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O Sr. Braz vivia rodeado de felicidade mas não era feliz.

Era dono de uma loja de brinquedos em Benfica, ao pé da Caixa Geral de Depósitos, paredes-meias com a pastelaria Cairo. A loja, a NaKatyBrinca, ficava ali num cantinho delicioso, influências talvez do cheiro dos bolos da Cairo, que impregnava o ar, à desgarrada com a laca das senhoras de bem e com o suor dos empregados, os melhores de Lisboa.

A estrada passava a uns bons cinquenta metros da loja, mais autocarros que automóveis. O passeio estendia-se largo, com banquinhos onde se sentavam as cabeças de giz dos reformados. No Natal, a fila dava voltas e mais voltas, tudo muito civilizado sempre nas esquinas de Benfica, faturava-se muito nessa altura. Nas traseiras da loja, a zona de cargas, havia sempre um espaço de estacionamento reservado aos fornecedores, e era ver entrarem as bonecas, os triciclos, as cozinhas em miniatura, com o pormenor dos pequenos depósitos de água para quando se abria a torneira, esta a verter gotas de água de verdade, ou a luz cor de laranja dos bicos quando se acendia o fogão de plástico. As bolas, os peluches, caramba, até as caixas de cartão eram lindas.

O Dionísio do armazém do papelão ia lá buscar as caixas e até com isso o Sr. Braz fazia algum dinheiro, que usava para pagar a mesada às duas filhas: a Natália e a Catarina, as gémeas loiras de cabelo fininho e encaracolado, como massinha italiana. Natália e Catarina, pois era, NaKatyBrinca.

O Sr. Braz vivia rodeado de felicidade mas não era feliz.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Juntava-se à pequena família no quarto andar direito onde moravam, por cima da loja, no mesmo prédio, claro. E lá estava a mulher do Sr. Braz, a mãe das gémeas de cabelos fusilli, a D. Fátima. Essa, então, era uma verdadeira peça de artesanato rústico.

Nascida num campo de milho em Trás-os-Montes, escorreu por entre pernas da mãe enquanto ela sachava batatas, em direção a uma vida cheia de irmãos e irmãs, eram onze, mas depois dois morreram, pneumonia ou lá o que foi, ficaram nove, já nem se lembrava, tempos duros, aqueles, de frio, fome, minério e resina. Ela era a última. Uma vez, o pai foi dar com ela a mamar na mãe, que adormecera de cansaço contra a parede do palheiro, por baixo da casa. A Fátima bebé a mamar na teta da mãe a meias com uma víbora que chupava na outra mama, contemplando a criança como se fosse esta a sua cria, as duas já bêbedas do quente do leite. O pai viu a macabra cena, e não hesitou. Cortou a cabeça à víbora, pôs-se à procura do ninho, encontrou para aí umas vinte, matou tudo à paulada, e quando a mulher acordou, ainda zonza das mordidas da filha e da cobra ao peito, o marido mandou-a fazer uma sopa com as cobras. «Diz que são enguias do rio.» E bem se lamberam os irmãos enquanto a pequenita Fátima descansava no berço a cair, em serradura, comido por dentro pelos bichos da madeira.

A D. Fátima era ruiva como o fogo que sempre ardera no seu interior. A primeira vez que viu um pénis foi quando foi ter com o pai à mina. Ia levar vinho e broa, que o pai logo comeu, ainda preto na cara, na língua, nas mãos do pó do volfrâmio. A caminho de casa, tinha-se posto noite cerrada, passaram rente ao pinhal. Lá em baixo, um grupo de mulheres nuas, que dançavam e riam à volta de um grande lume e começaram a gritar cá para cima coisas que uma criança não entenderia.

«Vira-lhes as costas», ordenou o pai, enquanto puxava as calças para baixo e mostrava o sexo às bruxas, que ficaram loucas quando ele começou a mijar pela ribanceira abaixo, o jato amarelo a bater fumos na superfície geada e a deitar um cheiro que fazia com que, lá em baixo, elas se contorcessem de dores, fazendo esgares que pareciam o inferno a sorrir.

A pequena Fátima desobedecera, não se tinha virado, e viu tudo, e aquilo ficou-lhe gravado para sempre. Quando se tornou adolescente e descobriu que o que os homens tinham entre as pernas (uma espécie de cobra) era a melhor coisa que alguma vez havia experimentado, nunca mais parou, ávida, curiosa, feliz e realizada. E assim continuou, com os Nunes, os rapazes das entregas, com quem mostrasse entusiasmo, casamento fora, não importava.

Livro: "Café Kanimambo"

Autor: Fernando Ribeiro

Editora: Suma de Letras

Data de Lançamento: 29 de maio

Preço: € 15,95

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— Amanhã vamos de férias. Tens tudo arrumado? E as miúdas? — perguntou-lhe o marido, o Sr. Braz, que vivia rodeado de felicidade mas não era feliz.

E a mulher, a Fátima ruiva, filha de sua mãe, perfilhada por seu pai transmontano, na solidariedade dos montes, sabia-se lá se ela não era filha do Ruço, o atrasado lá da aldeia, com que as mulheres do campo gostavam tanto de brincar, de se sentar em cima dele, a Fátima já a pensar no Velasques do café, nas escapadelas ao pinhal, enquanto a mulher do Velasques estava na praia com os filhos e ele não voltava ao posto, na poncha do Madeirense, o marido sem reparar ou a não querer reparar… A mulher, dizia, atirou então para o ar da sala:

— Está tudo pronto, querido. Também já combinei com o homem dos jornais… — Ao fim de semana, montavam uma banca na esplanada do café, ideia do Sr. Braz, despachavam alguns brinquedos mais pequenos e as pessoas gostavam de ler o jornal na praia, as palavras-cruzadas, mais umas raquetes de praia… — Já está tudo arrumado, as miúdas também já fizeram as malas.

A voz mole e quente da Fátima ruiva subiu um pouco, para finalmente se ir despenhar atrás do sofá, para se juntar a tantas outras frases e palavras vermelhas, da cor da mentira entre casais. Iam para a Lagoa passar férias. A D. Fátima ia às cobras, o Sr. Braz ia aos cucos e ao que já se verá. E assim iam em casal e filhas. Na paz do Senhor.

Porque o seu tempo é precioso.

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