Chico faz parte da minha banda sonora de vida. Eu tinha três anos, quando aconteceu a madrugada inicial pela qual Sophia esperava, pela qual Portugal ansiava. Não tenho memórias de nada em especial, abraços ou comentários, festas ou manifestações. Apesar disso, acalento esta recordação: a minha mãe a ouvir Chico Buarque. A minha mãe a esconder a sua voz, que será sempre mais do que mostra, cantarolando, quando sabia (e sabe) cantar tão bem. A minha mãe de braço dado com Chico, a cantar um cheirinho de alecrim. 

A ideia de conquistar a liberdade, de ela ser plena de música e de poesia. A ideia de a liberdade ser um espaço de palavras, de tudo ser passível de ser dito (sim, tudo pode ser dito, depende da forma como dizemos). A ideia de que o silêncio não tem valor, quando a liberdade está em causa – tudo isso aprendi com a minha mãe, com o Chico e com tantos poetas e escritores, actores e artistas plásticos; com toda a cultura que fui capaz de absorver e passar aos meus filhos. A minha mãe foi quem me deu o Chico e outros tantos (Elis Regina, Caetano, Bethânia, mas também os Weather Report e o Keith Jarrett, Gismonti e por aí fora) e eu tentei passar essa maravilhosa liberdade criativa, essa genialidade artística, aos meus filhos. Para que todos os dias possam respeitar os outros e viver em liberdade. 

Nada disto comoverá a malta do Chega, não faz mal. Por mim, na minha leitura da Constituição, essa gente é fascista; logo, não deveria ter assento no Parlamento. Uma coisa que a liberdade nos permite é aceitar os outros, já se sabe.

Na sessão comemorativa dos 49 anos da democracia, percebemos, mais uma vez, que existem deputados que não querem viver em liberdade, ou melhor, querem definir a nossa liberdade. Chico ensinou-me que a liberdade é uma imensa alegria de sermos quem somos, o melhor que conseguimos ser. Todos os dias. No dia em que recebeu – que prémio tão justo! – o Camões, Chico disse: “Recebo esse prémio menos como uma honraria pessoal, e mais como um desagravo a tantos autores, e artistas brasileiros, humilhados e ofendidos nesses últimos anos de estupidez e obscurantismo”. Estou com ele, contra a estupidez e obscurantismo.

Resta saber se Portugal também o está ou se, de repente, atitudes como as que vimos ontem, na casa da democracia, são para continuar. Repito: a democracia é um tecido muito frágil. Façamos por não esquecer que há sempre quem prefira outra coisa.