1. O 25 de Abril está cada vez maior. Quanto mais os monstros, velhos monstros, novos monstros, mais bonito ele fica. Um espanto que este dia tenha acontecido, o melhor que Portugal pôs no mundo, e tantos africanos ajudaram a fazer. Dia de todos nós, para não esquecer o que foi, o que está em perigo, o que falta. Que bom, 45 anos depois, uma avenida chamada Liberdade encher-se de cravos vermelhos, sobretudo quando ainda há poucos meses ali voaram balas de borracha, cassetetes, o contrário. O contrário está sempre à espreita. E para quem não se acha hoje em Lisboa, como eu, que bom espalhar este dia.

Escrevo de Buenos Aires, da Avenida 9 de Julho, Dia da Independência, um sul do mundo onde mulheres encheram as ruas pela descriminalização do aborto, e mulheres continuam a ir à Praça de Maio lembrar os desaparecidos da ditadura. Na Argentina, como no Brasil, como em Lisboa, como em Bissau-Luanda-Maputo: continuaremos a contar às nossas crianças. E a cantar.

Eu vim de Zeca no ouvido, um Zeca novo a estrear, contado pelo Adelino Gomes, que há 45 anos nos contou a revolução, e a quem tenho a alegria de, cada vez mais, chamar mestre. Porque, nestes tempos turvos, de breu mesmo, o jornalismo é, cada vez mais, quem diria, clandestino.

2. Zeca: Acez Osnofa. Nunca ouviram falar? Experimentem “ler ao contrário”. Isto mesmo sugeriam, suprema lata, os jornalistas do fantástico suplemento satírico “A Mosca”, no (desaparecido) “Diário de Lisboa”, zombando da censura, para quem José Afonso era um “comunista”. Não só escarrapachavam o nome de trás para diante no jornal, como ainda diziam aos leitores de que forma o ler.

Esta e muitas outras histórias são contadas por Adelino num álbum que acaba de sair, “José Afonso Ao Vivo”. Livro-música, grande como um vinil, porque tem mesmo um LP lá dentro e dois Cds. As gravações inéditas, históricas, de dois concertos, um seis anos antes do 25 de Abril, o outro seis anos depois. Um total acaso numérico (ou esse saltimbanco deus que é o acaso), como outros houve na aventura de trazer ao de cima algo da juventude definitiva de José Afonso (e nesta “juventude definitiva” vai um salve a Ruy Belo, porque a um poema dele a fui buscar).

3. Estamos, pois, a falar do futuro, do futuro. Que é o que sempre acontece quando cutucamos o passado errante. E o que Adelino penou, ao longo de centenas de entrevistas e consultas, contra a desmemória individual e os arquivos omissos ou esvaziados, para reconstruir os tempos em torno destas duas gravações inéditas de Zeca, a primeira a 4 de Maio de 1968, no teatro Avenida de Coimbra, a segunda a 23 de Fevereiro de 1980 na Sociedade de Carreço (Minho). Li, ouvi, anotei este álbum nas vésperas de partir, e acabei por deixar as notas em casa. Vai de aviso pelo que não vou lembrar de cor.

4. Adelino Gomes, grande repórter do 25 de Abril, foi também repórter do desembarque de José Afonso na Rocha de Conde Óbidos, em Lisboa, em Setembro de 1967. Zeca vinha de uns anos como professor na Beira, Moçambique, experiência colonial devastadora. Daquele cais partiam homens para a guerra, dita do Ultramar pelo regime, de Libertação pelos africanos. “Soldadinhos” que tantas vezes voltavam sem uma perna, avariados, ou num “caixão de pinho”, como o da canção “Menina dos Olhos Tristes”.

Nesse dia, no cais, o jovem Adelino era repórter havia apenas um ano, já com essa obstinação que é uma espécie de fé para quem, como ele, crê num deus dos repórteres. E portanto não se deixou abalar com as esquivas do recém-chegado. Zeca não vinha só cansado da viagem, mas no escuro do que vivera e ia viver, tudo o que a ditadura significava, decidido a continuar como professor, mas apenas com uma vaga promessa de trabalho no Algarve. E não tinha ideia do que era o “PBX” onde Adelino trabalhava, programa de rádio novo, mas já um acontecimento, a abanar a pasmaceira salazarenta.

O repórter acabou por conseguir gravar com Zeca, a peça foi mesmo para o ar, depois de censurada numa primeira triagem, e Adelino não a achou nos arquivos, durante a pesquisa de agora. Nem a gravação de algumas canções que Zeca fez, pouco depois, nos estúdios do “PBX”.

5. Uma das coisas que ressaltam, depois de ler e ouvir este álbum, é como, sem querer, a ditadura multiplicou o Zeca músico. Vista à distância, a perseguição cruel a que Zeca foi sujeito, o veto do regime que o impediu de ser contratado como professor, contribuíram para que ele se tornasse quem tinha de ser. Achando que estava a acabar com ele, o regime fez o oposto.

Impedido de seguir no ensino oficial, reduzido a dar explicações, Zeca foi aceitando cada vez mais convites em colectividades, associações, encontros de campistas, então uns subversivos. Acima de tudo porque para ele a música, como mostra Adelino, era esse encontro ao vivo, país dentro e país fora. Mas também porque foi um sustento alternativo, ainda que parco.

Um grande manguito ao regime que vetou o professor José Afonso, e outro aos pides, gnrs e psps que espiaram os concertos, muitas vezes sem perceber patavina das letras.

6. As duas gravações agora reveladas devem-se aos amadores Jorge Rino (Coimbra) e Manuel Minas (Carreço), e aos acasos que fizeram José Moças, futuro editor, dar com elas. E a investigação que as acompanha deve-se à visão da família de José Afonso, que muito bem entendeu a importância de lhes dar um contexto, e para isso chamou Adelino Gomes.

A maior parte do texto é dedicada ao primeiro concerto, o que aconteceu em plena ditadura. As escavações iniciais levantaram versões contraditórias a ponto de Adelino duvidar se o que aconteceu acontecera. Nesse sentido é um texto também sobre a dificuldade de escavar, acção em que sempre temos duas cabeças, a que olha para trás e a que olha para a frente.

E que dizer quando pomos esse disco a tocar, e de lá, desse Maio de 68, vem a voz de Zeca, à primeira faixa cantando o soldadinho que não volta, e depois volta num caixão de pinho. Não é uma canção feita especificamente para aquela guerra, mas naquele momento claro que era sobre aquela guerra, e todos ali o sabiam, todos aqueles estudantes da idade dos que em Paris arrancavam a praia sob a calçada. Eu nunca tinha ouvido Zeca ao vivo assim, em plena ditadura. Ouvirmos esta gravação é escutarmos aquela voz naquele exacto momento, no meio daquela plateia de respirações, sabendo que entre aquelas pessoas estarão bufos, que a todo momento pode acontecer algo a Zeca. E sabendo que ele sabe disso, ao cantar cada palavra. Eu nunca ouvira Zeca partilhando o momento em que ele sabe que pode não sair dali vivo. Esta gravação é essa partilha histórica. E Zeca, que mal fala ao longo de todo este concerto, acaba-o como começara, num desafio: “Cantar Alentejano”, a música sobre Catarina Eufémia, ceifeira contestatária alvejada nos anos 1950 por um tenente da GNR. “Chamava-se Catarina / o Alentejo a viu nascer...”

Ah, Coimbras das capas negras de hoje, além de Coimbra, colhei aqui: bravura e comunhão. Quantos gritos na garganta, quantas palavras em silêncio, e quantas palmas. Também fomos isto, também somos isto. Também somos capazes.

7. Que contraste ouvir depois o concerto de 1980, realizado por muita teimosia, muito amor, a ponto de se ter feito um crowdfunding muito antes de a palavra existir. A pequena comunidade colectou o dinheiro de 200 bilhetes, alugou a sala da Sociedade de Instrução e Recreio de Carreço, e trouxe mesmo Zeca, e seus tocadores (génios das cordas como Rui Pato, Júlio Pereira).

Como Zeca fala. Farta-se de falar. É outro país, com tanto por cumprir, tanto já não cumprido, mas livre. E para mim, que o ouço nas vésperas de partir para um périplo pelo Brasil, antecedido por Argentina e Uruguai, como não acreditar nesse deus dos acasos, quando a primeira música é aquela dedicada a Alípio de Freitas, o sacerdote preso no Brasil da ditadura, da tortura “que já matou mais de mil”? Como não me arrepiar, não nos arrepiarmos, ao ouvir Zeca cantar sobre um horror que então ainda estava em carne viva no Brasil, que depois, por vinte anos, julgámos passado, e que agora é celebrado pelo homem eleito presidente? O que Zeca aqui canta é o que há pouco parecia passado e agora ameaça ser presente.

E mais adiante no disco ouço-o, quase como se Zeca me acompanhasse a fazer as malas, falar nas ditaduras latino-americanas, falar na Argentina, onde estou, do Uruguai, onde estarei. Lá de Carreço, em 1980, Zeca fala connosco.

8. Esse disco termina com um excerto da “Grândola”. Um excerto que termina abruptamente, como que interrompido. E hoje, 25 de Abril de 2019, dia em que levo a “Grândola” no ouvido até uma livraria chamada “Otras Orillas”, Outras Margens, em Buenos Aires, para brindarmos juntos pela liberdade, penso que esta “Grândola” interrompida é exactamente a que temos agora nas mãos. A “Grândola” que daqui envio aos amigos pelo Brasil, onde aterrarei no 1º de Maio, para ir de sul a nordeste, por entre o que está mais do que nunca em luta, incluindo a terra indígena.

9. Escrever é uma luta de libertação, em todos os sentidos. Não costumo falar aqui dos livros que faço, mas neste 25 de Abril quero mencionar o que dá origem ao périplo brasileiro, “Deus-dará”. Exactamente hoje, uma jovem doutoranda, Diana Simões, está numa universidade da América do Norte a defender a sua tese sobre narradores póstumos, em que o narrador desse livro é um dos protagonistas. Foi ele quem me ajudou a escavar o império português, terminado, mas não encerrado, no dia 25 de Abril de 1974. E seguirá daqui comigo para o Brasil. Recomecemos a “Grândola”, onde ela foi interrompida.