
O relatório, publicado no final de junho, indica que o número de casos subiu drasticamente em 2018, com 104 cidadãos criminalizados, o dobro de 2017.
“A criminalização da solidariedade não afeta apenas os defensores dos direitos humanos, voluntários e tripulantes de navios humanitários que operam no mar, mas também cidadãos normais, médicos, jornalistas, autarcas e líderes religiosos”, salienta-se no documento, intitulado “Repressão das ONG e voluntários que ajudam refugiados e outros migrantes”.
A Grécia, com 53 processos, Itália (38) e França (31) foram os países que registaram mais casos, mas a ReSOMA identificou também cidadãos e Organizações Não-Governamentais investigados na Bélgica, Croácia, Dinamarca, Alemanha, Holanda, Espanha, Suécia e Reino Unido.
Esses países estão na linha da frente dos fluxos migratórios, embora de maneiras diferentes, indica a ReSOMA.
Croácia, Grécia, Itália e Espanha tornaram-se recentemente destinos de eleição para pessoas que procuram proteção internacional e representam as fronteiras externas da Europa. A Bélgica, a Dinamarca, a França, a Alemanha, os Países Baixos, a Suécia e o Reino Unido são países de destino final que adotaram, em alguns casos, políticas restritivas em gestão de fronteiras. O estudo refere que faltam dados sobre casos de criminalização da solidariedade nos países da Europa de Leste e aponta a necessidade de reforçar investigação nesta área.
O levantamento feito pela ReSOMA permitiu perceber que o número de casos aumentou exponencialmente após 2015, quando apenas oito casos foram identificados.
O ano de 2018 bateu recordes, com um total de 24 casos, envolvendo 104 pessoas em sete Estados-membros, enquanto no primeiro trimestre de 2019 existiam 15 processos em curso em seis países, envolvendo 79 cidadãos e voluntários. Em 2016 e 2017, foram detetados 39 casos implicando 96 pessoas.
A duração média destes casos foi de dois anos.
Entre os 158 processos, 83 envolvem facilitação de entrada ou trânsito de migrantes, 18 facilitação de estadia ou residência e 57 pessoas são investigadas por facilitar a entrada e permanência de migrantes e outros motivos, incluindo associação criminosa, sabotagem, gestão ilegal de resíduos ou lavagem de dinheiro.
Dezasseis ONG e associações foram também afetadas pela criminalização formal ou investigação dos seus voluntários: Association nationale d'assistance aux frontières pour les étrangers (anafé), Are you Syrious (AYS), Calais Action, Calais Solidarité, Jugend Rettet, Habitat E Citoyenneté, Open Arms, Médicins Sans Frontières (MSF), Mediterranea Saving Humans, Plateforme pour le Service Citoyen, PROEM-AID, Team Humanity, Emergency Response Centre International’s (ERCI), Roya Citoyenne, Sea Watch, Walking and Borders NGO.
A ReSOMA identificou 17 casos que em que foram condenadas 30 pessoas que atuavam com objetivos humanitários ou de reagrupamento familiar em seis estados-membros, com a França a liderar as condenações: pelo menos 19 pessoas, incluindo defensores dos direitos humanos, voluntários e cidadãos comuns.
Em Portugal, o rosto da criminalização humanitária tem sido Miguel Duarte, um português de 26 anos que está a ser investigado em Itália por auxílio à imigração ilegal juntamente com outros nove tripulantes do navio Iuventa da ONG alemã Jugend Rettet.
Segundo informações do Ministério dos Negócios Estrangeiros, o Governo português acompanhou também, em 2018, através da secção consular da Embaixada de Portugal em Atenas, uma cidadã portuguesa residente no estrangeiro, indiciada e julgada, na Grécia, sob acusação de auxílio à imigração ilegal, cujo processo terminou, entretanto.
Outros casos mediáticos têm sido os da jovem ativista síria refugiada Sarah Mardini, que já passou 106 dias em prisões gregas, tendo sido libertada sob caução; ou de Carola Rackete, a capitã do navio "Sea Watch 3" suspeita em Itália de ajuda à imigração ilegal.
O trabalho da ReSOMA centrou-se em investigações e processos formais levados a cabo pelas autoridades nacionais ao abrigo da “Diretiva Auxílio” (facilitação de entrada, trânsito e irregulares).
A ReSOMA é um projeto com a duração de dois anos financiado por fundos europeus.
Auxílio só é crime se for provado lucro em quatro países, um deles é Portugal
Portugal, Alemanha, Irlanda e Luxemburgo são os únicos países da União Europeia (UE) onde o auxílio à entrada irregular de imigrantes só é crime se existirem benefícios financeiros, revela a ReSOMA (Plataforma Social de Investigação sobre Migração e Asilo).
De acordo com o relatório, a facilitação da entrada, mesmo sem fins lucrativos, é atualmente considerada crime em 24 dos 28 países da UE: Áustria, Bélgica, Bulgária, Croácia, Chipre, República Checa, Dinamarca, Estónia Finlândia, França, Grécia, Hungria, Itália, Letónia, Lituânia, Malta, Holanda, Polónia, Roménia, Eslováquia, Eslovénia, Espanha, Suécia e Reino Unido.
O principal instrumento legislativo comunitário para combater o tráfico de pessoas é o chamado “pacote relativo a passadores”, de 2002, que inclui a Diretiva “Auxílio” (relativa à definição do auxílio à entrada, trânsito e residência irregulares) e a sua Decisão-Quadro que reforça o quadro penal para prevenir este auxílio.
Segundo os investigadores, este pacote legislativo constitui a base das atuais políticas europeias contra o tráfico de migrantes e criminaliza a facilitação da entrada, trânsito e residência não autorizados, sendo Portugal uma das quatro exceções, já que exige que seja provado em tribunal que foram obtidos ganhos financeiros.
O relatório destaca que, em metade dos países europeus, a facilitação de residência e estadia, mesmo sem objetivos lucrativos, é suficiente para ser considerada crime ou delito (Bélgica, Croácia, Dinamarca, Estónia, Finlândia, França, Grécia, Letónia, Lituânia, Malta, Roménia e Reino Unido).
A principal lacuna deste pacote, salienta o documento, é o facto de não exigir que haja benefícios financeiros ou de outra natureza para que o tráfico de migrantes seja considerado um crime, pelo que não cumpre as normas das Nações Unidas definidas no Protocolo contra o Contrabando de Migrantes.
“A legislação da UE dá aos Estados-membros uma ampla margem de discricionariedade para decidir qual é o crime que está na base do contrabando de migrantes. Consequentemente, no que diz respeito à facilitação da entrada, o requisito do benefício financeiro na maioria dos Estados-membros da UE não faz parte do crime base, sendo usado apenas como uma circunstância agravante”, diz o relatório.
No entanto, o Protocolo da ONU define que “o contrabando de migrantes” significa a “facilitação, a fim de obter, direta ou indiretamente, um benefício financeiro ou material com entrada ilegal de uma pessoa num Estado onde não é residente”, pelo que é essencialmente “um serviço pago prestado por um contrabandista a um migrante, a fim de contornar os controles fronteiriços, contando com o consentimento implícito do migrante”.
Na UE, os Estados-membros podem decidir se os elementos da sociedade civil e os familiares dos migrantes estarão excluídos da criminalização.
A partir de 2017, foram introduzidas na legislação da Bélgica, Grécia, Espanha, Finlândia, Itália, Malta e Reino Unido algumas exclusões, mas foram também relatados processos contra voluntários ligados a ONG de ajuda humanitária.
“A aplicação destas exclusões dá-se em situações muito limitadas de vida ou morte, como, por exemplo, nas zonas marítimas de busca e salvamento (SAR), ignorando noções mais alargadas de defesa dos direitos fundamentais dos refugiados e outros migrantes”, nota a ReSOMA.
O documento refere que as ONG que operam nas SAR de Itália e Grécia eram inicialmente vistas como aliadas pela guarda costeira, ajudando a lidar com o número sem precedentes de chegadas.
Só mais tarde começaram a ser encaradas com suspeição pelas autoridades nacionais e agências da UE, passando a ser consideradas como um fator de atração que encoraja a migração irregular.
O relatório ilustra ainda as dificuldades em aceder a financiamentos europeus.
A maioria dos fundos é atribuída diretamente aos Estados-membros, que podem impor “restrições ao financiamento de organizações da sociedade civil e autarquias que asseguram serviços essenciais para migrantes irregulares”.
Enquanto em países como Portugal, Finlândia, Eslováquia e Espanha, os projetos financiados pelo Fundo para o Asilo, a Migração e a Integração (FAMI) têm sido implementados pela sociedade civil, noutros como a Estónia e Polónia estes programas são essencialmente liderados pelo Estado.
Por outro lado, as ONG enfrentam uma crescente desconfiança pública com impacto na diminuição dos donativos, “o que pode comprometer o seu envolvimento efetivo nas operações no Mediterrâneo e a sua capacidade de promover os direitos humanos e os valores europeus fundamentais”.
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