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O Sr. Braz vivia rodeado de felicidade mas não era feliz.
Era dono de uma loja de brinquedos em Benfica, ao pé da Caixa Geral de Depósitos, paredes-meias com a pastelaria Cairo. A loja, a NaKatyBrinca, ficava ali num cantinho delicioso, influências talvez do cheiro dos bolos da Cairo, que impregnava o ar, à desgarrada com a laca das senhoras de bem e com o suor dos empregados, os melhores de Lisboa.
A estrada passava a uns bons cinquenta metros da loja, mais autocarros que automóveis. O passeio estendia-se largo, com banquinhos onde se sentavam as cabeças de giz dos reformados. No Natal, a fila dava voltas e mais voltas, tudo muito civilizado sempre nas esquinas de Benfica, faturava-se muito nessa altura. Nas traseiras da loja, a zona de cargas, havia sempre um espaço de estacionamento reservado aos fornecedores, e era ver entrarem as bonecas, os triciclos, as cozinhas em miniatura, com o pormenor dos pequenos depósitos de água para quando se abria a torneira, esta a verter gotas de água de verdade, ou a luz cor de laranja dos bicos quando se acendia o fogão de plástico. As bolas, os peluches, caramba, até as caixas de cartão eram lindas.
O Dionísio do armazém do papelão ia lá buscar as caixas e até com isso o Sr. Braz fazia algum dinheiro, que usava para pagar a mesada às duas filhas: a Natália e a Catarina, as gémeas loiras de cabelo fininho e encaracolado, como massinha italiana. Natália e Catarina, pois era, NaKatyBrinca.
O Sr. Braz vivia rodeado de felicidade mas não era feliz.
Juntava-se à pequena família no quarto andar direito onde moravam, por cima da loja, no mesmo prédio, claro. E lá estava a mulher do Sr. Braz, a mãe das gémeas de cabelos fusilli, a D. Fátima. Essa, então, era uma verdadeira peça de artesanato rústico.
Nascida num campo de milho em Trás-os-Montes, escorreu por entre pernas da mãe enquanto ela sachava batatas, em direção a uma vida cheia de irmãos e irmãs, eram onze, mas depois dois morreram, pneumonia ou lá o que foi, ficaram nove, já nem se lembrava, tempos duros, aqueles, de frio, fome, minério e resina. Ela era a última. Uma vez, o pai foi dar com ela a mamar na mãe, que adormecera de cansaço contra a parede do palheiro, por baixo da casa. A Fátima bebé a mamar na teta da mãe a meias com uma víbora que chupava na outra mama, contemplando a criança como se fosse esta a sua cria, as duas já bêbedas do quente do leite. O pai viu a macabra cena, e não hesitou. Cortou a cabeça à víbora, pôs-se à procura do ninho, encontrou para aí umas vinte, matou tudo à paulada, e quando a mulher acordou, ainda zonza das mordidas da filha e da cobra ao peito, o marido mandou-a fazer uma sopa com as cobras. «Diz que são enguias do rio.» E bem se lamberam os irmãos enquanto a pequenita Fátima descansava no berço a cair, em serradura, comido por dentro pelos bichos da madeira.
A D. Fátima era ruiva como o fogo que sempre ardera no seu interior. A primeira vez que viu um pénis foi quando foi ter com o pai à mina. Ia levar vinho e broa, que o pai logo comeu, ainda preto na cara, na língua, nas mãos do pó do volfrâmio. A caminho de casa, tinha-se posto noite cerrada, passaram rente ao pinhal. Lá em baixo, um grupo de mulheres nuas, que dançavam e riam à volta de um grande lume e começaram a gritar cá para cima coisas que uma criança não entenderia.
«Vira-lhes as costas», ordenou o pai, enquanto puxava as calças para baixo e mostrava o sexo às bruxas, que ficaram loucas quando ele começou a mijar pela ribanceira abaixo, o jato amarelo a bater fumos na superfície geada e a deitar um cheiro que fazia com que, lá em baixo, elas se contorcessem de dores, fazendo esgares que pareciam o inferno a sorrir.
A pequena Fátima desobedecera, não se tinha virado, e viu tudo, e aquilo ficou-lhe gravado para sempre. Quando se tornou adolescente e descobriu que o que os homens tinham entre as pernas (uma espécie de cobra) era a melhor coisa que alguma vez havia experimentado, nunca mais parou, ávida, curiosa, feliz e realizada. E assim continuou, com os Nunes, os rapazes das entregas, com quem mostrasse entusiasmo, casamento fora, não importava.
— Amanhã vamos de férias. Tens tudo arrumado? E as miúdas? — perguntou-lhe o marido, o Sr. Braz, que vivia rodeado de felicidade mas não era feliz.
E a mulher, a Fátima ruiva, filha de sua mãe, perfilhada por seu pai transmontano, na solidariedade dos montes, sabia-se lá se ela não era filha do Ruço, o atrasado lá da aldeia, com que as mulheres do campo gostavam tanto de brincar, de se sentar em cima dele, a Fátima já a pensar no Velasques do café, nas escapadelas ao pinhal, enquanto a mulher do Velasques estava na praia com os filhos e ele não voltava ao posto, na poncha do Madeirense, o marido sem reparar ou a não querer reparar… A mulher, dizia, atirou então para o ar da sala:
— Está tudo pronto, querido. Também já combinei com o homem dos jornais… — Ao fim de semana, montavam uma banca na esplanada do café, ideia do Sr. Braz, despachavam alguns brinquedos mais pequenos e as pessoas gostavam de ler o jornal na praia, as palavras-cruzadas, mais umas raquetes de praia… — Já está tudo arrumado, as miúdas também já fizeram as malas.
A voz mole e quente da Fátima ruiva subiu um pouco, para finalmente se ir despenhar atrás do sofá, para se juntar a tantas outras frases e palavras vermelhas, da cor da mentira entre casais. Iam para a Lagoa passar férias. A D. Fátima ia às cobras, o Sr. Braz ia aos cucos e ao que já se verá. E assim iam em casal e filhas. Na paz do Senhor.
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