“Estamos dentro”, mas com uma pedra no sapato

Whitby é uma pequena cidade costeira. Voltada para o mar do Norte, é conhecida por criar navegadores e por uma espécie particular de pedras preciosas - a Whitby Jet. Trata-se, na verdade, madeira fossilizada, comprimida ao longo de milhões de anos. Entrou na joalharia pela mão da nobreza vitoriana.

Quando o príncipe-consorte Alberto morreu, em 1861, a rainha Vitória passou a usar jóias feitas com esta pedra, para marcar o luto. Depois disso, a Whitby Jet começou a ser a jóia fundamental para sublinhar o período. Tanto assim foi que era mesmo a única pedra permitida na corte vitoriana.

Cem anos depois, em agosto de 1961, o Reino Unido inicia o processo de adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE). As dificuldades, porém, não tardam a chegar. O general De Gaulle, presidente francês e um dos arquitetos do projeto europeu, teme que a entrada do Reino Unido seja uma abertura da comunidade ao Atlântico, podendo, isso, significar uma eventual entrada dos Estados Unidos, que dominariam o bloco europeu.

Foram precisos dez anos para que a ilha entrasse finalmente na comunidade continental. Todavia, sem celebrações. A 1 de janeiro de 1973, o britânico ‘Guardian’ escrevia “Estamos dentro - mas sem fogo-de-artifício”.

“A Grã-Bretanha passou pacificamente para dentro da Europa à meia-noite da noite passada sem quaisquer celebrações especiais. É difícil perceber que alguma coisa de importância ocorreu e que uma data que vai figurar nos livros de História, enquanto as histórias da Grã-Bretanha forem escritas, foi vista pela maioria das pessoas como mera rotina”, escrevia o jornal. E acrescentava: “acima de tudo, devemos evitar criar uma nova, semipermanente crispação na sociedade britânica, entre os pró e anti Europeus.”

Porém, quando as bolhas nos copos de champanhe que celebraram a entrada na UE ainda rebentavam, já a questão se punha: ficar ou sair? Era o dia 7 de junho de 1975 e aí, há 42 anos, os britânicos escolheram ficar.

Trinta e oito anos depois, contudo, a pedra volta aos sapatos dos britânicos. David Cameron define um prazo para referendar mais uma vez a permanência do país na União Europeia. Até 2017, diz Cameron, o referendo será feito. Antes do final de 2017 o mundo saberá o que quer o Reino Unido com a União Europeia. A resposta, já se sabe, chegou no verão de 2016.

Para muitos, o Brexit surgiu como uma surpresa. Quando o mundo acordou no dia 24 de junho do ano passado, o aparentemente impensável tinha acontecido: ao longo da noite, a contagem das respostas ao referendo prometido por David Cameron dava como certa a saída - 51,9% dos mais de 30 milhões de britânicos que foram às urnas votaram para sair.

A pergunta era simples - sair (leave) ou ficar (remain) -, mas a discussão esteve longe de o ser. E os resultados, as consequências deste referendo que começou como promessa eleitoral, são grande parte daquilo que está em jogo esta quinta-feira.

Dentro do próprio Reino Unido, a desunião dos britânicos marcou os resultados. 53,4% dos ingleses votaram para sair; tal como o País de Gales, onde 52,5% dos galeses quer abandonar a União Europeia. Em sentido contrário, a Escócia e a Irlanda do Norte escolheram ficar: 62% dos escoceses escolheram remain, tal como 55,8% dos norte-irlandeses.

Todavia, para lá dos números, para lá das percentagens, houve de imediato outros resultados. O país ganhou logo uma nova primeira-ministra: Theresa May, a antiga secretária do Interior, substituiu Cameron. O primeiro-ministro demitiu-se logo que soube da derrota - David Cameron foi sempre contra a saída do Reino Unido da União Europeia.

May fez uma campanha muito discreta contra o Brexit, e nem se pode dizer que tenha sido uma entusiasta da União Europeia. Tornou-se primeira-ministra depois de os rivais no partido Conservador terem abandonado a corrida, sem ter ganho quaisquer eleição.

Quando se mudou para o número 10 de Downing Street, a residência dos primeiros-ministros britânicos desde 1735, descartou a hipótese de marcar eleições antecipadas. O país precisava de estabilidade e umas eleições eram tudo aquilo de que a Grã-Bretanha não precisava.

Manteve-se, então, a data original para o fim do mandato: 2020. Todavia, na Páscoa chegou uma surpresa. Afinal, no dia 8 de junho, quinta-feira, os britânicos teriam de ir às urnas, teriam de tomar mais decisões.

Só uma pequena parte dos britânicos achava, em 2005, que a política é muito importante. Para a esmagadora maioria, este não é um tema prioritário. Talvez por isso, estejam tão felizes. É que segundo o mesmo estudo, do portal World Values Survey, mais de 90% dos britânicos diz estar feliz, com a maioria a dizer mesmo que está muito feliz.

Felicidade, previam os arautos, que seria destruída com a eventual saída do país da União Europeia. Porém, apesar das previsões de Cameron e outras personagens preverem uma crise imediata caso o Reino Unido abandonasse a UE, a verdade é que as previsões apocalípticas ainda não se concretizaram.

É certo: a libra caiu logo no dia a seguir e continua a sofrer entre 10 a 15% de quebras. Apesar disso, em 2016, a economia britânica cresceu quase tanto como a alemã - estão separadas apenas por 0,1 pontos percentuais com 1,8 e 1,9%, respetivamente. A inflação subiu para os valores mais altos dos últimos três anos e meio, mas o desemprego caiu para os números mais baixos de há onze anos, estando nos 4,8%.

Porém, será interessante olhar para as estatísticas e perceber que os mesmos britânicos que escolheram sair da União Europeia são os que, segundo dados do Eurobarómetro, em outubro de 2016, diziam que a chave para enfrentar os desafios globais estava no mercado livre e na economia de mercado.

Moedas de troca

Em Whitby há 199 degraus a separar a zona costeira do topo da colina onde está o cemitério do tal conde Drácula que Stoker pôs a viver no norte de Inglaterra. O vento batalha com força, mas a vista compensa a subida.

Do topo, vemos o mar. O mar que separa a ilha do continente; o mar que separa o Reino Unido da Europa. E por estes dias esse mar parece que se alarga. Os candidatos a estas legislativas estão também a levantar os pescoços para ver se encontram o melhor negócio para deitar a ponte abaixo; para cortar as amarras e zarpar lá rumo aonde as ondas os levem.

A emissora pública britânica recolheu as principais ideias dos partidos do Reino Unido acerca do Brexit.

Para todos os partidos, a questão europeia é a grande chave para conquistar lugares no parlamento britânico nestas legislativas. Para os conservadores da atual primeira-ministra Theresa May, não há volta a dar: “Brexit means Brexit” [Brexit significa Brexit]. A antecipação das eleições é, aliás, uma forma de reforçar a posição negocial do executivo britânico diante dos restantes 27 países europeus.

Com a vitória, May poderia dizer que o país se está a unir em torno da saída. A desunião do Reino, causada pelos resultados do referendo do verão passado, como que se esbate. Porém, a abordagem intransigente da primeira-ministra pode conduzir os 48% de britânicos que escolheram ficar dentro da comunidade europeia a votar nos Democratas Liberais (Lib Dem), que apoiam a permanência na União.

Por outro lado, falta também saber de que forma vai o Reino Unido lidar com a migração após a saída da UE, nem quanto estão dispostos a pagar pelo divórcio.

As sondagens mostram que os conservadores se alinham para segurar cerca de 300 lugares nos 650 em Westminster. Ficam, porém, longe da maioria que tinha antes destas eleições antecipadas.

A subir têm estado os trabalhistas, encabeçados por Jeremy Corbyn. O partido fez campanha contra a saída no referendo, mas agora diz que vai respeitar a decisão dos britânicos. Todavia, deixa abertura para “uma nova relação próxima com a UE”, sempre protegendo os direitos dos trabalhadores.

Ao contrário do que acontece com os conservadores, os trabalhistas querem capitalizar o voto precisamente daqueles que quiseram sair. Mas as divisões internas e as clivagens com o perfil do líder dificultam a tarefa de jogar nos dois lados do tabuleiro; ou, no caso, nos dois lados do canal.

Os nacionalistas do UKIP (Partido pela Independência do Reino Unido), por outro lado, sempre foram a favor da saída. A vitória pode dar a sensação de uma posição reforçada, mas o desmantelamento de algumas das ideias propaladas pelo partido durante a campanha tem também de ser tido em conta.

Já para os Liberais Democratas, o Brexit tem de ser parado. Por isso, pedem um novo referendo, desta vez com os termos finais do acordo entre UE e Reino Unido. No outro lado do espetro político, os Verdes de Inglaterra e do País de Gales, pedem igualmente um novo referendo com o acordo que há de ser encontrado em Bruxelas, prometendo “oposição total” a uma saída dura.

Quem também quer um novo referendo é o Partido Nacional Escocês. Estes, porém, querem é referendar se ficam ou não no Reino Unido e se juntam à União Europeia. Nicola Sturgeon quer que a Escócia tenha um lugar na mesa das negociações, lutando para manter a nação no mercado livre da comunidade europeia.

Os norte-irlandeses do Sinn Fein também não acharam muita graça àquilo que chamam uma imposição dos Conservadores de Theresa May para saírem da União Europeia e estão à procura de um estatuto especial para a Irlanda do Norte no seio da UE.

Os membros do também norte-irlandês Ulster Unionist vão no mesmo sentido e defendem que o melhor para a Irlanda do Norte era ficar na UE. Contudo, promete honrar a decisão do referendo de 2016, desde que tenha acesso ao mercado único e não haja uma fronteira hermética com a República da Irlanda.

Por último, o SDLP, também da Irlanda do Norte, que fez campanha pelo remain e votou contra a ativação do Artigo 50, que espoletou a saída oficial do Reino Unido da UE, em março, acreditando que está a ser feita “contra a vontade do povo da Irlanda do Norte”.

 Há 28 países na União, mas o Reino Unido está com a porta escancarada. Do alto da colina, do alto da ilha, com ou sem pedras no sapato, esta quinta-feira os britânicos vão olhar para baixo, do lado de lá do canal da mancha e escolher com que cara saem. O resto da história há de se escrever nos outros dias.

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