“Este segundo ano é que vai ser determinante, aí é que vamos perceber” o impacto da mudança de governação, adiantou a socióloga Karina Carvalho, da direção da Plataforma de Reflexão Angola (PRA), um espaço de debate e reflexão constituído pela diáspora angolana em Portugal.

Para Manuel Santos, também formado em Sociologia, “há elementos do passado que são fundamentais para o futuro que se quer construir” e que “não sofreram alterações estruturais” como a Constituição, que deve “servir, de facto, Angola e não transformar o titular do poder executivo num soberano”.

O consultor de 47 anos, há 14 anos em Portugal, defende uma alteração constitucional que “retire a carga totalitarista dos titulares do poder executivo”, afirmando que a “Constituição foi feita à medida de José Eduardo dos Santos, mas é um fato que assenta bem a qualquer pessoa que o vista”.

Karina Carvalho pensa que é “uma ambição desmedida” achar que vai haver uma alteração constitucional no curto prazo, até porque “como o poder está centralizado em Luanda, é preciso dar tempo para que se constituam elites locais”.

A questão da "moralização cívica da sociedade angolana” que Manuel Santos diz ser “muito deficitária em termos de valores", é outro dos problemas a resolver.

“Os maus exemplos vieram de cima e quando quem manda faz o que quer, quem obedece também faz o que lhe apetece”, criticou este dirigente da Plataforma, questionando: “como se combate a corrupção quando se fez parte do próprio fenómeno e não teve coragem de fazer ‘mea culpa’ e mostrar que foi beneficiado pelos frutos dessa própria corrupção?”

Manuel Santos lembrou que Angola foi governada desde 1975 até à atualidade pelo MPLA e que este é também o partido do presidente João Lourenço, que substituiu José Eduardo dos Santos no cargo após quase 40 anos no poder.

“Há uma responsabilidade histórica do MPLA no estado moral, psicológico, material e económico do país”, vincou.

“O emissor do discurso continua o ser o mesmo, o que descredibiliza”, concorda o ator Orlando Sérgio Azevedo, também pertencente à direção da Plataforma.

Orlando Azevedo assistiu a momentos históricos nos dois países. Viveu o 25 de abril de 1974 em Portugal, regressou ao seu país, voltou a Portugal em 1989, na altura da adesão à CEE, para estudar teatro, fixou-se em Angola em 2001 e encontra-se novamente em Portugal há cerca de três anos. Tem um discurso otimista: “tenho de assinalar que houve uma mudança de poder e que esta transição foi pacifica, um dado muito importante na história deste país em que os atores políticos têm professado ideologias exclusivistas”.

O ator salienta que o regime deu “sinais de mudança”, apontando como exemplos a maior abertura na imprensa pública e a “desocupação” do espaço público.

A abertura à sociedade civil “é um bom sinal”, concorda Karina Carvalho, salientando que, no entanto, é preciso tempo para que esta se organize e ganhe “massa crítica”.

“[O regime] silenciou de tal maneira a sociedade civil que já não havia nada, o MPLA pôs as ONG na rua, não havia espaço público”, acrescenta Orlando Azevedo.

“É como se tivesse transformado Angola num ‘gulag’ imenso, não se passa nada”, descreve Karina Carvalho, atribuindo a José Eduardo dos Santos um legado “corrupção e nepotismo”.

Os angolanos na diáspora esperam também que seja dada mais atenção a áreas como a Educação e a Saúde no orçamento angolano, em detrimento em setores que canalizavam grande parte das verbas como a Defesa e Segurança.

Para Orlando Azevedo, esta mudança já está em curso e deve ser destacada.

“Este ano, pela primeira vez, a saúde e a educação vão ultrapassar os gastos militares, o que é significativo”, declarou, em desacordo com Manuel dos Santos, para quem estes “elementos estruturais continuam atirados para as calendas gregas”.

O sociólogo salientou ainda a necessidade de apostar na agricultura, uma opinião partilhada por Karina Carvalho.

“É preciso alimentar as pessoas”, afirma. E acrescenta: “Podemos falar de educação, de saúde, mas enquanto não resolvermos problemas de energia e abastecimento de água não se pode desenvolver nada”.

A “privatização do território” e o “acesso à terra” é outra preocupação dos dirigentes da Plataforma. Manuel Santos lembrou a expulsão de “comunidades inteiras” e lamentou que “o Estado tenha tratado os seus cidadãos como se fossem um objeto a remover”.

Karina Carvalho nota, por outro lado, que esta “relação embrionária entre o MPLA e o executivo e o estado”, restringe a liberdade governativa de João Lourenço, e fala novamente na questão do tempo.

O pensamento de Manuel Santos segue a mesma linha. “Não se pode fazer uma democracia sem democratas e temos em Angola uma classe política que é castrense, autocrática e está a aprender a lidar com os outros”, comenta.

Quanto às relações com Portugal, são “promíscuas”, na opinião de Karina Carvalho.

“É curioso que não se fala nada dos negócios com Angola, não há uma investigação”, atalha, considerando que as questões da “corrupção são um efeito e um reflexo daquilo que é a governação do país”.

Os membros da Plataforma deixam também algumas sugestões sobre os temas que gostariam que João Lourenço abordasse com o seu homólogo, Marcelo Rebelo de Sousa, durante a visita a Portugal.

Orlando Azevedo deseja um reforço do “elo de afeto chamado língua portuguesa”, Manuel Santos espera que os angolanos venham a enfrentar “menos obstáculos” por parte das autoridades portuguesas e Karina Carvalho propõe que os dois líderes definam “estratégias conjuntas de combate ao branqueamento de capitais” em particular no que respeita à recuperação de ativos.