A ilusão brasileira, no início deste século, de que, com milagre económico, o país estava a emergir como um grande no mundo e que iria dar certo como país decente, com progresso social, retrocesso da pobreza e consolidação da classe média, esfumou-se nos últimos quatro anos: em 2013, a queda do preço do petróleo e os ricochetes da crise financeira internacional, puseram à vista a fragilidade e insustentabilidade dos progressos na década de ouro (2001/2010), quando o Brasil chegou ao crescimento de 7,5% ao ano. Agora, o povão brasileiro está a ver a classe política instalada como uma quadrilha de trafulhas que o desgoverna.

Esta deriva do Brasil e a brecha no Atlântico Norte aberta pelo presidente de um país que, sendo primeira potência mundial, opta por se limitar à defesa de tangíveis interesses nacionalistas (“America First”) da revolta branca que o elegeu em novembro passado, são dois inquietantes sobressaltos destes nossos dias.

No Brasil, as presidências de Fernando Henrique Cardoso e de Lula, até o primeiro mandato de Dilma, sim, tinham aberto a esperança, muita gente saiu da vida em miséria e o Brasil cresceu. Mas, depois, sobretudo desde 2014, os brasileiros estão a verificar, com fúria, que quase toda a classe política, à esquerda, à direita e ao centro, está contaminada pela corrupção. É difícil encontrar algum político brasileiro que tenha as mãos limpas de subornos.

A política brasileira tem funcionado ligada aos negócios numa sistemática e prolongada rede de tráfico de influências. Tudo num cenário de recessão e degradação das condições de vida das pessoas.

Dilma foi derrubada há um ano e é das raras figuras que escapa aos enredos da corrupção. Caiu porque se deixou apanhar por um golpe de poderosos na Câmara de Deputados. O sistema queria abatê-la e livrar-se do esquerdismo populista – e também corrupto – do PT, e valeu-se para isso de irregularidades do governo Dilma na prática orçamental: ela autorizou despesa não prevista no orçamento.

O líder da operação, no ano passado, de eliminação política de Dilma, Eduardo Cunha, então presidente da Câmara de Deputados, está hoje preso, condenado a 15 anos de cadeia, por corrupção. Recebeu milhões de dólares em subornos por contratos da Petrobrás.

A queda de Dilma da presidência varreu a esquerda do poder no Brasil e entregou-o a Michel Temer e aos seus amigos à direita. Em dez meses, até agora, de poder Temer já perdeu oito ministros, quase todos por casos relacionados com a corrupção.

Agora, é ele próprio, Temer, o presidente, quem está à beira do precipício. Assediado pela crise política e com o governo na corda-bamba, Temer acaba de mover uma peça no tabuleiro do poder para tentar dar a volta ao cenário de queda iminente: mexeu no ministério da Justiça, nomeando para o cargo Torquato Jardim, ex-membro do Supremo Tribunal de Justiça(STJ), ainda influente nessa casa.

Isto, a uma semana de o STJ iniciar, em 6 de junho, o julgamento de irregularidades no financiamento da campanha eleitoral de 2014, em que Temer era o vice de Dilma. Pelo menos três dos sete juízes inclinam-se para anular a eleição. Por entre a acumulação de escândalos políticos, vários implicando o próprio Temer, o tempo corre rapidamente contra o Presidente, submetido a fortíssimas pressões. Basta que um dos outros quatro juízes decida no mesmo sentido e Temer perde imediatamente o mandato.

É o cenário em que toda a ala conservadora da classe política brasileira está a manobrar: querem que, a precipitar-se a escolha do sucessor de Temer, este seja por eleição interna na Câmara de Deputados. Um filósofo brasileiro, Renato Ribeiro, já questionou: “Não é estranho que nenhum nome cogitado para ser presidente em eleições indiretas tenha chance de ser eleito se elas forem diretas?”

Na rua, a esquerda e muita gente mais retoma a palavra de ordem dos anos 80, quando o Brasil tentava sair da ditadura: “Diretas, já”. No domingo, uma onda humana com dezenas de milhar de pessoas no areal de Copacabana, embalada  por artistas amados como Caetano Veloso (insuspeito de simpatias pelo PT, não apoiou Lula nem nos tempos de euforia) e Milton Nascimento, puxou a toda a voz para que o povo seja ouvido. O slogan explode em manifestações por todo o Brasil. É povo que está farto e que quer escolher uma presidência decente. Quem, impoluto?  É o que fica muito difícil de ver, sendo que só um milagre pode permitir que Temer, com a imagem e autoridade irremediavelmente arrasadas, continue no posto de comando do Brasil.

Lá a sul, “Tristeza não tem fim, felicidade sim”, escreveu Vinicius de Moraes para uma célebre canção. Nela continua o sentido da vida do eterno país do futuro.

Pelo Atlântico Norte, a Europa ficou neste último fim de semana a saber o que é que Trump quer dizer quando proclama “America First: os interesses das empresas de petróleo nos Estados Unidos estão acima do ecossistema do planeta. A Europa, com a Alemanha à cabeça, está na primeira linha dos investimentos em energias renováveis, o solar e o eólico. Trump vai na direcção oposta. Ele também deixou claro que vai complicar a vida de empresas europeias na América: vai puxar pelo “made in USA” e obstruir o negócio da Mercedes, da BMW e das outras europeias. Até nos assuntos de segurança, Trump quer impor aos europeus um preço a pagar.

Quando a América se afasta da Europa, a brecha não fica coisa boa. Provavelmente, pior para todos. Embora a rudeza arrogante de Trump possa ter o mérito de unir e mobilizar a Europa. Merkel mostra-se líder.

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Portugal observado por olhos italianos.

Faltam nove dias para o voto dos britânicos: a vantagem dos conservadores caiu de 20 para sete pontos percentuais. As entrevistas de ontem não ajudaram Theresa May sem brilho.

Um olhar sobre a  Bienal de Veneza.

Duas páginas da frente escolhidas hoje: esta do Libération e esta capa da Veja

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