Antes que se compadeçam de mim, deixem-me assegurar-vos que não vivo nos confins da pobreza, nem manifesto a tristeza que lhe seria consequente. Mas se os rumos do meu país me condenassem à miséria, então desfraldaria o descontentamento lado a lado com a bandeira verde e vermelha – um patriota feliz pela possibilidade de ser um português triste.  Ainda neste faz-de-conta imaginemos turistas que, inebriados pela beleza lisboeta e bons vinhos nacionais, se enganavam no caminho de volta ao hotel e vinham parar ao meu bairro de lata; ali iriam encontrar a miséria esplendorosa dos que se queixam, dos que não acharam felicidade na resignação, dos que se marimbam para o ascetismo da realização ideológica. Eu gritaria “Abaixo Portugal!” como quem grita “Viva Portugal, por me permitir mandá-lo abaixo!”. Os turistas não regressariam a casa com os típicos relatos emocionados e patetas da visita a um povo que sofre feliz. Nem diriam “Que música e que sorrisos tão vibrantes que têm aqueles pobrezinhos, quase que nem se nota a mordaça!”. Não elogiariam por aí além as escolas, nem sequer os hospitais -  muito embora tenhamos esta vantagem paradoxal dos hospitais serem obrigados a assistir sobreviventes de fuzilamentos numa nação sem tradição de fuzilamentos.

Que orgulho tenho neste país que permite que com ele me decepcione. Um país em que os trabalhos forçados são aqueles a que eu próprio que me condeno, provavelmente para comprar alguma bugiganga. Um país repleto de belezas naturais, mas se calhar nenhuma tão bela, e que desejamos tão natural, quanto a liberdade para enumerar os defeitos mais feios. Um país onde até o mau funcionamento da Justiça é maravilhoso, por ser preferível um mau perdão do que um bom paredón. Um país pejado de idiotas que discordam das idiotices uns dos outros num hemiciclo. Um país em que posso demonizar embargos e dívidas e potestades, e manipulações externas, e o contrário de tudo isso. Um país onde até os mais chorosos viúvos castristas não conseguem ser bem sucedidos castradores.

Interrompo momentaneamente o meu amor de patriota para vos expor a minha angustia de cronista. Desde que comecei a colaborar com este espaço sinto o mundo em alvoroço. Os assuntos mediáticos de relevo nestes últimos 3 meses têm sido abundantes e diversificados. Se por um lado nunca me deparei com o célebre desespero de não ter assunto, por outro estão-me sempre a cair nas mãos temas que, de tão proeminentes, já foram abordados por 1001 pessoas antes de eu me lançar à escrita. Fico à beira de desejar uma silly season, onde a irrelevância das matérias ao menos me conferiria alguma frescura. Ora, esta semana não foi diferente; ou melhor, quase não foi diferente - se é verdade que eu me sinto impotente para ignorar a temática do falecimento de Fidel Castro (mesmo após 1001 pessoas já terem publicado a sua opinião), também é verdade que hoje vou considerar o meu texto menos uma crónica e mais uma coisa que ainda ontem foi votada na Assembleia da República: um voto de pesar.

Sendo eu a milionésima segunda pessoa a falar de Castro, consigo trazer à baila algumas opiniões que me antecederam. Foi muitas vezes possível prever o grau de desonestidade dos textos logo através dos títulos. Se um artigo de opinião sobre o falecimento de alguém tende a resumir as características principais dessa pessoa, então certos títulos já sumarizavam tudo o que se ia tentar encapotar.  É justo avaliar as motivações e as repercussões da acção política de Fidel Castro, mas nunca será honesto que se procure essa complexidade como uma manobra de diversão, ou atenuação daquilo que Fidel era acima de tudo: um ditador. Um homem que mata milhares, que extingue a possibilidade de discordância e que liberta o seu país rumo a um cativeiro que ele próprio controla, será sempre e acima de tudo o homem que foi capaz destas coisas. Podia ter ganho mais medalhas que Phelps ou posto os dois pés em Marte – sem arrependimento (e o que demonstrou até ao fim foi o oposto disso), um ditador será sempre e acima de tudo um ditador.

Estarei a ser redutor? Nem por isso, a ditadura é que é redutora em si mesmo. Empareda tanto os que lhe estão subjugados que acaba por retirar espaço ao seu próprio conceito. Claro que vai haver quem pegue nesta redução para encetar mais uma defesa ideológica encapotada de Fidel, mas não recuo um passo que seja. Nem evito, por exemplo, transcrever para aqui este excerto do Vítor Malheiros hoje no Público, onde a desonestidade intelectual atinge níveis anedóticos:
“Dizer de Fidel Castro, após a sua morte, em artigos de jornal que pretendem (e deveriam) ser de balanço, de avaliação ou de análise da sua vida, que era um ditador e ficar-se por aí é quase a mesma coisa que fazer uma entrada de enciclopédia sobre Einstein dizendo que era um tipo de cabeleira branca e ficar-se por aí.”  - Malheiros parece estar vacilante entre a desonestidade intelectual e a “disfuncionalidade cognitiva temporária” (isto para usar termos parlamentares que não intentam ofensa); na dúvida recorre a ambas: primeiro por equiparar a marca histórica da supressão sanguinolenta de liberdade com a marca histórica dum penteado. Depois por se esquecer que Fidel tem por si só pilosidade emblemática para ser análoga à guedelha do Einstein.

Quase Inverno e descubro que a fruta da época são as conjunções adversativas. “Fidel cometeu uns erros mas...”, “Se calhar até era um ditador, porém...”, “Ele até pode ter retirado liberdades individuais aos cubanos, contudo...”, “Lá que mandou matar algumas pessoas é verdade, ainda assim...”. Frutas enjoativas a tentarem disfarçar um caroço amargo, semente de grandes cegueiras.

Isto tudo lembra-me uma história que os muçulmanos atribuem a Jesus Cristo. Uma vez, caminhando com os seus discípulos encontrou a carcaça dum cão em elevado estado de putrefacção. Enquanto a maioria se queixava do cheiro nauseabundo, e outros mal continham o vómito perante tão grotesca visão, Jesus dava graças a Deus pelos lindos dentes brancos do animal. Não vou aplicar a moral original da história, mas passo a recordar que ontem, no Parlamento português, branquearam-se ainda mais os dentes brancos dum cão. Fez-se um voto de pesar por uma dentição, ignorando o fedor, ignorando a putrefacção, e sobretudo ignorando um cão a quem os dentes pertenciam.

Nunca serei contra o lamento da morte de alguém, bom ou mau. Apenas torço o nariz à celebração de vidas cujo legado primordial foi mau. É por isso que o meu voto de pesar vai, não para o finado, mas para aqueles que definharam em quase 60 anos de ditadura castrista. O meu voto de pesar vai para o meu Parlamento que oficializou o elogio, mais do que a elegia, dum ditador. Adoro este país, sobretudo quando posso expressar pesar por odiá-lo.

Sítios certos, lugares certos e o resto

A minha primeira alfinetada é com a mão esquerda. Nem sempre estou de acordo com o Rui Tavares, mas é uma pessoa que me merece toda a estima pessoal e intelectual. A clareza  e descomprometimento com que escreveu sobre Fidel Castro no Público é assinalável, sobretudo considerando a escassez de semelhante descomprometimento nos testemunhos da esquerda. Recordo que, no mesmo jornal, o relativismo de José Vítor Malheiros quase dava lugar a relatividade.

A alfinetada de mão direita vai para o cartoon da Spectator americana, publicação que não consta nas minhas preferências mas que sabe engendrar vinhetas irresistíveis.

E finalmente espreitamos o Twitter, que fincou os dentes em Justin Trudeau, isto após os louvores que o primeiro-ministro do Canadá deixou a Fidel Castro.  O hashtag #trudeaulogies (um trocadilho com o nome do canadiano e a palavra “eulogies” – elegias fúnebres, em português) propagou-se com piadas infames, onde se adapta o panegírico de Trudeau a algumas das mais cruéis figuras da História, mas também a vilões de ficção como Darth Vader ou Sauron.