Prólogo

De partida para o front

DIÁRIO DE CAMPANHA

Enquanto o sol se punha no azul violáceo da barra de Lisboa, o casario da cidade ficava para trás, a desaparecer na foz do Tejo. As gaivotas em voo picado acompanhavam os dois navios que, lentamente primeiro, e a ganhar vapor depois, se faziam ao mar nesse quente fim de tarde de Agosto de 1917. Ainda agora a viagem começara e já a noite caía, densa e inquietante, a lembrar o desconhecido que aí vinha. A poucos meses de fazer 24 anos, João de Mello partia para a frente de batalha, em França, num desses navios que navegavam sob pavilhão inglês. Talvez para enganar o medo, ou quem sabe matar o tempo, o jovem oficial português decide então tomar nota «das pequenas cousas interessantes» que está a viver, iniciando desse modo um diário que intitulará «Em Campanha». Fiel companheiro da imprevisível aventura que então se inicia, o relato desse diário começa assim:

Diário de João de Mello:
21 de Agosto de 1917

A Viagem – Era quasi noite, quando o vapor começou a andar. Todos nós íamos bastante preocupados com a ideia dos submarinos, agravada com o medo que nos metiam os oficiais de bordo, sobretudo um tal Salgado, oficial da marinha portugueza, que se distinguia imenso nos horrores com que pintava um ataque d’um submarino de noite. A mim o que me custava ainda mais do que tudo, era a companhia. Só tinha como companheiros de viagem oficiaes do quadro auxiliar, tudo tipos muito ordinários, com quem era impossível conversar.

No dia seguinte ao da partida, tive ocasião de ver bem a infâmia que era o transporte. Os homens iam empilhados no convéz, ahi dormiam, ahi comiam, e passavam o dia. Logo no primeiro dia, quando começou tudo a enjoar não se pode descrever a porcaria em que tudo ficou. Os officiaes iam n’uma espécie de porão nojento. Enfim, tudo como bons e passivos carneiros. Não sei que tal seriam os outros transportes, mas os meus companheiros de viagem que digam se eu exagero. Os ingleses, já se sabe, não nos ligavam nenhuma. Mas que viagem tão diferente das outras que eu tinha feito quando estava na Suíssa e vinha passar férias a Portugal. No último dia de viagem aproveitei o pretexto de estar enjoado para ficar todo o dia deitado e nem vir ver os meus companheiros.

Desde que Portugal entrara na guerra, quase há ano e meio, centenas de militares tinham seguido para a frente europeia por linha férrea, trajados à civil e em nome individual, «como quaisquer bons burgueses em pacata excursão à capital da Luz...». Todavia, a regra era que a deslocação das forças portuguesas fosse feita por mar. Tendo a vizinha Espanha, passagem inevitável no acesso terrestre a França, escolhido manter-se neutral no conflito, não havia grande alternativa. Dos irmãos Mello, filhos dos condes do Cartaxo, João era o primeiro a partir para a frente de combate. Sentia-se apreensivo, e em nada preparado para a anunciada travessia marítima. Os preparativos para o embarque tinham sido marcados por uma série de imprevistos e a despedida da família por sobressaltos variados. Além disso, estava bem consciente de que a ameaça que rondava a viagem era real e imediata.

Perante os escassos recursos da armada portuguesa, os aliados ingleses tinham cedido ao governo português sete navios para transporte das tropas nacionais para a frente de batalha no Norte de França. Foram duas dessas embarcações, o Bellerophon e o Inventor, que naquela tarde de Verão zarparam de Alcântara para o que só aparentemente constituía uma simples viagem marítima de três dias, até ao porto francês de Brest. Os perigos a enfrentar eram muito reais. No ano anterior, logo após a declaração de guerra a Portugal, a Alemanha, com ajuda dos seus submarinos – essas armas terríveis que representavam uma das grandes novidades tecnológicas do conflito mundial –, armadilhara as entradas do porto de Lisboa com mais de cem minas. Só no último mês de Abril, a marinha mercante inglesa havia perdido 100 mil toneladas de mercadoria em consequência dos ataques dos submarinos alemães que operavam com êxito no canal da Mancha, no golfo da Biscaia e ao largo da costa portuguesa.

Nesse mesmo mês, a poucas milhas de chegar ao seu destino, o navio Bohemian, que transportava o Regimento de Infantaria 10 (Bragança), fora alvo de uma tentativa de torpedeamento pelo inimigo, felizmente sem sucesso. Em Julho, porém, o caça-minas da marinha portuguesa Roberto Ivens tivera menos sorte, afundando-se em poucos minutos quando embateu numa mina alemã à entrada da barra do Tejo. Morreram o seu comandante e 15 membros da tripulação.3 Estes relatos intimidantes, que o jovem alferes Mello escuta de novo no navio que o leva a Brest, são bem conhecidos de todos, mas nem por isso deixam de ser preocupantes para os homens que vão a bordo. A inquietação e o temor serão companhia dos embarcados, do princípio ao fim da viagem, tal como o enjoo e as condições insalubres.

A grande maioria dos homens que se encontrava naqueles dois navios vinha do interior do país e nunca tinha visto o mar. Nos primeiros momentos, apinhados no convés, os soldados deleitam-se com a novidade do cenário. Porém, a excitação desse primeiro contacto com o grande azul depressa será substituída pelo enjoo provocado pelas águas picadas. Pelo menos até à passagem da Biscaia, a ondulação não amainava. Mesmo aqueles que, como João de Mello, tinham experiência de realizar viagens marítimas, dificilmente escapavam ao mal-estar generalizado. No interior do navio não se estava melhor. As áreas escuras, húmidas e sem ventilação da coberta pareciam mais pequenas e incómodas com o balançar constante. Também a forçada coabitação com os animais, incluindo os cavalos transportados juntamente com os homens para a frente de guerra, agrava as náuseas. O convés era, apesar de tudo, o lugar mais procurado, estando sempre cheio. Aos poucos, porém, também aí as condições de higiene se tornavam insuportáveis. Apesar da curta duração da travessia, a vida a bordo piorava a cada dia que passava. Indignado, João de Mello toma nota no seu pequeno diário das penosas circunstâncias daquela travessia marítima. E conclui as suas impressões ecoando um dos refrões mais repetidos da propaganda antiguerrista: que os soldados portugueses eram transportados para a guerra como «bons e passivos carneiros».

Naquele espaço estreito e empestado, mareados e quase sem forças, os homens facilmente desesperavam. Para impedir que tal acontecesse, muitos agarravam-se às recordações dos dias anteriores e a tudo o que tinham deixado ficar para trás. João de Mello não é excepção, aproveitando para apontar no seu diário as peripécias por que passara antes do embarque.

Diário de João de Mello:
21 de Agosto de 1917

Alcobaça, Regimento de Artilharia 2 – Tudo começou quando me levantei e fui de manhã ao quartel pedir ao Tenente Conceição que me emprestasse o seu cavalo para eu ir passear com o Diogo [irmão] e com o Pedro [primo direito] que me tinham ido visitar e que estavam a passar uns dias comigo em Alcobaça. Quando entrei na secretaria e olho para a cara do Conceição, vi logo que havia qualquer novidade grande. Elle estava verdadeiramente comovido e com lágrimas nos olhos. Faço aqui um pequeno apárte para dizer que o Conceição é um tenente do quadro auxiliar, mas dos poucos deste quadro com quem simpatizo. Foi elle que n’esta ocasião me disse que tinha vindo ordem para partir a columna de munições, columna que estava mobilizada há muito tempo e que devia sahir no dia 19, quer dizer d’ali a quatro dias.

Confesso que não esperava aquella notícia tão cedo, mas para mim ella por enquanto não representava a partida para a França, para mim n’aquella altura representava a sahida de Alcobaça e isso sorria-me. Já estava farto d’aquelle quartel onde não tinha companheiros, farto d’aquella terra onde vivia tão só. Mas apezar d’isto tudo, quando fui a minha casa e contei ao Diogo e ao Pedro que partia d’ali a dias para França, senti uma coisa que me apertava a garganta.

A temida notícia da partida para a frente de combate de um dos filhos dos condes do Cartaxo chegara em pleno Verão. Acontece que, como todos os anos por essa altura, Jorge e Luíza de Mello estão ausentes do país, a banhos numa estância termal dos Pirenéus franceses. A frágil saúde do conde assim o exige, e mesmo em tempo de guerra não pode descurar os tratamentos. É com urgência e ansiedade que assim que recebem a terrível notícia tentam regressar ao país para se despedirem do filho João. O tempo urge, a data de embarque está marcada para daí a cinco dias.

Dos Moonspell para a literatura. Fernando Ribeiro traz "Café Kanimambo" ao É Desta Que Leio Isto de junho

Fernando Ribeiro junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 22 de junho, pelas 21h.

O livro escolhido para leitura é "Café Kanimambo", que chegou às livrarias a 29 de maio e assinala o regresso do vocalista dos Moonspell à literatura, depois de publicar o seu primeiro romance, "Bairro sem saída", em 2021.

Além da análise da obra, esta conversa permitirá também traçar a relação entre música e literatura, aproveitando a experiência do músico em palcos por todo o mundo, com a banda portuguesa de heavy metal.

"Entre o thriller e a narrativa hardcore, 'Café Kanimambo', segundo romance de Fernando Ribeiro, é a confirmação do autor como uma das vozes mais acutilantes da nova ficção nacional, num livro perturbante que não deixará ninguém indiferente", pode ler-se na apresentação da obra.

Pode ler também um excerto deste livro aqui.

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O jovem alferes João Maria de Mello (Cartaxo) também está ansioso. Num primeiro momento recebera a novidade com alguma satisfação. Em Março, após ter cumprido pena de prisão no Forte de São Julião, em Oeiras, fora colocado no Regimento de Artilharia 2, em Alcobaça, onde se sentira muito só e desmotivado. Ao contrário do que se verificara em Viseu – onde estivera previamente e onde tinham ocorrido as peripécias que resultaram no cumprimento de uma pena de prisão –, João queixava-se de que no quartel alcobacense não só não tinha grandes amigos, como estava cansado da ingrata tarefa de dar recruta a homens que não queriam estar na tropa e muito menos ir à guerra. A verdade é que desde o primeiro momento que chegara a Alcobaça se queria ir embora. De tudo isso toma nota no pequeno diário que inicia na travessia marítima para Brest.

Diário de João de Mello:
21 de Agosto de 1917

Eu estava em Alcobaça desde o mêz de março e digo com toda a franqueza não gostava da terra. Além da terra me ser desagradável eu tinha muito trabalho com os recrutas e esperava com ansiedade o fim da escola de recruta, pois contava ser licenciado.

Ida para a Figueira – No dia [16 de Agosto] de manhã recebi um telegrama que me mandava apresentar n’esse mesmo dia na Figueira da Foz na sede do regimento. Desmanchei a minha casa à pressa, despedi-me dos meus companheiros e parti imediatamente para a Figueira. Fui logo ao quartel onde fiz conhecimento com o meu Comandante, ou melhor com o Comandante da Columna, e de quem eu ia ser ajudante. Não estive senão umas horas n’aquella cidade. Na mesma noite parti para Lisboa encarregado de receber material para a columna. Estive no Casino da Figueira, fazendo horas para o comboio e ao mesmo tempo andei com o Duque que foi aspirante na minha bataria em Alcobaça e de quem eu era muito amigo. Apezar da pressa com que tudo foi feito, até ali ainda eu estava satisfeito e com pressa de chegar a Lisboa.

Apesar do regozijo inicial com que recebe a notícia de que por fim deixava Alcobaça, João depressa cai em si e compreende que aquela é uma partida diferente. Não se tratava de voltar a casa, mas de ir para a frente de batalha no longínquo Noroeste de França. Tinha poucos dias para abandonar o quartel, voltar a Lisboa, despedir-se dos irmãos, da noiva e, com um pouco de sorte, quem sabe, talvez dos pais. Nesse espaço de tempo tinha ainda de cumprir uma série de formalidades associadas à partida e que eram da sua responsabilidade enquanto oficial da coluna de artilharia que ia embarcar. Por conseguinte, à desejada despedida daquele quartel onde nunca gostara de estar, juntavam-se, não apenas uns quantos dias de preparativos que se anunciavam difíceis, como depois o próprio desconhecido.

No final, a partida foi bem mais complicada do que o jovem alferes estava à espera. Nesses dias prévios ao embarque, João verificou em primeira mão que, para lá da retórica oficial e do desejo político de quem estava no poder, na prática o país não estava preparado para ir para a guerra. Esse seu primeiro embate com a desorganização e a fragilidade da preparação das autoridades nacionais para a beligerância foi mesmo muito duro e continuaria a repetir-se, uma e outra vez, nos meses seguintes.

Diário de João de Mello:
21 Agosto de 1917

Estada em Lisboa – Não quero de modo nenhum lembrar-me dos horríveis dias que passei em Lisboa. A pressa com que eu estava de despachar tudo no quartel-general do C.E.P. [Corpo Expedicionário Português] para poder ir para Cintra. Tinha a ingenuidade de julgar que chegava lá, entregava uma relação de material que faltava para o completo da columna, e que o quartel-general se encarregava de receber tudo e que eu ia passar aqueles dois dias a Cintra. Enganei-me. Fizeram-me andar do Q.G. para o arsenal, d’ali para a Estrella para o depósito de material sanitário, e dali ainda para o Campo Grande para o material veterinário, e tudo isto umas poucas de vezes. Andei d’um para o outro sítio, esbarrando com aquella falta de actividade tão conhecida nos nossos empregados. Em trêz dias que estive em Lisboa fui quinze vezes ao arsenal do Exército e umas poucas de vezes a cada um dos outros depósitos.

Que infame que é mandarem um oficial que está para partir, receber material, tratar de tudo isto e não lhe darem nem o último dia para estar com a família. Que mais infame ainda que é, em tempo de guerra, quando está uma unidade para partir, irem só os empregados d’um arsenal para lá ao meio-dia. Se eu pudesse começar a trabalhar todos os dias às 8 horas, o que fiz em três dias podia ter feito em dois. Que dias que eu passei...

IR À GUERRA

Como alferes miliciano de artilharia, João Maria José de Mello fora destacado para partir no contingente do Regimento de Cavalaria 2, como ajudante da coluna de munições n.º 1 que estava sob o comando do tenente-coronel Francisco de Paula Cabral. Este contingente iria engrossar as fileiras do CEP, que desde o final de Janeiro de 1917 partia em levas sucessivas para França.

Ironicamente, com a implantação da república poucos anos antes, o novo regime prometera uma considerável redução do serviço militar. A nova Lei de Recrutamento da República Portuguesa, publicada a 2 de Março de 1911, trazia consigo a proposta de várias inovações. Entre estas a adopção do sistema miliciano. Na opinião dos novos decisores políticos, o anterior sistema de exército permanente não só tinha sido pouco eficiente, como criara «uma casta à parte no seio da nação». Além disso, fora «causa do agravamento de vários males nacionais», em especial da fuga de mão-de-obra do campo para a cidade, e do consequente aumento de vagabundos e delinquentes nos grandes centros urbanos. Segundo as autoridades republicanas, o novo sistema miliciano pretendia não só resolver estes problemas, como também reduzir as deficiências qualitativas de umas forças armadas tecnologicamente atrasadas se comparadas com as suas congéneres europeias. Procuraria ainda aumentar os meios humanos dessas forças, tendo em vista as necessidades do novo tipo de guerras, que exigiam um maior número de efectivos, incluindo para tropas de reserva e de segunda linha.

Contudo, a ambição das reformas militares propostas pelas novas chefias republicanas não se ficava por aqui. Ia mais longe por duas razões principais, que muito orgulhavam o novo regime: a primeira, de valor histórico, porque vai pôr um ponto final na velha prática das remissões a troco de dinheiro; e a segunda, essencialmente ideológica, porque quer transformar o exército numa escola política e num instrumento de difusão do republicanismo junto da massa de jovens adultos que por lá tem de passar. Como era fácil de prever, a adopção deste novo sistema militar – e em especial da sua componente educativa político-ideológica – estará longe de ser unânime e isenta de complicações. Antes, o seu acolhimento é marcado por fortes reservas, não apenas em boa parte dos sectores militares, como do geral da sociedade de um país que vivia em polvorosa.

Acontece que o rebentamento da guerra na Europa, no Verão de 1914, veio tornar ainda mais desafiante este processo de transformação da instituição castrense portuguesa numa “nação em armas” como propunha a cartilha republicana. E fá-lo antes de mais porque exige o restabelecimento do serviço militar pessoal e obrigatório, com um período de instrução que, dependendo da arma, podia durar de 15 a 30 semanas. Findo esse período de instrução, aqueles que o desejassem podiam continuar ao serviço do exército e, um ano depois, passar a integrar o quadro permanente.

Livro: "Uma Família Monárquica na Guerra da República"

Autor: Lívia Franco

Editora: D. Quixote

Data de lançamento: 13 de junho

Preço: € 22,20

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É neste contexto de grande transformação político-militar que os três filhos mais velhos de Jorge José de Mello e de Maria Luíza de Lima Mayer, condes do Cartaxo, chegam à idade adulta. Em 1915, João Maria e Manuel Augusto de Mello, o segundo e o terceiro dos Cartaxo, são chamados a cumprir o serviço militar obrigatório. Com eles, no contingente desse ano, são convocados à inspecção quase 70 mil jovens. O país parecia na iminência de se juntar ao conflito, que se alargava e, talvez por isso, quase 23 mil mancebos não respondem à convocação, constituindo-se refractários. Não será essa a opção destes irmãos. Por sentido de dever patriótico, por tradição familiar, e porque o rei no exílio assim os exorta, os jovens Cartaxo não fogem às suas responsabilidades. Mesmo se estas decorrem de um regime político que não apoiam e de uma entrada na guerra que não desejam. Em conformidade, João e Manuel de Mello são alistados em Janeiro de 1916.

Quanto a José António, o mais velho dos irmãos, julgara durante algum tempo que a sua situação militar estava resolvida. Tinha sido remido antecipadamente, a 19 de Janeiro de 1911, escassos meses antes da promulgação da nova Lei de Recrutamento. Todavia, em Março de 1913, acaba por ser chamado a prestar juramento de fidelidade no Regimento de Infantaria n.º 16. Desloca-se muito a contragosto ao quartel em Campo de Ourique – afinal aquele aquartelamento contribuíra decisivamente para a vitória das forças republicanas no 5 de Outubro – para fazer o que a lei ditava. Tendo cumprido o seu dever é informado de que passava à reserva (tropas territoriais). Não obstante, três anos mais tarde, quando depois de larguíssimos meses de indefinição a Alemanha declara formalmente guerra a Portugal, a situação militar de José António é mais uma vez questionada, abrindo-se a possibilidade de ele também ser convocado para combater.

Sendo assim, na Primavera de 1916, os condes do Cartaxo vão encontrar-se numa difícil posição: o país está em guerra, dois filhos estão a cumprir o serviço militar obrigatório e outro, o mais velho, tem a sua situação militar em aberto. Consequentemente, aqueles pais têm três filhos com a possibilidade de serem mobilizados para a frente de batalha. Partirão? Todos? Quando? Com que destino? Para a frente europeia, combater ao lado dos ingleses? Para África, defender as colónias? Por quanto tempo? Estas são as interrogações suscitadas vezes sem conta por aqueles pais e o resto da família ao longo dos meses que se seguem, e que passarão lentamente, numa conjuntura de crescente volatilidade política e de grande indefinição nacional.

CEP

O CEP constituía a força expedicionária portuguesa na frente ocidental da guerra. Tinha resultado da Divisão de Instrução que, a partir de Abril de 1916, se reunira no polígono militar de Tancos sob o comando do general Fernando Tamagnini de Abreu. Aí, e durante os meses subsequentes, as tropas portuguesas haviam recebido treino com o objectivo explícito de se prepararem para combater o inimigo «no continente da República, nas nossas colónias ou em qualquer parte do mundo».

Esses meses de preparação serão referenciados pela propaganda do regime e pelos jornais a ele afectos, como o «milagre de Tancos». O seu ponto alto consistiu numa parada militar, realizada a 22 de Julho, na charneca de Montalvo, na presença do presidente da República, Bernardino Machado, das autoridades políticas e militares e de representantes do corpo diplomático. A imprensa presente delira com o que vê:

A grande parada de Montalvo, em que entraram todas as forças concentradas em Tancos, é talvez o facto mais brilhante da nossa história militar dos últimos anos. [...] Que empolgante espectáculo não foi esse! Que frémito de admiração e de entusiasmo não ganhou quantos presenciaram os movimentos, ora cadenciados, ora vertiginosos, d’essa soberba massa humana, perpassando perante a tribuna, reluzente de metaes sob a primeira ardência dos caniculares e produzindo o rumor imponente e avassalante do mar! [...] Sentia-se que, se toda aquela gente tivesse, em seguida à parada, de se lançar contra o inimigo, não haveria muralha de aço que lhe aguentasse o primeiro embate.

No segundo semestre desse ano, depois de difíceis e aturadas negociações, é estipulado entre as autoridades nacionais e os aliados ingleses que a força expedicionária portuguesa ficaria subordinada táctica e estrategicamente ao comando-chefe dos exércitos britânicos. Decide-se ainda que, constituída por duas divisões reforçadas, a força portuguesa deveria seguir logo que possível para França, em remessas mensais de cerca de quatro mil homens. O desejo de Lisboa era que a essas duas divisões se viesse juntar, posteriormente, uma terceira, quer para assegurar o bom roulement das tropas, quer para formar um corpo de exército. Este era o grande objectivo da facção guerrista da república, que defendia como indispensável a participação do país no esforço da guerra europeia. Não será bem isso que acontecerá. Antes de mais, porque, como se verá no início de 1917, contra as expectativas das autoridades militares e políticas, o transporte das tropas para o front será lento, difícil e, sobretudo, desordenado.

TRAPALHADAS

Naquele 20 de Agosto de 1917, além de João de Mello, estavam convocados para embarcar nos dois navios de pavilhão inglês ancorados em Alcântara, 146 oficiais e 7590 praças de pré. A logística associada ao transporte marítimo de tantos homens era evidentemente complexa. A ela se acrescentava a preparação e o acondicionamento de equipamentos variados, de munições, de fardamentos e víveres, de medicamentos e viaturas, sem esquecer os indispensáveis solípedes (cavalos e mulas). Além disso, cada militar transportava uma mochila própria, recheada não apenas de pertences privados (fotografias, instrumentos musicais, livros), como de um vasto rol de artigos considerados indispensáveis à campanha e fornecidos pelo próprio exército (e que incluía alpercatas, ceroulas, lenços, luvas, botas, toalhas, calças, dolmans, palmilhas).

Ao contrário do que afirmava a propaganda oficial, estes embarques nunca correram bem. Nunca foram ordenados nem pacíficos, caracterizando-se antes por atrasos frequentes, surpresas variadas, e até por situações absurdas. É o próprio general Tamagnini de Abreu, comandante do CEP, que o confirma nas suas memórias:

«O material, fardamento, e os variados artigos, embarcados nos porões dos transportes, não merecem, em geral, cuidado, quanto ao seu acondicionamento, havendo a notar em muitos volumes falta de indicação do seu contheúdo e destino. Houve n’este serviço ideias muito extravagantes. Por exemplo: alguns caixotes pequenos com ferragem, foram metidos n’um maior, [...] que adquiriu peso excessivo, difícil de remover e que se despedaçou. Artigos de cirurgia e farmácia foram acondicionados em caixotes de taboas muito delgadas, ligados por pregos pequenos, e com facilidade de arrombarem, desaparecendo os artigos que continham.»

A desorganização nos embarques era de tal ordem que, como nota mais uma vez Tamagnini, o disparate era recorrente:

«N’um transporte com cerca de 1500 homens não havia médico; n’outro que conduzia cavalos não havia veterinário e faltavam tratadores, etc... Nos embarques subsequentes a confusão continuou. Constou-me ter partido para França um soldado, não mobilizado, que conduziu ao Caes um cavallo para embarcar, ficando este em terra.»

Os vários serviços militares que deviam dar apoio a esta vasta e intricada operação, na maioria das vezes pareciam divorciados dela, aparentando não ter conhecimento do que se estava a passar. O Quartel-General Territorial do CEP em Lisboa, que em teoria deveria coordenar a complexa logística associada aos vários serviços e às diferentes necessidades do CEP, nunca viu as suas atribuições bem definidas, nem alguma vez teve autoridade ou capacidade de iniciativa suficientes para gerir uma operação daquela envergadura. Na prática, e como diagnosticará mais tarde o general Ferreira Martins, subchefe do estado-maior do CEP, «este quartel-general considerou-se apenas um organismo burocrático, no péssimo sentido da inércia e do sonambulismo de uma burocracia de horário de trabalho maquinal, e nem ao menos se lhe deu a missão espinhosa, mas animada, de procurador dos interesses vitais do C.E.P.».

Tal ineficiência afectava particularmente os oficiais subalternos encarregados das tarefas mais logísticas. Era esse o caso do alferes João de Mello, que tinha de resolver os preparativos da coluna de munições que integrava. As dificuldades com que esses oficiais se deparavam para conseguirem despachar as ordens recebidas, e ainda terem tempo para se despedirem convenientemente das famílias, levavam-nos ao desespero. Ora, como não podia deixar de ser, isso afectava o seu bom moral.

Estes embarques confusos provocavam atrasos significativos nas escalas de partida, obrigando, em vários casos, os navios com as tropas embarcadas a prolongarem-se no Tejo, com o consequente incremento da indisciplina de todos aqueles homens naturalmente inquietos. As autoridades sabiam que se estes fossem autorizados a desembarcar, muitos já não voltariam, como aconteceu mais do que uma vez. Não obstante, em raras excepções, esta trapalhice também trouxe boas surpresas. Foi o que sucedeu nesse embarque do final de Agosto. Tendo sido adiada para o dia seguinte a partida do navio em que seguia, João de Mello ainda consegue dar um salto a Sintra, onde o resto da família e a noiva passavam os meses de Verão. E, sorte das sortes, o atraso da partida permitiu-lhe, ainda, encontrar-se em Lisboa com os pais acabados de chegar dos Pirenéus.

Diário de João de Mello:
21 de Agosto de 1917

O Pae e a Mãe não estavam em Lisboa. Deviam chegar de França na noite do dia em que eu devia embarcar. Por umas horas deixava de os ver. Também não quero de maneira nenhuma lembrar-me das poucas horas que passei em Cintra e do que me custou a despedida da Maria do Carmo. No dia 20, de manhã tive em Lisboa uma notícia que me alegrou um pouco. Eu estava em Lisboa vindo de Cintra de automóvel, onde fui passar a noite. Estava bastante incomodado com a despedida de todos e sobretudo com a despedida da Carmo. Bem via que ella também lhe custava ver-me partir. Fui ao caes saber a hora do embarque e ali disseram-me que o vapor afinal só partia no dia seguinte. Fiquei satisfeitíssimo. Afinal via o Pae e a Mãe que chegavam nessa mesma noite.

As despedidas não vão ser fáceis. Primeiro dirige-se a Sintra, à vila, onde se encontra com Maria do Carmo da Costa Lima, com quem tinha namoro. Dois anos mais nova do que João de Mello, Carmo era filha de militar e conhecia bem as obrigações de um oficial do exército. Contudo, isso não lhe modera a preocupação. Afinal, essa guerra que começara há três anos por razões tão longínquas e que prometera ser breve, parecia não ter fim à vista. As notícias que chegavam pela imprensa, escassas e controladas, e através dos familiares e amigos que regressavam dessa Europa conturbada, não eram animadoras. E, depois, aquele horrível Afonso Costa e os seus correligionários guerristas não desistiram enquanto não envolveram Portugal no conflito. Agora o João tinha de partir, sabe-se lá para onde e por quanto tempo. Sem ele o Verão em Sintra não estava a ser a mesma coisa e seria inimaginável pensar que poderiam nunca mais voltar a ver-se. Esforçando-se por afastar os maus pensamentos que rondavam as suas cabeças, Carmo e João sabem que o melhor é aproveitarem aqueles últimos momentos sem grandes dramas.

Depois de se despedir da noiva, e sob crescente emoção, João sobe a estrada da serra para se despedir dos restantes membros da família. Instalados no sopé da Pena, na Quinta Velha, fugindo ao calor abrasador de Lisboa, encontravam-se os seus irmãos mais novos (a Maria Luiza e o Diogo), o seu querido avô Mayer tão debilitado pela doença (será que o voltaria a ver?), os primos, e vários tios e tias de quem era muito próximo. O adeus é mais uma vez doloroso, mas João tenta manter a compostura. Por fim, as despedidas mais sentidas acontecerão em Lisboa, na casa da Rua do Salitre, com os irmãos José António e Manuel, e com os pais felizmente chegados a tempo de lhe darem um beijo. O ambiente é de profunda consternação. Até porque, entretanto, Manuel recebera a notícia de que a sua partida para a guerra também estava para breve.

Diário de João de Mello:
21 de Agosto de 1917

A chegada dos Paes, a notícia que lhes dei que embarcava no dia seguinte, a sahida do Salitre para bordo, enfim tudo isto não sei dizer o que me custou. Fiz tudo debaixo d’uma inconsciência e d’uma excitação nervosa, causada por toda aquella trapalhada da minha sahida apressada. Quando cheguei a bordo e vi a porcaria em que estava o navio todo, e a sentinela inglesa na escada a impedir que alguém descesse, quando vi tudo isso, tive vontade de chorar. Estava nervoso, precisava de sahir depressa.

O Manoel veio a bordo ver-me mas não o deixaram entrar, ficou no rebocador e falou comigo só de longe. Penna não poder ter entrado para ver bem e contar a toda a gente em Lisboa a infâmia que eram aquelles transportes, em que os soldados portuguezes iam vendidos e transportados como gado. Coitado do Manoel, a elle também tudo custava imenso, Elle também ía partir d’ali a uns dias.

A VEZ DO MANUEL

A 26 de Setembro de 1917, um mês e cinco dias depois do embarque de João, chegava a vez de Manuel Augusto José de Mello partir. Em Agosto tentara subir a bordo do navio do irmão para conhecer em primeira mão o que o esperava, mas fora impossível. Eram as novas instruções do comando do CEP – uma vez embarcadas, as tropas estavam interditas de contacto com o exterior. Nesse dia Manuel teve de ficar no rebocador a acenar ao João enquanto o navio deste partia. Agora, passado um mês, para o Manuel tudo se repetia. A inquietação em relação ao destino desconhecido, os difíceis preparativos, as despedidas.

Também ele deixava para trás um namoro. Amélia da Silva era filha única de Alfredo da Silva, figura reputada da sociedade portuguesa e homem de negócios temido. A relação, que começara em Sintra, era relativamente recente, mas parecia promissora. Apesar do perfil reservado de Amélia contrastar com o carácter mais extrovertido de Manuel, tinham-se feito bons amigos. A isso acrescia que Amélia gostava da família Cartaxo, tão grande, cheia de bulício, muito diferente da sua. Tivera especial empatia com Maria Luiza (Nanã), a única irmã dos Cartaxo, e com Carmo, a namorada do João. Antes de embarcar foi a estas duas que Manuel encarregou de olharem pela noiva, pedindo-lhes que se apoiassem mutuamente nos tempos de incerteza que então se iniciavam. As três assim farão e, juntamente com a condessa do Cartaxo, a matriarca do clã, tecerão entre si laços de proximidade só possíveis em contextos de grande adversidade como aquele, e que vão perdurar para o resto da vida.

Como o irmão João, também Manuel de Mello era artilheiro. Depois de feita a recruta, assentara praça no 2.º Batalhão de Artilharia de Costa, no Campo Entrincheirado de Lisboa. Aí frequentara a Escola de Oficiais Milicianos, sendo posteriormente transferido para o Batalhão de Artilharia de Guarnição. Em Novembro de 1916 fora promovido a alferes miliciano. É com esse posto que vai embarcar para a guerra no final do Verão seguinte. Tem apenas 22 anos e dos três irmãos Cartaxo em idade de serem convocados é o mais novo. Consta do seu boletim individual que segue como oficial de uma bateria de artilharia inserida no Corpo de Artilharia Pesada (CAP).

Fazendo parte do Corpo Expedicionário Português (CEP), o CAP era todavia uma criação posterior. No início as negociações luso-britânicas estipularam que o CEP seria somente constituído por uma divisão reforçada e, como tal, não lhe foram atribuídas tropas de artilharia pesada. Todavia, em Janeiro de 1917, já com uma segunda divisão negociada, resolveu o estado-maior do CEP propor aos ingleses a organização de um Corpo de Artilharia Pesada (CAP). Pretendia-se deste modo ir abrindo caminho para a futura transformação do corpo expedicionário num corpo de exército. Justificavam as chefias militares portuguesas que, nas outras forças aliadas, a artilharia pesada integrava-se em corpos de exército e não apenas em divisões. O caso português não deveria ser excepção.

A proposta de criação do CAP é imediatamente apoiada pelas autoridades políticas nacionais que, desejando a todo o custo reforçar a presença militar lusa na frente europeia, insistem com os britânicos para que estes a aceitem. Não obstante, e como em todos os outros aspectos relativos à beligerância portuguesa, só depois de manifesta relutância é que Londres dá bom visto ao plano. É também com muita resistência, e apenas depois de intensas diligências desenvolvidas por Lisboa, que acaba por aceitar receber uma missão portuguesa com vista a elaborar os regulamentos desse novo corpo e a estudar o material a utilizar.

Mas as coisas correm mal com o CAP desde o princípio. Não se soube de onde deveria vir o material de artilharia pesada. De Inglaterra? De França? A única certeza era de que o material que o exército português possuía era desadequado e insuficiente. Estranhamente, a resposta a estas questões cruciais ainda não tinha chegado quando as tropas para o CAP começaram a ser mobilizadas. Por coincidência, e ainda sem o material apropriado, o primeiro contingente de artilharia pesada parte em Agosto, no mesmo transporte que João de Mello. No mês seguinte, quando o Manuel embarca, o CAP continuava sem ter recebido material. A sua partida será justificada com o argumento de que, no entretanto, os homens receberiam instrução e o material haveria de chegar. A bordo dos dois navios ingleses que partem no final de Setembro, vão 109 oficiais e 2511 soldados de pré, ou seja, menos homens do que no embarque do João.

TRANSPORTES INGLESES

Desde Maio que Londres vinha avisando Lisboa de que aqueles navios faziam falta ao esforço de guerra inglês e ao abastecimento interno do país, e que muito em breve deixariam de estar à disposição do exército português. Tendo sido estas as razões oficialmente invocadas para justificar o término do empréstimo dos navios, existiam outros motivos oficiosos, mas não menos prementes, para essa decisão tão gravosa para o governo de Lisboa. Por um lado, os ingleses queriam libertar o porto de Brest para o desembarque dos norte-americanos e dos canadianos, que estavam finalmente a chegar ao Velho Continente. Por outro, Londres não estava nada confiante com o nível de organização e preparação demonstrando pelas tropas lusas entretanto chegadas à Flandres. A isto acrescia uma terceira razão, mais directa, que se prendia com a irritação dos ingleses com o manifesto mau aproveitamento português dos navios emprestados, nomeadamente com a qualidade das guarnições lusas que os tripulavam, bem como com a constante incapacidade de os lotar com o equipamento e os efectivos previstos.

Este é um dos temas recorrentes na correspondência oficial das autoridades dos dois países entre Abril e Julho de 1917, como se comprova nas seguintes notas diplomáticas trocadas entre o embaixador de Inglaterra em Lisboa e o ministro dos Negócios Estrangeiros português. Escreve o primeiro:

Your Excellency – fui instruído a informá-lo de que o Governo de Sua Majestade envia estes navios [para transporte das tropas portuguesas] na condição de que sejam usados pelo governo português em todas as ocasiões na sua máxima capacidade, e de que o Governo de Sua Majestade espera que situações passadas em que foi desperdiçada essa capacidade não se repitam no futuro. I avail myself of this opportunity, etc, etc...

Ao que o ministro Augusto Soares responde solícito, justificando:

Senhor Ministro [de Inglaterra] – compreende o Governo português perfeitamente este desejo do Governo britânico, que acha de todo justificado, e está disposto a tomar todas as medidas necessárias para que o serviço desses navios seja irrepreensível e o mais profícuo possível [...]. Sente o Governo português que as dificuldades derivadas do recrutamento das tripulações, e da possível irregularidade de comportamento e falta de competência de alguns dos seus membros, tenham dado lugar a transtornos e demoras acidentais, mas ele tem mostrado a este respeito a melhor vontade de afastar essas dificuldades e da eficácia das suas medidas é prova o facto de não se terem ultimamente repetido incidentes lamentáveis que infelizmente algumas vezes foi impossível evitar.

Apesar das tentativas lusas para dissuadir Londres do contrário, a decisão inglesa de terminar o empréstimo dos navios a Portugal manteve-se e, a partir de Outubro, os navios regressarão definitivamente a Inglaterra. Manuel de Mello segue para Brest num desses últimos transportes.

CALVÁRIO

Até ao final de 1917 serão colocadas na frente ocidental europeia cerca de 55 mil tropas nacionais. Como inúmeras famílias portuguesas e tantas outras por essa Europa fora, os condes do Cartaxo vão viver com enorme preocupação a ausência dos dois filhos na guerra. Para trás ficam José António, o mais velho, que ainda não sabe o que lhe acontecerá, e Maria Luiza (Nanã) e Diogo, os mais novitos. Os três acompanharão os pais na provação dos longos meses que se seguem. São muito chegados e conhecem bem a dor do luto familiar que não querem voltar a experimentar. Quatro anos antes tinham perdido o Luíz com apenas 13 anos. Em especial, Maria Luíza não estava refeita dessa perda. O luto de uma mãe é sempre mais longo, e ela não concebia que a morte pudesse levar outro dos seus filhos, sobretudo em idade jovem e por causa de uma guerra indesejada.

A condessa do Cartaxo tinha razões para estar preocupada. Há mais de um século que os militares portugueses não combatiam no continente europeu. Os diversos conflitos que as forças nacionais travavam em África, incluindo naquele momento, nada tinham a ver com esta grande guerra na Europa que, no seu terceiro ano, mostrava uma sofisticação ameaçadora. Por inúmeras razões, a participação de Portugal na frente ocidental europeia era uma aposta perigosa. Tecnologicamente o país não estava preparado. E política e socialmente não estava mobilizado. Por essas e outras razões, desde o início, a Inglaterra mostrou sérias reservas ao envolvimento de Portugal na frente continental, aliás partilhadas por uma fatia considerável do oficialato português. Além do mais, o conflito estava a ser verdadeiramente mortífero. A ofensiva de Nivelle, na Primavera anterior, tinha resultado em tal carnificina, que as unidades francesas começaram a amotinar-se. Fora difícil fazer regressar as tropas gaulesas à normalidade. E o desgaste físico e moral contagiara inexoravelmente os restantes exércitos ocidentais acantonados há demasiado tempo nas trincheiras.

Era este o panorama no front à data da partida dos dois irmãos Mello. Por Lisboa a família iniciava o seu calvário particular, constantemente à espera de notícias e rezando para que a paz chegasse quanto antes.