Em entrevista à Lusa, o autarca da cidade que se tornou num símbolo da violência e desumanidade da guerra na Ucrânia assinala que, para se compreender o que os russos fizeram ao longo de 86 dias de cerco na primavera de 2022, é preciso recuar ao que se estava a passar em Mariupol e que foi apagado pela invasão.

“Era uma cidade europeia moderna a desenvolver-se muito rapidamente devido à reforma da descentralização, que era uma das principais que estava a acontecer na Ucrânia”, recordou Vadym Boichenko, que esteve na quinta-feira em Lisboa, em representação da Associação das Cidades Ucranianas, para receber o Prémio Norte-Sul do Conselho da Europa.

Situada no sudeste da Ucrânia, Mariupol mantinha-se porém perigosamente perto da frente de batalha em Donetsk, abalada desde 2014 pelo conflito no Donbass (leste ucraniano) entre os movimentos separatistas pró-russos e as forças de Kiev.

A descentralização, portanto, urgia, “não era sobre o dinheiro, era sobre oportunidades e era preciso usá-las muito rapidamente, em altíssima velocidade”, e isso, observou o autarca, “foi conseguido”.

Foi deste modo que se construíram estradas e se investiu em transportes públicos “tão pontuais que se podiam acertar o relógio por eles”, novas unidades de saúde, jardins de infância, parques urbanos e uma linha marítima junto ao Mar de Azov, e a primeira pista de gelo da cidade, segundo relatou Boichenko.

“As pessoas viviam satisfeitas por este modelo inspirador sob a bandeira ucraniana”, referiu à Lusa o autarca que fala com orgulho daquelas transformações, em contraponto com a cidade de Donetsk e outras ocupadas pela Rússia, “onde nada estava a acontecer”, o que levou a que cerca de 100 mil pessoas decidissem fixar-se em Mariupol, beneficiar das novas oportunidades e aderir ao seu modelo de sociedade.

Essa sucessão de eventos “foi muito assustadora aos olhos da Federação Russa”, segundo Vadym Boichenko e, na sua opinião, uma das causas que encontra para a invasão iniciada em 24 de fevereiro de 2022, quando Moscovo “tirou a máscara e mostrou a sua verdadeira face”, não poupando sequer as pessoas que falavam o seu idioma, o que significava basicamente cada um dos habitantes de Mariupol.

“Isso não o impediu o inimigo de cercar e bloquear a cidade logo no segundo dia da invasão em grande escala. E começou a arruinar a nossa cidade e tudo o que havíamos construído pouco antes. Tudo o que nós criámos, tudo aquilo que nos foi inspirando enquanto sociedade desapareceu por ódio extremo, ciúme e inveja”, acusou o autarca de 46 anos, eleito em 2015 como independente.

O cerco de Mariupol foi acompanhado de bombardeamentos intensivos contra uma cidade que tinha 400 mil habitantes antes da guerra e onde quem decidiu ficar não tinha para onde fugir, custando a vida a uma estimativa de 22 mil pessoas.

Foi a primeira grande batalha da Ucrânia, antes das que ainda não terminaram em Bakhmut e Avdiivka, também na província de Donetsk, e uma das maiores desde a II Guerra Mundial, sem testemunhas independentes porque jornalistas e organizações não-governamentais já tinham fugido da cidade, onde permaneciam, lembrou Vadym Boichenko, cerca de quatro mil militares, entre os quais a última bolsa de resistência do Batalhão Azov na siderúrgica de Azovstal, contra uma força desigual de perto de 50 mil russos.

“Isso levou ao resultado de que metade da cidade de Mariupol já não existe”, lamentou o presidente da Câmara de Mariupol, que vive atualmente na cidade de Dnipro, no sudeste do país: “Sinto uma dor muito profunda, acompanhada de raiva. Eles destruíram o nosso sonho”.

Quase dois anos após o início da guerra, Vadym Boichenko mantém contacto com pessoas que permanecem em Mariupol. Quando os bombardeamentos cessaram, restavam 90 mil habitantes na cidade, que terá atualmente perto de 150 mil.

Apesar das promessas de reconstrução das autoridades ocupantes, Vadym Boichenko conta que as pessoas “vivem sem infraestruturas críticas e apenas lutam para sobreviver à espera que a Ucrânia regresse”, enfrentando dificuldades de acesso a água potável e falta de emprego, e as crianças frequentam escolas sem aquecimento.

Os equipamentos médicos de boa qualidade que sobreviveram à guerra, prosseguiu o autarca, foram retirados para outros locais de Donetsk e oferecidos como “uma prenda do partido de [Presidente russo, Vladmir] Putin”, que vai concorrer a um novo mandato nas presidenciais russas em 2024, e que esteve em Mariupol em ruínas numa noite de março passado.

“Como convém a um ladrão, visitou Mariupol a coberto da escuridão”, comentou então o Ministério da Defesa ucraniano.

Contrariando a propaganda de Moscovo, Vadym Boichenko relatou à Lusa uma “atitude muito severa das autoridades russas e dos generais” para com os habitantes, que passam, descreveu, por “centros de filtragem” criados durante o cerco e que ainda existem para todas as pessoas que pretendem entrar em Mariupol. Todas são sujeitas a um interrogatório sobre as suas intenções.

“Era isto que esperavam dos russos?”, questionou o autarca, referindo-se aos habitantes pró-Kremlin que colaboraram com as forças de Moscovo durante o cerco, indicando as coordenadas precisas dos alvos a bombardear e que levaram a que a cidade ficasse “muito rapidamente sem eletricidade, sem comunicação, sem água, sem ligação móvel, sem nada”.

Apesar de o conflito na Ucrânia permanecer sem fim à vista, o autarca continua a trabalhar. Na mala para Lisboa, trouxe um dossiê contendo um plano de recuperação por etapas nos 18 meses pós-guerra.

O diagnóstico é devastador, mostrando 90% das infraestruturas vitais da cidade atingidas, incluindo dois terços das escolas e unidades de saúde destruídas ou danificadas e mais de metade das residências, num total de prejuízos calculado em 13,2 mil milhões de euros e sintetizado numa imagem de um “arranha-céus” estimado em dez milhões de toneladas de entulho de betão proveniente das ruínas.

O plano prevê 12 pontos de atuação, envolvendo 154 projetos de restabelecimento da habitação e infraestruturas, criação de serviços sociais e emprego, mas também resposta à crise humanitária, prevenção de conflitos sociais e garantias de segurança dos habitantes, num orçamento acima dos 660 milhões de euros.

Mariupol tornou-se num símbolo da agressão russa, mas é agora apresentada por Vadym Boichenko como “um símbolo da reconstrução da Ucrânia”.

Foi esse aliás o argumento usado pelo Conselho da Europa para atribuir, a par do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, o Prémio Norte-Sul à Associação das Cidades Ucranianas, em sinal de reconhecimento do “seu forte empenho para assegurar uma melhor integração das pessoas internamente deslocadas e para responder aos desafios socioeconómicos que surgem em tempo de guerra”, em respeito dos valores democráticos.

*** Henrique Botequilha (texto) e André Kosters (fotos), da agência Lusa ***