As circunstâncias são historicamente inéditas. A eleição é a primeira de três que poderão mudar o cenário político europeu, sendo as outras a francesa (entre 23 de abril e 7 de maio) e a alemã (24 de setembro). E é a primeira depois do plebiscito britânico que vai levar à saída da Grã-Bretanha da União Europeia (UE). Acontece num momento em que o projeto europeu parece ameaçado em várias frentes, seja pela aparente descrença dos cidadãos comunitários nas vantagens da união, seja pela descrença nos políticos e no sistema político tanto ao nível nacional como comunitário, seja por causa das ameaças ao padrão de vida do continente, vindas das minorias étnicas e religiosas e da entrada maciça de refugiados muçulmanos. No panorama internacional, também a coesão da Europa estaria ameaçada pela mudança da política norte-americana e pelo novo expansionismo da Federação Russa.
Quanto às particularidades do caso holandês, compreendem-se melhor conhecendo o cenário. Tradicionalmente, sempre houve uma grande quantidade de partidos – 28 atualmente – e sempre foi necessário formar coligações para governar. O último governo de um só partido ocorreu em 1891. Desde novembro de 2012 e até à eleição de hoje, o executivo é uma coligação de dois partidos, o chamado Gabinete Rute-Asscher, constituído pelo Partido Popular pela Liberdade e Democracia, VVD (liberal conservador), e o Partido Trabalhista, PvdA. O primeiro tem 24 deputados e o segundo nove, ou seja, formam um governo minoritário. O segundo partido mais votado em 2012 foi o Partido para a Liberdade, PVV (direita radical), com 22 deputados. É o partido de Geert Wilders, 53 anos, o político de que toda a Europa fala, pela sua personalidade carismática e ideologia extremista.
O PVV chegou a fazer parte da coligação governativa entre 2010 e 2012, mas rapidamente se incompatibilizou com os outros e afastou-se – ou foi afastado, conforme as opiniões. Na última sondagem, realizada este domingo, o PVV aparece com o maior número de intenções de voto, 15%, o que lhe daria 30 deputados, o dobro das eleições de 2012. O VVD de Mark Rutte, atual primeiro-ministro, tem a perspetiva de descer dos 41 deputados de 2012 para apenas 24.
Esta expectativa faria do PVV o vencedor das eleições, mostrando uma maior aceitação para as propostas de Wilders que, basicamente, quer fechar as mesquitas, banir o Corão, fechar as fronteiras a novos imigrantes muçulmanos, expulsar ou dificultar a vida dos que já vivem no país, e deixar a União Europeia.
Atualmente, a Holanda, com 17 milhões de habitantes, tem 3,8 milhões de imigrantes ou descendentes de imigrantes, dos quais 2,1 milhões não europeus (magrebinos, turcos, orientais).
A pulverização partidária pode de facto levar a que o PVV ganhe as eleições com apenas 15-20% dos votos, mas isso não significa que venha a governar. Antes pelo contrário, essa probabilidade é praticamente nula, uma vez que o PvdA, o SP (socialistas radicais) e os verdes, que juntos dão à esquerda 28%, assim como o VVD e o CDA (cristãos democratas) à direita, já disseram que em nenhumas circunstâncias aceitarão governar com Geert Wilders.
A imigração tornou-se o grande tema da campanha, exacerbada pela recente crise diplomática com a Turquia. Mas Rutte tomou uma posição firme ao impedir a entrada de dois ministros turcos que se propunham fazer propaganda para um plebiscito na Turquia, marcado para 16 de abril, que visa dar maiores poderes a Erdogan. Deste modo, conseguiu que a situação não desse mais cartas a Wilders, apesar das cenas de pancadaria entre polícias e imigrantes turcos nas ruas de Roterdão.
Em geral, os holandeses orgulham-se da sua tolerância e acham que as medidas propostas por Wilders vão contra a História do país, que sempre recebeu os perseguidos de todas as origens (como os judeus portugueses expulsos por D. Manuel I). Mas há também aqueles que temem que os imigrantes possam influenciar mudanças de comportamento e até as amplas liberdades de que o país se orgulha.
(Entre estes até há imigrantes europeus, como é o caso do escritor Rentes de Carvalho, há 40 anos radicado na Holanda, e que numa recente entrevista chocou as redes sociais ao dizer que votará em Wilders.)
Mas a eleição não é apenas sobre as questões de migração. A economia holandesa é a mais sólida da UE, com um crescimento de 2%, baixo desemprego e inflação abaixo de 1%. Contudo, os eleitores da classe média baixa acham que Rutte é responsável pelas medidas de austeridade impostas por Bruxelas, especialmente uma redução da assistência social e cuidados aos idosos. E ressentem os enormes custos de apoio aos imigrantes, que somam maior desemprego e criminalidade. E, embora ninguém aceite a proposta de Wilders de sair da Europa, há um sentimento anti-europeu palpável.
Os dois debates entre Rutte e Wilders foram muito intensos, com os dois políticos literalmente frente a frente, de pé a uma distância de meio metro, atacando as ideias do opositor sem dó nem piedade, com uma crueza impensável em Portugal. Contudo, imóveis e sempre educados, não usaram exclamações intempestivas ou vocabulário menos institucional. Wilders acusou Rutte de não ter sido mais incisivo com os turcos, expulsando o embaixador e fechando a embaixada, enquanto Rutte fez troça da proposta do outro de banir o Corão: “Vai andar de porta em porta a confiscar o livro?” Nos inquéritos de rua feitos após os debates, a maioria dos holandeses pareceu mais inclinados a aceitar a moderação de Rutte.
Muitos comentadores têm comparado Wilders a Donald Trump: a comunicação através do Twitter, o corte de cabelo original, a retórica – “elites esquerdistas e elitistas”, “lixo marroquino” e expressões semelhantes, até o casamento com uma mulher do Leste europeu. Mas as diferenças são maiores do que as semelhanças. Wilders é mais concentrado nos seus objetivos, mais ideológico e tem experiência política. O jornalista Russell Shorto, no “The New Yorker”, considera que o holandês é mais perigoso precisamente por ser mais coerente ideologicamente. “Enquanto Trump pode ficar para a História como um exibicionista errático que subiu à custa de algumas ideias dos populistas anti-sistema, Wilders representa uma ameaça real ao nível global”, considera Shorto.
O facto é que Wilders tem tido o apoio dos ultra-conservadores norte-americanos, que gostam da sua postura anti-União Europeia e anti-Islão. O conservador David Horowitz doou cerca de 130 mil euros ao Partido da Liberdade, a maior contribuição numa campanha eleitoral holandesa.
O congressista republicano Steve King, aliado de Trump e da extrema-direita europeia, encontrou-se com diversos políticos europeus e elogiou-os, especialmente a Wilders. A Fundação Fórum do Médio Oriente, dirigida por Daniel Pipes, um historiador da direita radical, ajudou a pagar as custas processuais quando Wilders foi a julgamento por ter feito declarações anti-islâmicas violentas que são crime na Holanda. Outras fundações do mesmo cariz têm pago viagens de Wilders aos Estados Unidos e outras despesas.
Mas então, se Wilders não consegue formar governo, mesmo que ganhe as eleições de hoje, qual o perigo real que representa? Numa vertente, um bom resultado mostrará qual a tendência de um eleitorado que, não sendo grande no contexto do continente, influenciará os eleitorados de outros países maiores. Noutra vertente, o Governo de coligação que sair das eleições sentir-se-á pressionado a tomar atitudes mais duras em relação aos imigrantes e refugiados.
O que acontecer hoje na Holanda, pode ser o sinal do que acontecerá amanhã na Europa.
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