Fui passear a pé, ali por Alfama e pela Baixa, num destes primeiros dias em que a chuva deu folga. Tomei as dores da moda e incomodei-me com a fartura de turistas que me roçaram os ombros em ruas estreitas. “Imensos” camones, até no Abril mais cumpridor das “águas mil” de que me recordo. No entanto, o incómodo esvaiu-se ao mesmo tempo que a beleza lisboeta me ia preenchendo. Caramba, se eu fosse forasteiro e endinheirado também queria vir para aqui passear, ficar, ser lisboeta. A cidade está cada vez mais bonita, e a invasão estrangeira é, acima de tudo, um barómetro natural desta beleza que nos orgulha. Ruas atafulhadas e mercado imobiliário obsceno?  - pois claro! Os estrangeiros são incómodos como insectos, mas só porque Lisboa tem mel. Mel é bom. Queremos mesmo que o Tejo se envinagre só para enxotar as moscas?

É linda. Como não amá-la? Como não sucumbir a esta facilidade de gostarmos do que é bonito? Antes que a paixão pelo belo comece a parecer um amor frívolo, vou entregar-me a recordações de uma Lisboa antiga. Quando eu era uma criança da Beira-Alta, costumava vir com a família à capital passar alguns dias durante o Verão. A Lisboa da altura já se assemelhava, para mim, a um paraíso. E não era a Lisboa airosa e monumental, ainda menos a Lisboa polida e prazenteira onde agora passeio. A cidade que eu amava era aquele que tinha no Terreiro do Paço um gigante parque de estacionamento de carros feios; era aquela com um comboio-fantasma espurco chamado metropolitano; era a cidade que eu via pela janela de enormes pensões baratas; aquela das ruas perigosas como uma Nova-Iorque fadisteira; a das comédias estafadas com o saudoso Fininho.

Afinal, há uma beleza de Lisboa que não é a das coisas bonitas; há um brilho que não é o da sua luz peculiar. Encontrá-los é fácil, o difícil é lembrarmo-nos de procurar. Felizmente, o trajecto pedonal de minha casa até qualquer sítio pitoresco da cidade força-me a caminhar antes por sítios feios. Ontem foi dia de reparar neles, de fazer o proscrito “fracking” nas coisas malparecidas para poder chegar à beleza subterrânea de Lisboa. Os escassos relatos seguintes não estarão por ordem cronológica.

A Gaivota

Numa rua pouco bonita (não fixei o nome, pois não previ escrever sobre ela) que desemboca para os lados do cemitério do Alto de São João, há 3 cartazes de agências imobiliárias, e 2 deles estão meio tombados – isto seria um pormenor de somenos, não fossem os cartazes (e especialmente o desalinho dos 2 tombados) responsáveis por tornar ainda menos bonita aquela rua pouco bonita. Ali anda um homem de 60 e poucos anos que vai emprestando a boca a duas actividades distintas: cuspir para o chão e falar com modos impróprios para a companheira (uma ameríndia com metade da idade dele).

Subitamente, a boca do sexagenário eleva-se para outras duas funções: primeiro assobia, depois cantarola. Reconheço o fado; é o da “Gaivota”. Em que outro sítio, senão nesta cidade, podem os mais feiosos e grosseiros entoar de cor poemas do O’Neill? Em Lisboa há analfabetos rugosos que sabem as palavras do Régio; há gente que, para além de impropérios e navalhadas, só se exprime pelos versos do Homem de Mello.

O Frango

À porta da cervejaria Ruivanense (quando a Rua David Lopes encontra a Avenida Afonso III num ponto de muito desinteresse estético) está sentado um homem que já deve virar frangos (literalmente) há mais anos do que aqueles que eu tenho. Denota uma característica que reconheço em muitos alfacinhas da velha guarda: franze o sobrolho e exprime-se com ar zangado e falsa rispidez, sobretudo quando está a ser brincalhão. Até com os desconhecidos faz isso. Os lisboetas de gema sabem todos virar frangos (não literalmente) e, talvez por essa proximidade com as brasas, são doutorados em quebrar o gelo.

Quase me esquecia de referir que o senhor sentado à porta da cervejaria se chama “Antonioni”. O nome de um dos maiores cineastas italianos não é esbanjado naquele homem, garanto-vos. Até pode estar plantado num ponto de “desinteresse estético”, mas ali há simpatia doutorada, e ali cheira bem. Cheira a frango assado, cheira a Lisboa.

O Pombo

O início da Rua Morais Soares não é o sítio mais feio de Lisboa, mas ainda assim tem de enfrentar um muro de cemitério, albergar algumas marquises, e estar à mercê da estética sacro-depressiva de montras funerárias. É lá que me deparo com esta visão extraordinária: sentado num banco de campismo, um idoso é entretido por meia-dúzia de vulgares pombos lisboetas. O senhor não traz comida para aquela passarada, o que por si só já torna aquela reunião invulgar. Mas o mais extraordinário acontece entretanto: o homem estica o dedo indicador, um pombo poisa lá em cima, e depois é ver o bicho refastelado a receber carícias no peito.

Estes relatos são rigorosamente verdadeiros. Sei que “realismo mágico” não é isto, mas isto é realismo mágico. Um pássaro na mão e eu a descobrir a única legítima Branca-de-Neve lusa. Paro e pergunto ao senhor se posso tirar uma fotografia; ele usa a mão desimpedida para, com um gesto claro, negar o meu pedido. Não deve ter confiado no meu aspecto, o que não deixa de ser curioso: esta minha aparência que deixa os velhotes lisboetas desconfiados, é exactamente a aparência que faz com que todos os vendedores de “louro prensado” na Baixa queiram ser meus amigos.

Fez bem em negar-me a foto. Provavelmente eu iria usá-la num post estúpido de facebook, com referência a ratos de Nova Iorque pelo meio. Estaria a desviar-me da moral desta fábula, onde até as aves mais repugnantes têm direito a carinho, onde bichos interesseiros se mostram desinteressados, onde a generosidade dos antigos ganha asas. Em Lisboa amestra-se o feio e o gesto é bonito; os encantadores não querem palmas, e muito menos fotografias.

Os Corvos

Os corvos são dos principais símbolos da cidade, por isso seria de supor que a Rua dos Corvos tivesse o cuidado e a dignidade que símbolos principais exigem. Não é o caso. Parece uma rua condenada ao esquecimento, um sítio desacompanhado – logo aí a desmerecer os lendários corvos que foram, precisamente, animais de companhia. O cadáver de S. Vicente que o diga. 

É uma rua sem história, mas ainda assim forço esta: estou a vaguear por lá com auscultadores nos ouvidos e o iPod a debitar-me música em modo aleatório. A cantiga que surge entretanto é uma que não ouço há algum tempo. Chama-se “Canção de Água-Doce” -  é interpretada pelos Clã, mas fui eu quem escreveu a letra. Em traços largos, conta a história de uma mulher que se apaixona por um rio, até que este parte em direcção ao mar. Ela emudece, ele perde a doçura das águas. Num dia de tempestade, raios e coriscos, o rio regressa com a chuva, a água adocica-se e a mulher volta a cantar.

A canção assemelha o ciclo da água - com as suas invariabilidades e intempéries - ao ciclo dos amores. Embora a letra tente puxar as temáticas japonesas dos haiku, confesso que a escrevi de olhos no Tejo. É que Lisboa, não sendo uma ilha, está rodeada de Tejo por todos os lados. O rio sente-se nesta esconsa Rua dos Corvos e, mesmo que a casualidade do iPod não me trouxesse uma canção de água, mesmo que eu não tivesse os headphones colocados, o Tejo acabaria por aparecer – é o espírito desta cidade, emoldura as memórias que dela temos.

Nem a Lisboa feia parece feia quando o Tejo nos inspira. Bem sei que a Manuela Azevedo, voz dos Clã, tornaria bonita até uma canção sobre o Trancão dos anos 80. Mas aqui cessam as aleatoriedades: a minha canção lisboeta (tranvestida de canção romântica) tinha de estar reservada para uma voz maior, e a cantora vila-condense nunca desilude. Se me permito a audácia de comover-me com as minhas próprias palavras, é porque as entreguei à Manuela. Só ela saberia cantar sobre o espírito fluvial de uma cidade que amo de olhos fechados. Amo Lisboa como se ela fosse feia, porque desejo a afeição genuína e abnegada do “quem feio ama, bonito lhe parece”. E ela insiste parecer tão bonita, pá!