a comida na hora certa, de boa qualidade, tinha café, tinha futebol de salão, tinha basquete. Então era uma coisa grã-fina para mim.

No final dos três anos de curso, Lula empunhou orgulhoso o ambicionado diploma: agora ele era torneiro mecânico, profissional, de «papel passado». O franzino migrante tinha expectativas modestas. Lula não aspirava a ser rico nem importante. Para quem trabalhava desde os oito anos, ascender à condição de torneiro mecânico era um sonho. Começar como operário, juntar algum dinheiro e tornar-se dono do próprio negócio: ou um táxi, ou um botequim. Quando as expectativas subiam demasiado alto, Lula via-se a dirigir um camião enorme, «daqueles da Shell, prateado, transportando combustível». Em resumo, ninguém queria ter patrão. Mas a profissão escolhida já estava ótima. Provocou uma mudança de registo na sua cabeça e passou a ser um motivo de orgulho por toda a vida.

— Nós não éramos simples torneiros mecânicos — diria muitos anos depois, já presidente da República. — Éramos artistas que conseguiam transformar um pedaço de ferro em uma obra de arte.

Foi na época da Parafusos Marte que Lula participou numa greve pela primeira vez. Mas eram greves delicodoces, sem confrontos. Só depois, muito depois, é que ele confessaria que para quem, como ele, não tinha consciência política, era uma alegria acordar com os muros do bairro pichados com cal: greve geral!

—A verdade é que ficar em casa sem fazer nada não era um grande sacrifício.

Com um movimento grevista desorganizado como o de então, sem centrais sindicais nem palavras de ordem unificadas, sempre que o sindicato convocava uma paralisação, os donos eram os primeiros a dispensar os trabalhadores e fechar as portas, temendo que os piquetes terminassem em vandalismo e pancadaria. Foi numa dessas refregas, no início dos anos 1960, que Lula se entusiasmou por participar num piquete no Jutifício São Francisco, indústria de sacos de juta e de estopa, onde trabalhava uma das suas irmãs. Para defender a fábrica dos grevistas que ameaçavam entrar à força para retirar os fura-greves — entre os quais estava a irmã Maria Baixinha —, os guardas trancaram os portões do muro de dois andares que protegia a empresa. O muro era tão alto que de fora nem dava para ver o interior da fábrica. Mas os grevistas era muitos, talvez mais de quinhentos operários. Foi quando um deles gritou: «Derruba o muro!» — e minutos depois, empurrado pela maralha, o muro inteiro desabou com estrondo. O piquete invadiu a fábrica e os fura-greves, a irmã inclusive, foram postos para fora literalmente ao tabefe, obrigados a passar por um longo corredor polaco11.

Lula
créditos: Objetiva Editora

Livro: Lula, Biografia - Volume 1

Autor: Fernando Morais

Editora: Objetiva

Publicação: 12 de setembro

Preço: 19,76€

A segunda experiência do Lula grevista terminaria, esta sim, de maneira dramática, mas ele por sorte seria apenas testemunha. Ao caminhar pela Rua Vemag, também na Vila Carioca, meteu-se num grupo de trabalhadores que tentava entrar à força numa pequena fábrica de meias, com o mesmo objetivo: tirar fura-greves das linhas de montagem e trazê-los para o piquete. Quando menos se esperava, apareceu no portão o dono da fábrica, de revólver em punho. Aparentemente para assustar o grupo, o dono fez um disparo a esmo, mas a bala atingiu o peito de um grevista, que morreria minutos depois, num hospital vizinho. Apavorado com o que acabara de fazer, o empresário entrou no prédio e subiu a correr as escadas até ao segundo andar. Aquilo não ia terminar bem. Desarmado pelos manifestantes e encurralado numa sala pela indignada turbamulta, o homem foi atirado pela janela, linchado a pauladas e pontapés, e morto ali mesmo. Aterrorizado, Lula nem esperou que a polícia chegasse para se pôr na alheta.

Na Parafusos Marte nunca se chegou a uma situação semelhante. Quando uma paralisação era marcada, «seu Zé», o gerente, para se ver livre dos grevistas, emprestava o camiãozinho de entregas da empresa para o deslocamento dos trabalhadores até aos piquetes nas portas das outras indústrias das imediações. As relações de Lula com o patrão só azedaram uma vez, e para sempre, quando ele decidiu pedir um aumento de salário. Em mais de quatro anos de trabalho, só recebera os aumentos determinados por concertações coletivas. Aos poucos percebeu que vários colegas realizavam o mesmo trabalho e ganhavam mais do que ele. Ao saber que Vitório, o seu vizinho de bancada, produzia metade e ganhava o triplo do seu salário, arranjou coragem e reivindicou uma equiparação. O patrão reagiu com aspereza:

— Aumento? Nem pensar! Nós financiamos três anos de estudos seus e não temos por que lhe dar aumento.

Desbocado, Lula deu o troco:

— Financiaram porra nenhuma! Quem pagou meu curso foi o SENAI e eu quero ganhar o mesmo que meus colegas de trabalho. Ou vocês me dão aumento ou eu peço as contas.

O pedido de aumento não foi atendido e Lula trocou a Parafusos Marte por um emprego noturno na Metalúrgica Independência, pequena indústria que era propriedade de um imigrante polaco, também na Vila Carioca, onde se produzia discos de segredos para fechaduras de cofres-fortes bancários. Foi aí, durante uma madrugada de trabalho, em junho de 1964, que Lula perdeu o dedo mindinho da mão esquerda.

—Eu entrava às sete da noite e saía às seis da manhã, época em que fazia hora extra. Trabalhava à noite e dormia o dia inteiro. Ia sem jantar, levava lanche. De noite tinha pouca gente que trabalhava nessa fábrica, acho que uns seis ou sete.

Por volta das duas horas da manhã, a meio de um dos seus turnos, um parafuso da prensa transversal partiu-se e, para o substituir, Lula precisou de fazer um novo. Chamou o colega da bancada mais próxima para o ajudar:

—Nem lembro seu nome, mas quando fui colocar o parafuso na prensa, ele cochilou. Eram umas duas ou três horas da manhã. Esse companheiro, visivelmente cansado, vacilou e soltou o braço da prensa. Ela fechou no momento em que eu estava entrando com a mão para trocar o parafuso. Tentei me esquivar, mas ela amassou meu dedo. Na hora nem senti muita dor.

Com a mão imobilizada pelo acidente, Lula teve de esperar que o dia nascesse para aparecer um médico nas urgências do hospital mais próximo da fábrica.

Me levaram para um hospital na Vila Carioca. Na minha opinião, o médico poderia ter aproveitado metade do dedo, da junta pra cá, mas achou que era mais fácil arrancar tudo de uma vez do que fazer uma cirurgia. E preferiu amputar. Conheço um monte de gente que sofreu o mesmo acidente que eu e que não precisou arrancar tudo. Acho que foi um pouco de precipitação. Ou que fosse mais fácil arrancar do que fazer uma cirurgia. Fiquei dois dias internado no hospital, fizeram a cirurgia, com anestesia local, e aí voltei para casa. Passei quinze dias me recuperando e depois voltei ao trabalho.

Lula ignorava que cada dedo perdido num acidente de trabalho atribuía à vítima uma indemnização diferente. Aproveitou os quinze dias de licença para procurar saber dos seus direitos:

—Apareceu um advogado, fui correndo até o escritório e assinei todos os papéis que ele pediu para assinar. Ao receber o dinheiro, cerca de trezentos cruzeiros, ou cruzados, sei lá, ele me cobrou 20%.

Lula começou a chorar:

—Como é que eu ia falar para minha mãe que tinha perdido parte do dinheiro? Corri até o sindicato, expliquei a história para outro advogado e ele falou pro outro: «Não cobra desse rapaz, ele é um garoto, acabou de perder o dedo. Imagine você, perdeu o dedo e ainda vai pagar pelo processo?» Voltei até lá, levei um tremendo carão12, uma baita esculhambada, mas me deu meu dinheiro.

Nos primeiros meses, Lula sentiu muita vergonha, um certo complexo, tentava enfiar a mão no bolso, tinha vergonha de apanhar o autocarro, vergonha de que as pessoas vissem que lhe faltava um dedo da mão. Mas o tempo foi passando e ele não se preocupou mais com isso. Só estranhava a ausência do mindinho ao juntar as mãos em concha debaixo da torneira para lavar o rosto — e a água escorria pelo coto. Brincalhão, lamentava que o cirurgião tivesse amputado o dedo inteiro, «sem deixar nem um toquinho para coçar o ouvido». Como indemnização pela mutilação, recebeu 351 mil cruzeiros. É muito difícil precisar o equivalente a essa quantia seis décadas depois, já que os dois únicos indicadores disponíveis apresentam desfasamentos que vão de 3,5 mil reais a 16,3 mil reais13 (IPC-FIPE). Lula pode até não conseguir calcular quanto valeria hoje a indemnização, mas não se esquece de como a gastou:

— Parte do dinheiro dei de entrada num terreno na Vila Liviero, nas imediações do Sacomã, que acabei vendendo tempos depois. Além disso mobiliei, pagando à vista, toda a cozinha da minha mãe: um armário, uma mesa e quatro cadeiras de fórmica, material que estava na moda. E ainda sobraram 40 mil cruzeiros. Guardei a metade e emprestei os 20 mil cruzeiros restantes ao Jaime, meu irmão mais velho.

Apesar do acidente, Lula permaneceu na empresa por mais alguns meses. Acabou por deixar a Metalúrgica Independência e passou um curto período desempregado até conseguir uma vaga de meio-oficial torneiro na Fris Moldu Car, metalúrgica de médio porte do Ipiranga que fornecia frisos e molduras metálicas para a indústria automóvel. Foi aí, em dezembro de 1965, que recebeu pela primeira vez o 13.º mês. Para celebrar o recebimento dessa quantia inesperada (o benefício fora criado em 1962, ainda no deposto governo Goulart, mas só entraria em vigor em meados de 1965), apanhou a sua primeira bebedeira ao dividir com os colegas da fábrica vários garrafões de quatro litros do popular vinho tinto gaúcho Sangue de Boi, bebedeira empanturrada de intermináveis porções de mortadela e azeitonas. E no dia seguinte, ainda curtindo a ressaca, Lula deu a si próprio o primeiro presente na sua vida, uma bicicleta comprada em segunda mão. Em tão mau estado que dava mais trabalho que prazer.

A sua passagem pelo novo emprego seria breve. Ele não tinha completado um ano de casa quando foi convocado para fazer horas extra no sábado e no domingo. Tentado pelos irmãos e por um grupo de amigos, na sexta-feira à noite resolveu passar o fim de semana com uns amigos na praia de Santos — usando o dinheiro que o patrão havia adiantado para o transporte e as refeições durante o serão. Na segunda de manhã foi abordado por um gerente:

— Por que você não apareceu para trabalhar no fim de semana?

Torrado como um camarão pelo sol do litoral, Lula ficou com vergonha de inventar uma mentira e confessou:

—Fui para Santos com meus amigos. A resposta foi pronta:

—Então você vai para a rua. Está demitido.

Notas:

  1. Camioneta que transporta migrantes do Nordeste brasileiro. (N. do R.)
  2. Cerca de 3500 euros. (N. do R.)
  3. Açúcar mascavado moldado na forma de pequeno blocos. (N. do R.)
  4. Corresponde ao ensino básico em Portugal, do 1.º ao 9.º ano. (N. do R.)
  5. Um jogo de lotaria. (N. do R.)
  6. Casa de banho. (N. do R.)
  7. Filho mais novo. (N. do R.)
  8. Correspondente em Portugal ao ensino do 6.º ao 9.º ano. (N. do R.)
  9. Corresponde em Portugal ao ensino recorrente. (N. do R.)
  10. Paquete. (N. do R.)
  11. Formado por duas filas de pessoas, de um lado e do outro, que maltratam quem tem de atravessar pelo meio. (N. do R.)
  12. Reprimenda. (N. do R.)
  13. Cerca de 660 a 3000 euros. (N. do R.)