O reductio ad Hitlerum é uma tentação argumentativa, eu bem sei. Cedi-lhe mais vezes do que gostaria: já caí na asneira de usar o Holocausto para exacerbar a lógica em discussões futebolísticas, já aludi à Gestapo quando me senti encurralado por processos desonestos das Finanças, até já consenti que no meu 6º ano chamássemos Hitler a um professor de Trabalhos Manuais. Se por um lado é indevido usar uma das grandes tragédias da História na retórica de assuntos corriqueiros, por outro talvez só usemos esses argumentos em reconhecimento da sua extraordinária gravidade - por um lado vulgarizar, por outro notabilizar.  A imbecilidade e a respeitabilidade às vezes andam de mãos dadas; é pena que normalmente a primeira tenha dedos muito mais robustos.

Sendo impossível resistir ao reductio ad Hitlerum, pelo menos rogo a alguém com tempo e paciência que se dedique a redigir-lhe regras de bom uso. Não me parece que os chamados Guerreiros da Justiça Social se tenham dedicado ao assunto de forma suficiente; talvez consideram os judeus demasiado brancos, e por isso a invocação indevida da sua História não se torna opressão de grande interesse. Ainda assim, sem tempo nem paciência, avanço uma regra que me parece essencial para o uso das analogias nazis: por serem comparações com algo tristemente incomparável, deve manter-se uma distância quase abstracta. Chamarmos Hitler a um professor de Trabalhos Manuais mais ríspido é só o desaviso da juventude; Chamarmos Hitler a um líder de qualquer nação é determinarmos que vai perpetrar o mesmo totalitarismo, o mesmo sadismo, o mesmo extermínio injustificável de milhões.

As comparações do actual Presidente dos Estados Unidos da América com o líder do 3º Reich irritam muito mais os detractores de Trump do que os seus defensores. Sei-o porque faço parte dos detractores, e agora dos irritados. Criticar o presidente americano é mais fácil se não tiver que me defender dos seus críticos, nem constantemente demarcar dos que me seriam supostos aliados. É o mesmo tipo de vergonha que sinto quando os adeptos do meu clube vandalizam áreas de serviço nas auto-estradas (argumentum ad futebolum).

As críticas à acção de Donald Trump serão naturalmente inflamadas, basta concentrarem-se naquilo que prometeu, ou naquilo que já começou a fazer. Chamar os monstros do passado é substituir a desconfiança por medo, e é um toldar da própria democracia. É querer encostar Trump na direcção daqueles de quem devíamos andar desesperadamente a querer separá-lo. Para além disso, hitlerificar envenena a credibilidade dos argumentos, sobretudo quando se percebe neles um desejo mórbido de que a (pior) História se repita só para se provar um ponto.

Não estou a fechar os olhos a certas semelhanças, quer em expressões nos discursos, quer no estilo de comícios, que podem fazer recordar os maus tempos da Alemanha nazi. Tudo isso me parece muito denunciável, mas mais pelo incompreensível desleixo do que pela intencionalidade incontestada. Adolf tinha a ambição prepotente de se fazer Hitler, Trump tem a prepotência descuidada de às vezes até fazer lembrar Hitler. Acreditar na mesma intenção estruturada de um e de outro quase chega a ser um elogio ao americano. Para além disso: descortinar uma agenda neonazi em Donald Trump é estar a dar alegrias aos neonazis da alt-right. Não sei como é convosco, mas o meu campeonato é dar tristezas aos neonazis, não alegrias.

Se quiserem ver a atitude estapafúrdia de Trump para com os mexicanos, ou os muçulmanos, na mesma perspectiva com que o Hitler chamava os judeus de sub-humanos, estejam à vontade. Se acham que a imbecil muralha de Trump vai ter quatro paredes, tecto e vapores de Zyklon B, estejam à vontade. Se acham que o homem que ajuizava jingles de atum tem planos expansionistas com genocídio à mistura, fiquem à vontade. Não se esqueçam é que, enquanto conjuram a repetição dum horror irrepetível, há trumpices mais ligeiras que escapam por entre as frestas do alarmismo. Não é com pavores antigos que se combatem contrariedades novas, por muito que queiramos dar ares de gente ensinada.

As minhas perspectivas para o futuro com Trump na presidência não são as melhores. Torço, por isso, para que haja um impeachment eficaz logo à primeira argolada, não que Trump seja afastado preventivamente pela provável anexação da Checoslováquia.

SÍTIOS CERTOS, LUGARES CERTOS E O RESTO

Lembram-se de Mohammed Saeed Al-Sahhaf, aquele ministro de Saddam que ia dando informações optimistas sobre as investidas americanas no Iraque em 2003? Aquele que inventava vitórias, minimizava perdas e se tornou uma espécie de comic relief numa guerra sem graça? Pois parece que Mike Pence sabe sacar um Al-Sahhaf na perfeição.

Desejamos que Tusk se dê com Portugal, embora Tusk se dê com Donald, que Portugal parece não desejar. Pior comédia romântica de sempre.

O meu rio é o Dinha, não o Dão. Mas a minha região demarcada é essa da Quinta de Cabriz. Os 46ºs serão os primeiros. Parabéns a nós.