Sabemos que na maioria dos casos de violência sexual contra crianças, quem abusa é alguém próximo, que mantém uma relação de proximidade com a vítima, e geralmente é homem. Ao contrário do mito de que é um desconhecido, a realidade é que os abusadores não tendem a apresentar-se como um estranho de aparência duvidosa, suspeita ou perigosa, antes pelo contrário. Estas pessoas tendem a ganhar a confiança das crianças, mas acima de tudo dos pais, das mães e das pessoas cuidadoras. O objetivo é eliminar qualquer suspeita para que possam relacionar-se com as crianças sem que essas interações chamem à atenção ou sejam vistas como algo estranho ou desadequado. 

No dia 18 de novembro assinala-se o Dia Europeu para a Proteção de Crianças contra a Exploração Sexual e os Abusos Sexuais, e, por este motivo, vou apresentar de forma sucinta como os abusadores manipulam as crianças, as suas famílias e as pessoas cuidadoras de modo a obterem a confiança e a segurança necessárias. 

Identificar a vítima

Quem abusa começa por identificar a vítima para explorar aquilo que perceciona como vulnerabilidade e assim iniciar uma relação com a criança. As vulnerabilidades podem ser temporárias (ex.: separação ou divórcio dos pais, morte de um familiar ou animal doméstico, mudança de casa ou de escola) ou podem ser permanentes, como é o caso de uma deficiência. Há características que, não sendo vulnerabilidades, podem ser exploradas como tal, como por exemplo, a orientação sexual de uma criança. 

Sedução e confiança

Costumo dizer que quem abusa passa a maioria do tempo a seduzir. No entanto, o alvo dessa sedução não são as crianças, mas sim as pessoas cuidadoras e de referência. O objetivo desta estratégia é criar e manter uma relação de confiança com as pessoas responsáveis pelas crianças, para que o abusador não seja identificado como uma pessoa perigosa ou suspeita. Ao conquistar cuidadosamente as pessoas adultas, trabalha para eliminar qualquer dúvida ou desconfiança que possa ser associada à sua pessoa. A obtenção da confiança das outras pessoas permite, por sua vez, avançar na relação que tem com a criança, sem que isso pareça estranho aos olhos dos outros, nomeadamente das e dos responsáveis pelas crianças. 

Isolar a vítima

Ao isolar a criança, o abusador consegue ter momentos a sós com ela para, gradualmente, a dessensibilizar ao toque e sexualizar a relação. Há várias formas de conseguir estes momentos privados. Em contexto profissional, pode usar a sua posição de poder para legitimar o isolamento da criança: pode ser um animador de campos de férias que requisita uma criança para ajudá-lo a preparar uma atividade, ou uma professora que pede a um aluno para falarem sozinhos durante o intervalo. 

Nestes momentos, quem abusa detém o controlo total do que fala e faz com a criança. Aos poucos, começa a dessensibilizar a criança ao toque e às conversas de teor sexualizado, normalizando esta forma de se relacionar com ela.

Dessensibilização

O abusador testa os limites da criança ao toque para compreender até onde poderá avançar sem que ela estranhe. O objetivo é habituar a criança à proximidade física e ao contacto, aumentando a quantidade, intensidade e regularidade das interações. Pode ser um aperto de mão que tem associado uma festa no braço e que, mais tarde, passa a ser uma carícia nas costas e assim sucessivamente, tornando-se cada vez mais invasivo. Quem abusa não é uma pessoa estranha com ar perigoso e que tem comportamentos identificados como abusivos ou violentos, pode ser um professor, padre, treinador de futebol, pessoa amiga da família, alguém que demonstra uma preocupação com a criança, com o objetivo de conquistar a sua confiança. Estes contactos não têm de ter uma expressão violenta, agressiva ou, necessariamente, intrusiva; antes pelo contrário, pode ser um processo moroso, subtil e cuidadoso. O abusador investe na sua relação com a criança para integrar e normalizar determinados tipos de contactos físicos nas suas interações para que ela não se aperceba da evolução.

Segredo

O segredo é uma estratégia bastante comum e muito eficaz. Ao recorrer ao segredo, quem abusa manipula a criança para que esta se sinta envolvida numa relação especial e, assim, garantir o seu silenciamento. Mesmo sem compreender a natureza da relação, a criança poderá sentir-se, de alguma forma, responsabilizada por contribuir para a manutenção do segredo. Este sentimento, como se estivesse a participar em algo errado ou envolvida numa situação que não compreende inteiramente, é central para garantir o silenciamento da criança. O sentimento de culpa que pode advir destas situações é um poderoso silenciador. Muitas vítimas na infância só partilham a sua história de abuso apenas quando são pessoas adultas.

Ameaça, chantagem e ofertas

Quem abusa também pode recorrer a estratégias mais coercivas como a ameaça, chantagem ou à oferta de bens, benefícios ou privilégios. Em certos casos, pode ameaçar matar o pai ou a mãe da criança se ela não fizer o que ele deseja. As ameaças também podem recair sobre o bem-estar da própria criança (ex.: eu mato-te se não fizeres o que te digo/vais para uma instituição) ou do próprio abusador, nomeadamente quando ele tem uma relação de afetividade com ela (ex.: se contares a alguém vão prender-me e tu nunca mais me vais poder ver).

A chantagem é uma estratégia que também tem como objetivo garantir que a criança corresponda à vontade de quem abusa e seja silenciada. Um abusador pode dizer “se não fizeres o que te digo, vou contar aos teus amigos que tu és gay”, o que pode ser uma forma extremamente silenciadora para meninos e rapazes. 

A oferta pode acontecer através de presentes, direitos ou privilégios. Quem abusa pode oferecer dinheiro a uma criança, que é fácil para ela esconder das pessoas cuidadoras. As ofertas também podem ser imateriais. Por exemplo, o abusador pode oferecer um videojogo que comprou numa loja digital e transferi-lo diretamente para o telemóvel ou tablet da criança sem que os pais tenham conhecimento dessa aquisição. Em determinados casos, o abusador pode oferecer regalias e benefícios, passando a criança a ter direitos e privilégios que as outras não têm. Imagine, por exemplo, um monitor ou animador que arranja forma de a criança não ter de realizar determinadas tarefas como a limpeza de um espaço após uma atividade. Isto funciona, por um lado, para criar na criança a ideia de que é especial e, por outro, como chantagem e reforço da autoculpabilização.

Associações de apoio especializado à vítima de violência sexual:

Quebrar o Silêncio (apoio para homens e rapazes vítimas de abusos sexuais)
910 846 589
apoio@quebrarosilencio.pt

Associação de Mulheres Contra a Violência - AMCV
213 802 165
ca@amcv.org.pt

Emancipação, Igualdade e Recuperação - EIR UMAR
914 736 078
eir.centro@gmail.com

É fundamental reconhecer que, em todo este processo, o abusador detém o controlo absoluto da criança, do contexto e das pessoas adultas. A conquista da confiança das outras pessoas e a manipulação que exerce são fundamentais para que sinta a segurança para agir de formas até bastante “ousadas”. Por tal, é preciso investir, cada vez mais na prevenção da violência sexual contra crianças. Nunca é demais lembrar que uma em cada cinco crianças é vítima de violência sexual. Ou seja, numa turma com 25 crianças, são cinco crianças vitimadas e numa escola com dez turmas, este universo pode alcançar as 50 crianças que, em alguma fase da sua infância, são abusadas sexualmente. Ao contrário do mito, o abuso sexual não acontece só aos outros ou longe das nossas casas, é a nossa realidade.

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Ângelo Fernandes é o fundador da Quebrar o Silêncio — a primeira associação portuguesa de apoio especializado para homens e rapazes vítimas e sobreviventes de violência sexual — e autor do livro “De Que Falamos Quando Falamos de Violência Sexual Contra Crianças?”, um guia dirigido a pais, mães e pessoas cuidadoras com orientações para a prevenção do abuso sexual de crianças.