A comissão de peritos que conduziu o trabalho diz que a atual ênfase excessiva em tratamentos agressivos para prolongar a vida, as vastas desigualdades globais no acesso a cuidados paliativos e os altos custos médicos no final da vida “levaram milhões de pessoas a sofrer desnecessariamente no fim da vida”.

Os especialistas pedem um maior equilíbrio nas atitudes públicas relativamente à morte e ao ato de morrer, longe da abordagem estreitamente medicalizada e em direção a um modelo comunitário com maior compaixão, “onde comunidades e famílias trabalhem com serviços de saúde e assistência social para cuidar das pessoas que estão a morrer”.

A comissão, que juntou especialistas em saúde e assistência social, ciências sociais, economia, filosofia, ciência política, teologia e trabalho comunitário, bem como doentes, analisou a forma como as sociedades de todo o mundo gerem a morte e os cuidados de pessoas que morrem, elaborando recomendações aos formuladores de políticas, governos, sociedade civil e sistemas de saúde e assistência social.

“A pandemia de covid-19 viu muitas pessoas morrerem numa morte medicalizada, muitas vezes sozinhas, apenas na presença de funcionários protegidos por máscaras em hospitais e unidades de cuidados intensivos, incapazes de comunicarem com as suas famílias, exceto digitalmente”, sublinhou Libby Sallnow, especialista em medicina paliativa e co-presidente da comissão.

“A forma como as pessoas morrem mudou drasticamente nos últimos 60 anos, passando de um evento familiar com apoio médico ocasional, para um evento médico com apoio familiar limitado” afirmou a especialista, defendendo: “É necessário repensar a forma como cuidamos dos moribundos, as nossas expectativas em relação à morte e as mudanças necessárias na sociedade para reequilibrar nosso relacionamento com a morte”.

O grupo de peritos concentrou-se principalmente no momento em que uma pessoa é diagnosticada com uma doença ou uma lesão que limita a sua vida, até à sua morte e ao luto que afeta a vida dos familiares. Não abrange mortes súbitas ou violentas ou mortes de crianças.

Da análise feita, concluíram que, ao longo dos últimos 60 anos, a morte deixou de acontecer num ambiente familiar e comunitário para se tornar na principal preocupação dos sistemas de saúde. No Reino Unido, por exemplo, apenas uma em cada cinco pessoas que necessitam de cuidados de fim de vida está em casa, enquanto cerca de metade está no hospital.

De acordo com o estudo publicado na Lancet, a esperança de vida aumentou de forma constante de 66,8 anos em 2000 para 73,4 anos em 2019. Contudo, as pessoas também vivem mais tempo com problemas de saúde, tendo igualmente aumentado de 8,6 (em 2000) para 10 (em 2019) o número de anos que se vive com doença.

O trabalho lembra que, antes da década de 1950, as mortes eram predominantemente resultado de uma doença ou lesão aguda, com baixo envolvimento de médicos ou da tecnologia. Hoje, “a maioria das mortes são por doenças crónicas, com alto nível de envolvimento dos médicos e da tecnologia”, sublinham.

“A ideia de que a morte pode ser derrotada é alimentada ainda mais pelos avanços da ciência e da tecnologia, que também aceleraram a dependência excessiva de intervenções médicas no final da vida”, insistem os investigadores.

Os peritos defendem ainda que, à medida que a saúde passou para o centro da questão, “famílias e comunidades foram cada vez mais alienadas”.

“A linguagem, o conhecimento e a confiança para apoiar e gerir a morte foram lentamente perdidos, alimentando ainda mais a dependência dos sistemas de saúde”, explicam.

Insistem que, muitas vezes, as conversas sobre a morte e o ato de morrer, quando acontecem, ocorrem em tempos de crise. “Muitas vezes não acontecem”, lembram.

Os peritos reconhecem ainda que, embora os cuidados paliativos tenham ganhado atenção como especialidade, “mais de metade de todas as mortes acontecem sem cuidados paliativos ou alívio da dor e as desigualdades sociais e de saúde persistem na morte”.

Dizem que as intervenções médicas geralmente continuam “até os últimos dias com atenção mínima ao sofrimento” e que a cultura médica, o medo de litígios e os incentivos financeiros “também contribuem para o tratamento excessivo no final da vida, alimentando ainda mais as mortes institucionais e a sensação de que são os profissionais [de saúde] que devem gerir a morte”.

Consideram que uma parte desproporcional do gasto anual total nos países mais ricos vai para o tratamento daqueles que morrem, sugerindo que os tratamentos paliativos no final da vida “estão a ser oferecidos num patamar muito mais elevado”.

Nos países mais ricos, entre 8% e 11,2% do gasto anual em saúde para toda a população foi aplicado nos menos de 1% que morreram naquele ano. “Os cuidados no último mês de vida são dispendiosos e, em países sem cobertura universal de saúde, podem ser uma causa de as famílias caírem na pobreza”, refere a investigação.

“Morrer faz parte da vida, mas tornou-se invisível e a ansiedade sobre a morte e o ato de morrer parece ter aumentado. Os sistemas atuais aumentaram tanto o subtratamento quanto o sobretratamento no final da vida, reduziram a dignidade, aumentaram o sofrimento e permitiram um mau uso dos recursos”, defendem.

“Os serviços de saúde tornaram-se os guardiões da morte e é necessário um reequilíbrio fundamental na sociedade para reexaminar a nossa relação com a morte”, diz o Dr. Richard Smith, copresidente da comissão.

Os peritos definem cinco princípios para uma nova visão da morte e do ato de morrer, considerando que devem ser enfrentados os “determinantes sociais da morte” para permitir que as pessoas tenham uma vida mais saudável e morram de forma mais justa.

Defendem que morrer deve ser entendido como um processo “relacional e espiritual”, em vez de simplesmente fisiológico, e que se devem incluir as famílias e os membros da comunidade nas redes de cuidados às pessoas que estão em fim de vida.

Sugerem também que devem ser incentivadas as conversas e histórias sobre a morte, o ato de morrer e o luto e defendem que a morte deve ser reconhecida como tendo valor. “Sem a morte, todo nascimento seria uma tragédia”, insistem.

Especialistas querem famílias e comunidades mais envolvidas nos cuidados em fim de vida

Os peritos sugerem ainda mudanças para um maior envolvimento das famílias e da comunidade nos cuidados em fim de vida.

“Cuidar dos moribundos envolve incutir significado ao tempo que resta. É um momento para alcançar o conforto físico, para chegar à aceitação e fazer as pazes consigo mesmo, para muitos abraços, para reparar pontes quebradas de relacionamentos e para construir novas. É tempo de dar amor e receber amor, com dignidade. Cuidados paliativos respeitosos facilitam isso. Mas isso só pode ser alcançado com uma ampla conscientização e ação da comunidade para mudar o status quo”, defende o coautor do trabalho M.R. Rajagopal, da Índia.

O grupo de peritos analisou a forma como as sociedades de todo o mundo gerem a morte e os cuidados às pessoas que estão em fim de vida, elaborando recomendações aos formuladores de políticas, governos, sociedade civil e sistemas de saúde e assistência social.

Entre as diversas recomendações, os peritos incluem a educação sobre a morte, o ato de morrer e os cuidados no final da vida para pessoas em fim de vida, as suas famílias e profissionais de saúde e assistência social.

Defendem também que o acesso ao alívio da dor no final da vida deve ser uma prioridade global, que a gestão do sofrimento deve estar ao lado do prolongamento da vida como uma prioridade na assistência à saúde e que se deve falar mais sobre a morte e o luto.

Recomendam maior apoio das redes de cuidado às pessoas que estão a sofrer e a morrer e para quem cuida e defendem que os pacientes e as suas famílias devem receber informações claras sobre as incertezas, bem como os potenciais benefícios, riscos e danos das intervenções em doenças potencialmente limitantes da vida para permitir decisões mais informadas.

Outra das recomendações dos peritos é que os governos criem e promovam políticas de apoio aos cuidadores informais e licenças remuneradas por luto em todos os países.

A comissão reconhece, contudo, que estão a acontecer “pequenas mudanças”, com o aparecimento de modelos de ação comunitária para discutir a morte, alterações nas políticas nacionais para apoiar o luto ou o facto de alguns hospitais estarem a trabalhar mais em parceria com as famílias.

Embora a mudança em grande escala leve tempo, os peritos apontam para o exemplo de Kerala, na Índia, onde, nas últimas três décadas, a morte e o ato de morrer foram reivindicados como uma preocupação e responsabilidade social por um amplo movimento social composto por dezenas de milhares de voluntários, complementado por mudanças nos sistemas políticos, legais e de saúde.

“Todos nós vamos morrer. A morte não é apenas ou, até mesmo, sempre um evento médico. A morte é sempre um evento social, físico, psicológico e espiritual e, quando a entendemos como tal, valorizamos mais corretamente cada participante deste drama”, acrescenta o coautor do trabalho, Mpho Tutu van Furth, padre em Amstelveen, na Holanda.