Hoje estamos no rescaldo do 25 de Abril e, por isso, é um dos dias mais naturais para a minha geração, exactamente porque nascemos após a Revolução e fomos um misto de baby-boomers, testemunhas e cobaias desse novíssimo Portugal democrático. Somos mais um rescaldo que um resultado: trazemos o peso da expectativa e o desleixo do desconhecimento, o privilégio do berço em liberdade e a responsabilidade do heroísmo que nos antecedeu. Quando, em meados dos anos 90, nos apelidaram de “Geração Rasca” deviam justamente ter-nos chamado “Geração Rescaldo”.

Não fomos a primeira desilusão de Abril, escusamos de nos vangloriar quanto a isso. Antes de nós houve um processo de ajustamento, ou de revolução em curso, pejado de gente que desiludiu e se desiludiu. É por isso que digo a todos nós, adolescentes nos anos 90, que quando baixámos as calças à Prova Geral de Acesso, ou quando começámos a usar cabelo comprido por causa do Kurt e não do Zé Mário, nunca estivemos a ser a primeira decepção de Abril. Aliás, estávamos a deixar de ser rescaldo para sermos fruto; para colhermos os frutos: os bons, os bichosos, os livremente podres. A desilusão original (dos que se enganaram e tentaram enganar) ficou por conta de alguns dos revolucionários – aqueles para quem desamordaçar Portugal era só uma tentativa de virar a mordaça do avesso.

Nós, os do rescaldo, estamos num enclave. Fomos encurralados cronologicamente entre a beatice dos cravos e a asnice dos universitários apanhados no YouYube (aqueles que não distinguem um Spínola dum Spicoli, ou um Salgueiro Maia dum Salix Alba). Se a estupidez dos mais novos envergonha o meu orgulho abrilista, já o pietismo dos mais velhos pode esconder heresias laicas. De todos os feriados nacionais, nenhum se comemora com maior fervor religioso que o secularíssimo 25 de Abril; nada contra o entusiasmo – partilho-o. O que me choca é o messianismo votado à data, como se o 25/04/74 fosse só a data de entrega duma profecia, e que qualquer coisa melhor ainda está por cumprir-se. Os capitães não podem ser pastorinhos encandeados, nem a Liberdade um segredo que carece de cumprimento, ou um milagre reservado aos penitentes.

Há meia dúzia de anos perguntaram-me numa entrevista se o 25 de Abril fora uma utopia. Eu, que sou rescaldo, irritei-me. Respondi que a tangibilidade da revolução não se relaciona com a intangibilidade das utopias. Pormos um foco ilusório numa mudança efectiva é sermos negacionistas de Abril. Cada revolucionário poderia ter uma utopia em mente -  felizmente muitas delas se concretizaram, felizmente outras tantas não – mas a data pouco celebra intenções individuais, celebra antes o esforço colectivo pela Liberdade e pela Democracia, o tal sistema que é o pior com excepção de todos os outros.

A irritação piorou com a questão seguinte, que me perguntava se os sonhos de Abril ainda estavam vivos. A Revolução dos Cravos foi o dia em que Portugal acordou; falar em sonhos é para quem ainda está a dormir. Irritamo-nos muito com os energúmenos saudosistas do Estado Novo, mas pouco nos enfurecemos com os que teimam em não reparar que as coisas mudaram. O 25 de Abril continua a ser tratado com uma aura sobrenatural, uma sementeira de sonhos, e não como um dia de transição. Portugal tirou o açaime; quem acha que deve continuar a ser tirado insinua, ou que o açaime nunca existiu, ou que ainda não foi realmente removido. E foi, caramba, se foi! Não desonremos o feito daqueles heróis, os mesmos que nos garantiram liberdade até para os desonrarmos.

Sou dos que gritam “25 de Abril, sempre!”, já que o rescaldo me parece bom. Não é como no Natal, “quando o Homem quer”, porque a Revolução dos Cravos foi quando homens e mulheres quiseram, tentaram e conseguiram: perfeição fechada em pretérito perfeito. Grito “25 de Abril, sempre!”, não porque tem de acontecer todos os dias, mas porque já aconteceu e (até ver) foi para sempre. Grito “25 de Abril, sempre”, como quem grita “25 de Abril de 1974, sempre”.  Grito “sempre!” porque, felizmente, a necessidade dum 25 de Abril tem sido “nunca mais”.

SÍTIOS CERTOS, LUGARES CERTOS E O RESTO 

Não é a primeira vez que aqui sugiro o acervo recentemente disponibilizado pela RTP. Tendo, porém, em conta a data que estamos a celebrar, é crucial espreitar o 25 de Abril pelas câmaras, vozes e caras de uma Rádio Televisão Portuguesa que esteve no epicentro da revolução.

Neste espaço de recomendações gosto de, ocasionalmente, me voltar para sítios físicos. O de hoje contraria da melhor forma um lugar-comum: o Cais do Sodré celebrizou-se com locais de má fama, porque não aceitar que ganhe novo fôlego na boa fama dos seus espaços? Falo especificamente do Cais do Pirata, um bar que renega o fascínio escuro e agreste da noite lisboeta. É bem iluminado, bem programado, nas paredes há murais dos excelentes Pedro Lourenço e Ricardo Reis. A música não atrapalha conversas, e as conversas não atrapalham a ginga de quem lá está pela música. Há happy hour de imperiais e eu não tenho qualquer comissão pelos elogios – situação a ser revista urgentemente.

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