Espera-se um sopro de ar fresco que possa trazer propostas audazes e um pouco de atenção política às necessidades de cada pessoa. O cenário político, que se tornou agora mais aberto, exige procurar compromissos. Fica assim mais propício para trazer para cada problema uma porta de saída suficientemente folgada para que quem passe por ela não tenha de se agachar demasiado. O tic-tac para a formação do novo governo já arrancou, a aspiração é a de que possamos ter um gabinete fiável e eficaz, decente e estável, sem sectarismos.

A prática dos últimos anos fornece um manual de maus exemplos. A decência obrigaria a que o governo cessante, em maio passado, tivesse consultado as oposições antes de reconduzir o governador do Banco de Portugal. O fim da maioria absoluta favorece que, agora, não se repitam desprezos como este pelas oposições, e foram muitos.

Entre apoiantes da coligação de direita passa muito alvoroço com a possibilidade de uma experiência de governo que deixe de fora os que ficaram no primeiro lugar da votação e que abra o arco da governação à experiência, que clamam ser de alta perigosidade, de um pacto entre partidos das esquerdas.

É natural que a coligação de direita esteja à cabeça da escolha presidencial para formar o próximo governo. Depois, no parlamento, logo se vê se o programa e o gabinete PSD/PP têm pernas para andar. Obviamente, não faria sentido que António Costa juntasse o PS a essa coligação – repetiu durante a campanha que não o faria e que a fronteira para a escolha política nas eleições marcava uma alternativa entre a direita e o PS.

Será que a bancada parlamentar do PS vai, em conformidade, votar coesa? E será que as esquerdas terão conseguido, apesar de muito heterogéneas na cultura política e na tradição ideológica, um compromisso para governar? Se a resposta a estas duas perguntas for “sim”, então a posse deve ser dada a um governo das esquerdas. Terá o mérito de mostrar que o arco da governação não fixa limites ao realmente possível. E espera-se que governe com competência, procurando sarar feridas e superar o possível das cicatrizes sociais abertas.

É evidente que, perante um governo das esquerdas - se assim vier a acontecer -, à direita vai haver quem clame que é um governo de perdedores. Já se ouviram exageros como “usurpação do poder” ou até “golpe de Estado”. Obviamente, a nobre arte de governar também passa pela capacidade para formar coligações.

Os eurodeputados portugueses até devem conhecer bem o caso belga onde o primeiro-ministro, Charles Michel, é eleito pelo Movimento Reformador que ficou no quinto lugar (9,6%) em votos. Conduz um pacto com quatro partidos do centro-direita. A necessidade compromisso a isso levou num país que até mostrou saber funcionar até mesmo sem governo (a Bélgica tinha estado 541 dias, a partir de fevereiro de 2011, sem governo) em plenitude de funções.

Mais perto de nós e de modo mais retumbante está o caso espanhol. Manuela Carmena é a alcaldesa de Madrid (3,1 milhões de habitantes). Preside ao município da capital espanhola após, nas eleições de 24 de maio deste ano, ter ficado em segundo lugar. Carmena, candidata pelo Ahora Madrid, espécie de franchising política liderada pelo movimento de cidadãos “Podemos”, alcançou 31,8% dos votos. O Partido Popular, com Esperanza Aguirre, era hegemónico em Madrid, capital que dirigia há 24 anos, e resistiu nestas eleições como a força mais votada (34,5%). Mas as esquerdas juntaram-se num pacto Ahora Madrid (31,8%)/PSOE(15,3%) que colocou Carmena como presidente do município da capital espanhola.

Reviravoltas como esta marcaram estas eleições autonómicas e municipais de há cinco meses, em Espanha. O PP, embora resistindo em primeiro lugar, perdeu para alianças à esquerda o governo de 14 cidades e autonomias principais que controlava. Para além de Madrid, perdeu Valencia (o alcalde é um ecologista de esquerda, apoiado pelo PSOE e pelo Podemos), Sevilha e Saragoça, entre várias outras capitais. Ou seja: nestas eleições de maio em Espanha o PP foi o mais votado mas as esquerdas, apesar de muito heterogéneas, somaram maiorias absolutas e estão a governar.

A conquista de Madrid por Manuela Carmena levou apoiantes inspirados por Ay, Carmela!, canção popular e hino republicano na Guerra Civil espanhola, a adaptar assim a letra da canção.

De hoje a dois meses, em 20 de dezembro se verá o que vai acontecer nas eleições gerais espanholas.

Em Portugal, ainda estamos na fase de esperar para ver. Seja como for, o cenário será necessariamente mais plural. E se a opção for por um pacto das esquerdas, obviamente não será usurpação de coisa nenhuma, apenas questão de ter capacidade para concertar uma maioria. Que depois fica à prova e é julgada nas eleições gerais seguintes.

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