Antes de ser revolucionário, Raúl Castro era um menino travesso que preocupava os pais. "Eu cuido dele", disse o irmão Fidel, sem antecipar que Raúl seria o guardião do seu legado socialista.

Hoje, aos 86 anos, está a preparar-se para deixar o cargo em Cuba depois de promover mudanças históricas.

Um negociador habilidoso e um soldado implacável em relação aos inimigos, logo ficou bem claro qual era o seu papel. "Fidel é insubstituível, a menos que o substituamos todos juntos", disse Raúl depois de assumir o poder interinamente, quando o irmão adoeceu.

Atuando nas sombras, foi fundamental para obter o apoio da União Soviética após o triunfo da revolução em 1959, graças às amizades que fez nas suas viagens da juventude. Mas já tinha outros feitos. Foi ele quem pegou na arma de um sargento para libertar os companheiros depois do ataque fracassado no quartel de Moncada em 1953.

O mais jovem dos sete irmãos Castro, Ruz, aos 4 anos de idade, pediu à sua mãe que deixasse Birán para ficar com Fidel, que frequentava a escola em Santiago de Cuba (leste).

"Ele chorou, esperneou, insistiu tanto que ela teve de deixá-lo ir", recordou o próprio líder da revolução cubana, como registado no "Cem horas com Fidel", de Ignacio Ramonet.

Foi Fidel, 5 anos mais velho, que cultivou nele o hábito de ler e estudar.

“Fundador de sonhos”

"Era uma associação política; Fidel não estreitou tal relação com nenhum outro irmão. Raúl tornou-se o número dois depois da morte de outros revolucionários [que o precederam]”, explica o cientista político cubano Arturo López Levy.

Depois de derrubar Fulgencio Batista, enquanto Fidel estava encarregado das funções do governo, Raúl estruturou os dois pilares institucionais da revolução: o Partido Comunista e as Forças Armadas Revolucionárias (FAR), necessários para os seus planos.

Ministro histórico da Defesa, Raúl comandou as FAR durante cinquenta anos e transformou-as de um exército de rebeldes idealistas num eficiente aparato militar que chegou aos 300 mil soldados. Eles têm sido o pilar da economia, controlando as atividades produtivas.

"O relacionamento era de chefe e lugar-tenente. Raúl Castro torna-se no fundador dos sonhos de Fidel, e Raúl foi o arquiteto institucional da revolução", explica López-Levy, coautor do livro "Raúl Castro and the New Cuba: A Close-Up View of Change".

Mudar o que tem de mudar

O seu carismático irmão Fidel liderou um país que enfrentou uma grave crise económica após a desintegração da União Soviética. Tudo isso no meio de um forte embargo americano.

Menos expressivo, Raúl assumiu a presidência em 2008 e começou a modificar lentamente o modelo cubano. Abriu o país aos investimentos estrangeiros, às empresas privadas e à compra e venda de imóveis. Também permitiu as viagens dos cubanos ao exterior.

"Comparado com o carisma de Fidel, o carisma de Raúl equivale a uma garrafa de água mineral sem gás. Isso obrigou-o a fazer reformas porque o sistema não era sustentável sem Fidel e sem mudanças", acrescenta López-Levy.

No final de 2014, abalou o mundo ao anunciar a restauração das relações diplomáticas com Washington, rompidas por mais de meio século.

Foi anfitrião dos papas Bento XVI e Francisco, depois de Fidel ter recebido João Paulo II numa visita histórica em 1998.

Em 2016, Raúl recebeu Barack Obama e ajudou a assinar a paz com as FARC da Colômbia.

Depois, anunciaria a morte de Fidel na TV.

Em 2017, ratificou um plano para continuar a atualizar o modelo económico e "mudar tudo o que precisa de ser mudado", lema que o próprio Fidel, definiu como conceito de "revolução".

Com a chegada de Donald Trump e a restituição da difícil relação com os Estados Unidos, Raúl entrincheirou-se no Partido Comunista, que para ele é o apoio das suas batalhas.

Divertido e implacável

Raúl, um homem de família, foi casado durante 48 anos com Vilma Espín, a sua companheira de armas que morreu em 2007. Tem três filhas, incluindo a deputada Mariela Castro, e um filho, o influente coronel Alejandro Castro, nove netos e uma bisneta.

Pode alternar entre o uniforme, o fato e a tradicional camisa ‘guayabera’ e desfrutar da lealdade absoluta do corpo militar e dos antigos revolucionários.

O ex-agente Nicolai Leonov, seu amigo e contacto na Rússia, lembra-se dele como um amante de caminhadas e um homem brincalhão.

Mas também lhe são atribuídas as ordens de execução dos Batista. "Não podia comparecer perante o inimigo como um homem com uma alma caridosa", disse Raúl em entrevista ao jornal mexicano ‘Sol’, em 1993.

Esteve por trás do julgamento de 1989 que levou Arnaldo Ochoa, juntamente com outros três polícias, ao paredão de fuzilamento por tráfico de drogas.

Embora tenha libertado dezenas de opositores através da mediação da Igreja Católica, sob o seu mandato foram realizadas prisões temporárias e o julgamento de dissidentes por crimes comuns.

Precavido, mandou criar o local onde será enterrado: um nicho de pedra próximo de Santiago de Cuba, ao lado dos restos mortais da sua esposa.

Sucessor de Raúl Castro terá dificuldades para abrir novo capítulo com EUA

A passagem de poder do presidente cubano, Raúl Castro, para um novo líder abre uma enorme interrogação sobre o eventual impacto dessa mudança nas difíceis relações bilaterais com os Estados Unidos.

Num quadro caracterizado pelo drástico arrefecimento das relações entre Washington e Havana, os analistas concordam que essa situação dificilmente mudará, enquanto Donald Trump ocupar a presidência norte-americana.

Esse processo ficou literalmente estagnado com a chegada de Trump à Casa Branca em janeiro de 2017, e agora resta saber se a presença de um novo líder no Palácio da Revolução mudará esse cenário.

Entre as figuras que podem suceder a Castro destaca-se o engenheiro eletrónico Miguel Díaz-Canel, de 57 anos e primeiro vice-presidente, mas a sua ascensão à presidência ainda não está confirmada.

No entanto, uma eventual melhoria nas relações com Washington não dependerá somente da vontade, ou da autoridade política de Havana, mas obedecerá fundamentalmente à dinâmica da política interna norte-americana.

Não há muito por fazer

A menos que o novo presidente cubano "chegue ao poder e mude tudo radicalmente, francamente não vejo que muitas mudanças", disse à AFP Elizabeth Newhouse, diretora do programa sobre Cuba no Centro de Política Internacional (CIP).

Para a especialista, "Trump não obterá nenhum benefício político com uma mudança na relação, e os seus eleitores na Flórida parecem querer que as relações continuem estagnadas, exatamente no mesmo lugar em que estamos agora".

Mavis Anderson, especialista em Cuba para o Grupo de Trabalho da América Latina (LAWG) em Washington, acredita que, independentemente de quem for designado para suceder a Raúl Castro, "a bola está no campo dos Estados Unidos. E é uma pena, porque esse campo está destruído".

Anderson disse à AFP que não acredita que Díaz-Canel, ou qualquer outro dirigente cubano, "possam mudar significativamente a relação bilateral por enquanto".

Os "duros" no comando

Newhouse e Anderson concordaram que o governo de Trump colocou a política externa nas mãos de representantes da "linha dura" do conservadorismo americano.

Isso inclui o secretário de Estado (ainda a ser confirmado) Mike Pompeo, e o conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton, que nunca se preocuparam em moderar declarações agressivas contra Cuba.

Ao mesmo tempo, o governo deixou que a política específica para Cuba seja delineada por dois legisladores ultraconservadores de origem cubana: o senador Marco Rubio e o legislador Mario Díaz Balart.

Não há nada que Díaz-Canel, ou outro dirigente, possam fazer para satisfazer Rubio e Díaz Balart, disse Anderson.

Uma mudança nas relações bilaterais "provavelmente vai exigir um novo presidente" na Casa Branca, apontou Newhouse.

Então, o que fazer?

Um primeiro passo evidente, apontam as analistas, seria deixar para atrás o confuso episódio dos "ataques sónicos" e voltar a ativar a embaixada dos Estados Unidos em Cuba, onde a equipa da missão foi reduzida à sua mínima expressão.

Newhouse apontou que o encarregado de negócios na embaixada dos Estados Unidos em Cuba, o diplomata Philip Goldberg, "tem interesse numa melhoria das relações, mas está com as mãos atadas".

Anderson afirma, por sua vez, que "o primeiro passo é eliminar imediatamente a designação dessa embaixada como destino para diplomatas sem acompanhamento familiar. É necessário repôr o pessoal dessa embaixada".

Para o advogado cubano-americano Pedro Freyre, especialista na legislação bilateral, a eliminação de barreiras ao intercâmbio comercial adotadas durante o governo de Barack Obama continua vigente.

"O processo de aproximação está estagnado, mas poderá ressuscitar, se houver uma mudança na administração americana", disse Freyre.

Todos os analistas concordam que, para além do nome designado para substituir Castro e do humor das relações com os Estados Unidos, o novo presidente cubano terá prioridades internas.

Para Anderson, o novo presidente cubano certamente "vai concentrar-se na economia, e não nas relações bilaterais, que é uma área que promete muito pouco".

Segundo Newhouse, o sucessor de Castro inicialmente "terá de consolidar a sua legitimidade" à frente do governo.

Freyre disse à AFP, porém, que espera "uma reivindicação dos chamados princípios revolucionários" e a garantia da continuidade do modelo. Por isso, disse sentir-se "cautelosamente otimista" sobre uma melhoria das relações bilaterais.

[Reportagem: Alexandre Grosboi, Moises Avila e Aldo Gamboa / AFP | Cronologia: Pedro Soares Botelho / MadreMedia]