Esta quinta-feira, pela tarde, Woody Allen passou pela Cinemateca para uma conversa com Ricardo Araújo Pereira. Essa sessão, de entrada gratuita, suscitou enorme interesse do público português, a avaliar pela fila que se formou à porta, horas antes, que se estendeu por largas dezenas de metros até à avenida da Liberdade, tendo a maioria das pessoas ficado de fora da sala”.

Dez minutos antes da abertura das portas no Campo Pequeno, onde Woody Allen se apresentou com a The New Orleans Jazz Band, o interesse era praticamente nulo: nem uma fila, apenas uma dúzia de pessoas a questionar os seguranças sobre qual seria a porta por onde entrariam com os seus bilhetes. Não se sentia qualquer entusiasmo no ar. Até que começaram a aparecer, muitos franceses, muitos fãs do cineasta, quiçá alguns curiosos. Para o ver a tocar clarinete? Não, para o ver a ele, o mais perto que conseguissem.

Porém, ninguém ficou à porta. Quem tinha bilhete entrou, sentou-se, ocupou boa parte dos lugares de plateia e metade das bancadas da sala. Pouco antes do início do espetáculo, houve quem tivesse marcado presença no Campo Pequeno por causa de Woody Allen, mas não para o ver. Dois homens ergueram uma tarja onde se lia “Woody, vai para casa, nada de pedófilos em Lisboa”, e passearam-na junto à entrada principal da sala. O protesto era uma referência à acusação de abuso sexual da sua filha adotiva, Dylan, quando esta era menor. O caso foi a tribunal nos anos 90, o abuso em questão nunca foi provado, a sua ex-mulher, Mia Farrow, tem feito desse o seu campo de batalha, dois filhos desta, Moses e Soon-Yi (Allen acabaria a casar com esta última), juram que nada aconteceu e que tudo não passa de uma invenção. Rapidamente o protesto foi terminado pela Polícia de Segurança Pública e quem chegou mais tarde nem soube que ali tinha estado tal tarja – provavelmente, dado terem pago bilhete para assistir a um concerto de Woody Allen, nem o queriam saber.

Provável, também, que não quisessem saber da música para nada. Há anos que Woody Allen anda pelo mundo a tocar o jazz antigo de Nova Orleães para quem o queira ouvir, mas na sua lápide continuará a constar “realizador de 'Annie Hall', 'Manhattan' ou 'Zelig'”, e não “clarinetista”. Com efeito, ficamos com a sensação que, para Allen, a sua carreira de músico não passa de uma brincadeira, um hobby com o qual passa os seus tempos livres quando não está a rodar um filme. Também ficamos com a sensação que chamar-lhe “clarinetista” ou mesmo “músico” seria um tremendo erro: quem pagou até 150 euros por um bilhete para este espetáculo não o fez pela (falta de) técnica de Allen, um homem que consegue transformar um clarinete num kazoo. Pagaram para o aplaudir de pé e dizer no final, como se ouviu, foi um grande concerto, foi espetacular, porque – como dizia Don Rickles – se pagam tanto dinheiro pela entrada o melhor é mesmo apreciar a coisa.

Foi uma hora de concerto e essa hora arrastou-se em mais três encores, já depois de Woody Allen ter proferido uma pequena piada: “vamos tocar mais uma peça, e depois ficamos cansados”. Foi a segunda da noite, sendo a primeira o espetáculo em si. Os músicos entraram à vez, Allen a meio, tendo sido ajudado a subir as escadas na lateral de palco, não fosse tropeçar e destroçar os seus 87 anos de corpo. De imediato começou a música: o clarinete dissonante, o clarinetista às voltas com a boquilha, a perninha cruzada e o olhar fixo em coisa nenhuma. Ornette Coleman também não sabia tocar, diziam à altura. Jandek também não sabe, diz-se há muito. O Woody Allen músico (podíamos colocar aqui também as aspas, mas entremos na brincadeira) é curiosamente uma mistura de ambos, com o elã de ter a perfeita noção de que é “um músico pavoroso” (palavras dele, a sério). Olhamos em volta e ninguém abana a cabeça ao som do swing; os rostos são inexpressivos, como se do palco nada se escutasse, como se num concerto o holofote fosse mais importante que a música.

Há uma bootleg atribuída aos Napalm Death com o bonito nome de “o punk é um cadáver putrefacto”; nas mãos de Woody Allen é isso o jazz, “o subterfúgio de quem não tem talento”. “Os músicos de jazz divertem-se mais que quem os escuta”, citando o Tony Wilson de “24 Hour Party People”. O espetáculo musical de Allen não é um reavivar, não é um continuum histórico, não é um novo olhar sobre um género antigo ou algo que o valha. É um tédio absoluto que só agrada a quem gosta demasiado dos seus filmes. É a arma de arremesso perfeita das novas gerações, quando precisarem de defender os rappers que ao vivo recorrem quase exclusivamente a backtracks: tu também foste ver o Woody Allen e ele praticamente só lá esteve sentado.

Allen bem que pode ter feito a promessa de tocar “música de Nova Orleães, blues, ragtime, canções litúrgicas”, bem que pode ter dito “estamos muito contentes por estar aqui”. A promessa foi falsa e a simpatia não lhe merece assim tantos pontos. Mais interessante que o concerto foi a conversa que a dada altura teve com o trompetista, o contrabaixista e o pianista, que resultou num “não” abanado de todos eles, e só podemos imaginar qual terá sido a pergunta. Nesta hora e meia de (in)capacidade jazzística, destaque para a voz de Jerry Zigmont, que na maior parte do tempo se ocupou do trombone, para a intepretação de 'Down By The Riverside' (que alguns dos presentes acompanharam com palmas, talvez para se distraírem) e para o final, apenas e só por ter sido o final. O Campo Pequeno esvaziou-se rapidamente, alguns permaneceram à porta, quem tem juízo jurou para nunca mais. E isso acaba por ser irrelevante; já só se pensa no próximo filme.