Esta quarta-feira, o Presidente da República enviou o decreto do parlamento que despenaliza a morte medicamente assistida para o Tribunal Constitucional para fiscalização preventiva da sua constitucionalidade. Porquê?

  • A justificação

O Presidente justifica o envio, numa mensagem publicada na página da Presidência da República na Internet, recordando que "em 2021, o Tribunal Constitucional formulou, de modo muito expressivo, exigências ao apreciar o diploma sobre morte medicamente assistida – que considerou inconstitucional – e que o texto desse diploma foi substancialmente alterado pela Assembleia da República”.

“A certeza e a segurança jurídica são essenciais no domínio central dos direitos, liberdades e garantias”, considera.

Na mensagem, Marcelo escreve que “por outro lado, de acordo com a jurisprudência constante do Tribunal Constitucional, parece não avultar, no regime substantivo do diploma, um interesse específico ou diferença particular das Regiões Autónomas”.

O Presidente recorda, contudo, que "quanto ao acesso dos cidadãos aos serviços públicos de Saúde, para a efetiva aplicação desse regime substantivo, o diploma só se refere a estruturas competentes exclusivamente no território do Continente (Serviço Nacional de Saúde, Inspeção-Geral das Atividades de Saúde, Direção-Geral de Saúde), em que não cabem as Regiões Autónomas”.

“O que significa que diploma complementar, que venha a referir-se aos Serviços Regionais de Saúde, que são autónomos, deverá, obviamente, envolver na sua elaboração os competentes órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira”, defende.

Marcelo tomou esta decisão logo depois de a Assembleia da República ter enviado hoje o decreto para o Palácio de Belém.

  • O que diz o requerimento enviado ao Tribunal Constitucional?

No requerimento dirigido aos juízes do Palácio Ratton, Marcelo defende que, "como já teve ocasião de afirmar o Tribunal Constitucional, uma indefinição conceptual não pode manter-se, numa matéria com esta sensibilidade, em que se exige a maior certeza jurídica possível”.

O chefe de Estado português lembra que o decreto da Assembleia da República aprovado em 9 de dezembro “pretendeu sanar as contradições apontadas à versão anterior, optando por um regime menos restritivo no tocante à morte medicamente assistida não punível, ao suprimir a existência de doença fatal e a alusão a “antecipação da morte””.

Em conformidade com a clarificação efetuada, continua Marcelo no texto, “a situação relativa à gravidade da doença legitimadora da morte medicamente assistida não punível passou a ser a de “doença grave e incurável”, definida como “doença que ameaça a vida, em fase avançada e progressiva, incurável e irreversível, que origina sofrimento de grande intensidade”.

“A dúvida que se pode suscitar é a de saber se esta nova definição, e, em particular, a alusão a 'grande intensidade' é de molde a corresponder à densificação e determinabilidade exigida pelo antes aludido Acórdão do Tribunal Constitucional, tendo em consideração a supressão do requisito da 'doença fatal' e da alusão à 'antecipação da morte'”, lê-se no texto.

Marcelo salienta ainda que, de acordo com o n.º 1 do artigo 3.º do decreto, “parece que a exigência de verificação de situação de sofrimento de grande intensidade ocorre tanto quando exista lesão definitiva de gravidade extrema como nos casos de doença grave e incurável”.

No artigo em causa, “considera-se morte medicamente assistida não punível a que ocorre por decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em situação de sofrimento de grande intensidade, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde”.

No entanto, o chefe de Estado aponta que numa outra alínea do artigo 2.º, na definição de “lesão definitiva de gravidade extrema” não é referido o “sofrimento de grande intensidade”.

No anterior acórdão do TC, de março de 2021, os juízes consideravam que o artigo que estabelecia as condições em que a morte medicamente assistida não era punível, por falta de "densidade normativa", violava "o princípio da determinabilidade da lei corolário dos princípios do Estado de direito democrático e da reserva de lei parlamentar, decorrentes das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa, por referência à inviolabilidade da vida humana, consagrada no artigo 24.º da mesma Lei Fundamental".

O artigo 2.º da Constituição descreve a República Portuguesa como "um Estado de direito democrático", baseado "no respeito e na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais". O artigo 165.º, n.º 1, alínea b) da Lei Fundamental estabelece que "é da exclusiva competência da Assembleia da República" legislar sobre "direitos, liberdades e garantias".

No requerimento hoje enviado ao TC, Marcelo pede aos juízes que verifiquem a constitucionalidade de várias normas do decreto, com base exatamente nos mesmos artigos da lei fundamental.

  • O comentário de Marcelo Rebelo de Sousa à própria decisão

Depois da cerimónia em que empossou oito novos membros do Governo, o Presidente da República falou aos jornalistas, começando por recordar que antes [na última ocasião em que tinha enviado a lei para análise do órgão] tinha perguntado ao TC se as expressões utilizadas no diploma sobre eutanásia eram suficientemente concretas para darem uma certeza de direito na sua aplicação.

“O TC entendeu que não e pronunciou-se pela inconstitucionalidade de algumas regras do diploma, que voltou à Assembleia [da República], a Assembleia alterou essas regras e ficaram algumas contradições entre regras. E eu devolvi à Assembleia para ela ultrapassar essa contradição, o que fez” já nesta legislatura, apontou.

O Presidente da República observou a seguir que o parlamento optou agora, “entre vários caminhos que o TC tinha apontado, por um dos caminhos: Foi o de excluir a exigência de doença fatal e adotou fórmulas diferentes daquelas que tinham sido adotadas na primeira versão que foi ao Tribunal Constitucional”.

Segundo o chefe de Estado, “por uma questão de certeza de Direito”, perguntou ao TC se essas “novas fórmulas preenchiam as exigências que tinha formulado da primeira vez em que o decreto foi apreciado e considerado inconstitucional.

“Isto é importante porque é uma lei que, a ser promulgada, vai ser aplicada por vários tribunais e em várias situações. E convém que haja uma certeza de Direito quanto àquilo que é o entendimento da Constituição sobre o texto último, mais recente, da lei”, alegou.

Para Marcelo Rebelo de Sousa, importa saber se o TC considera que, na última formulação aprovada pelo parlamento, “estão preenchidas as exigências de densificação e de concretização, que foram exigências que formulou naquela que considerou inconstitucional. Agora é saber se esta versão última adotada pela Assembleia da República preenche ou não as exigências que o TC formulou quando se pronunciou pela inconstitucionalidade de uma versão anterior”, frisou.

Ainda em relação ao decreto que hoje mesmo saiu do parlamento para a Presidência da República, Marcelo Rebelo de Sousa deixou outra observação: “A questão agora é que a Assembleia [da República] optou por não exigir a doença fatal”.

“Portanto, escolheu, se quiserem, a versão mais ampla, mais liberal de regime de morte medicamente assistida”, salientou.

Interrogado sobre o motivo de ter enviado o diploma da morte medicamente assistida para o TC minutos antes do início da cerimónia de posse de novos ministros e secretários de Estado, o Presidente da República procurou separar as duas situações, dizendo que recebeu esta tarde o decreto proveniente do parlamento.

“Foi o tempo de chegar até Belém o decreto, cujo conteúdo já se conhecia, mas que não tinha chegado, e chegou a meio da tarde. E, portanto, foi logo a seguir que assinei as cartas. Porque, entretanto, não foi só uma carta para o presidente do TC, foi uma carta para o presidente da Assembleia dos Açores e uma carta para o presidente da Assembleia da Madeira a explicar porque é que não acolhia os seus pedidos”, justificou.

  • Como foi a aprovação da lei no Parlamento?

A Assembleia da República aprovou em 9 de dezembro a despenalização da morte medicamente assistida em votação final global, pela terceira vez, com votos da maioria da bancada do PS, IL, BE, e deputados únicos do PAN e Livre e ainda seis parlamentares do PSD.

Votaram contra a maioria da bancada do PSD, os grupos parlamentares do Chega e do PCP e seis deputados do PS.

Quatro deputados (três do PSD e um do PS) abstiveram-se. No total, estiveram presentes em plenário 210 deputados.

  • Qual a diferença em relação ao último decreto?

O decreto tem por base projetos de lei do PS, IL, BE e PAN, e estabelece que a “morte medicamente assistida não punível” ocorre “por decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em situação de sofrimento de grande intensidade, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde”.

Desta vez, em comparação ao último decreto, os deputados deixaram cair a exigência de "doença fatal".

O decreto estabelece ainda um prazo mínimo de dois meses desde o início do procedimento para a sua concretização, sendo também obrigatória a disponibilização de acompanhamento psicológico.

Depois da publicação do decreto no Diário da Assembleia da República, o Chega reclamou da redação final da lei da eutanásia, alegando que as alterações feitas levantam "indesejáveis dúvidas e incertezas jurídicas de interpretação normativa".

Em 23 de dezembro esta reclamação foi rejeitada pelo presidente do parlamento, Augusto Santos Silva, que justificou que a redação final não modificou o pensamento legislativo, limitando-se a aperfeiçoar texto e estilo.

  • Porque é que Marcelo já tinha vetado duas vezes a lei da eutanásia?

Na anterior legislatura, a despenalização, em certas condições, da morte medicamente assistida, alterando o Código Penal, reuniu maioria alargada no parlamento, mas foi alvo de dois vetos do Presidente da República: uma primeira vez após o chumbo do Tribunal Constitucional, na sequência de um pedido de fiscalização de Marcelo Rebelo de Sousa. Numa segunda vez, o decreto foi de novo rejeitado pelo Presidente depois de um veto político.

O chefe de Estado vetou este último decreto em novembro de 2021, realçando que o novo texto utilizava expressões diferentes na definição do tipo de doenças exigidas e defendeu que o legislador tinha de optar entre a "doença só grave", a "doença grave e incurável" e a "doença incurável e fatal".

Na nota justificativa desse veto, Marcelo escreveu que no caso de a Assembleia da República querer "mesmo optar por renunciar à exigência de a doença ser fatal, e, portanto, ampliar a permissão da morte medicamente assistida" – algo que acontece neste decreto - optará por uma “visão mais radical ou drástica” e questionou se isso corresponde “ao sentimento dominante na sociedade portuguesa”.

  • Quando é que se pode esperar por uma resposta do Tribunal Constitucional?

Segundo a Constituição da República, “o Tribunal Constitucional deve pronunciar-se no prazo de vinte e cinco dias”, o que aponta o prazo limite para final do mês de janeiro.