Gostava de estar arranjada, o cabelo bem cortado, as unhas arranjadas. Tinha uma fezada que um dia ganharia o Euromilhões e, para tanto sonho, possuía também uma lista de pessoas a quem ajudaria, coisas que faria. A minha avó gostava de Espanha, do Júlio Iglésias. Era fanática do Sporting e terá festejado, lá onde está, o campeonato e toda a euforia leonina. Gostava de touradas e de ler. Apreciava uma boa fofoca. 

Ao pequeno-almoço não desdenhava pãezinhos de leite. Uma laranja cortada, se algarvia, era um regalo. Não percebeu, como nenhum de nós – isto se formos sinceros –, esta coisa do vírus. A máscara, o confinamento, o medo disto e daquilo, tudo a pasmava. Imagino o que as imagens da guerra no Ucrânia lhe iriam provocar, imagino a Ucrânia nas suas orações. E a indignação com as eleições em França, com a escalada da extrema-direita. Saberia tudo isto por seguir as notícias para tentar compreender o mundo.

Teria repulsa da justiça à portuguesa quando lhe contasse que uma menina de seis anos foi abusada por um primo durante muitos, muitos meses, mas que o juiz considerou que a menina “está bem” e, portanto, o agressor levou com uma multa de mil euros e pena suspensa. A minha avó invocaria Deus e os santos e ficaria, como eu, enojada de tudo isto. Eu teria mais umas tantas histórias similares para lhe contar e até a consigo a ouvir, perguntando com um ligeiríssimo sotaque alentejano: mas quem fiscaliza os juízes? Não sei se alguém sabe responder a isto. 

O meu segundo nome é dela, Pilar. Morreu há um ano, fez um ano no dia 11, segunda-feira. Morreu no mesmo dia em que o meu avô também decidiu que já chegava. Não quereria lamúrias, mas tão-pouco que nos esquecêssemos dela. Como se isso fosse possível.