Quase o mesmo rebuliço, no começo dos anos 60, quando a estilista Mary Quant pôs à mostra as pernas das mulheres que então ousaram a liberdade e a audácia de usar mini-saia. Neste verão de 2016, em países muçulmanos do Mediterrâneo sul, tal como nos anos anteriores, são muitas as mulheres que ousam ignorar o olhar agressivo e intimidatório dos que pretendem vexá-las por tomarem banhos na praia vestidas ou despidas, com um fato de banho, como lhes apetece.

Pouco se fala da coragem destas mulheres muçulmanas que desafiam o sistema opressivo instalado nos seus países. Mas em todo este verão tem-se discutido muito o uso do burquíni, uma versão menos tapada da burqa, concebida para que as mulheres muçulmanas vão à praia. Vê-se qualquer coisa mais do corpo: os pés, as mãos e parte do rosto. Chamar-se ao burquíni um fato de banho não encaixa bem, estamos perante uma espécie de fato-armadura que esconde quem o usa – em contraste com a nudez desarmada que pode estar esparramada logo ao lado.

O nome burquíni pretende obviamente fazer alusão ao biquíni e percebe-se de imediato que é uma resposta, da parte de quem cultiva uma mais fechada identidade muçulmana, aquele duas peças que a mulher ocidental conquistou com alguma luta e que até já deu lugar ao monoquíni, quando não, onde pode ser, para quem quer, a nudez total, tudo para o mais total aproveitamento dos benefícios do sol.

A discussão sobre o burquíni, à primeira vista, parece uma estéril polémica de verão ou de como é infinita a capacidade humana para misturar problemas reais com o que é fútil. De facto, o debate não fica ligeiro, porque estão em causa liberdades fundamentais. A discussão está mergulhada numa maré europeia carregada de tensões, emoções, traumas, preconceitos, medos e distorções. Até de ódios à flor da pele.

Há um ponto de partida que deve prevalecer o princípio fundamental de que cada pessoa é dona exclusiva do seu corpo e da sua vida. Não pode ser um Estado ou uma religião a ditar sobre a vontade de cada pessoa. Cumpre ao Estado, isso sim, proteger a liberdade individual de escolha. Cada pessoa, mulher ou homem, deve poder vestir-se – e até quase despir-se - como entende, em respeito pela norma básica de convivência humana e de respeito pelos outros. Alguém proíbe uma freira de ir, vestida com o seu hábito, para uma praia? Porquê então proibir a mulher que usa burquíni de entrar numa praia, como sucede em lugares do sul de França? A interdição é uma inútil intolerância, uma posição rígida que dificulta o diálogo e a integração. A proibição tende a produzir o efeito contrário: é oferecer argumentos à campanha dos fundamentalistas e oferecer-lhes novos simpatizantes.

Esta proibição deveria estar proibida num país (num continente) que proclama a liberdade de culto como pilar da sua cultura.

Nem sequer dá para julgar o quão irónico é que em França, onde há 60 anos Roger Vadim expôs o corpo despido de Brigitte Bardot e revelou o seu poder sedutor nos 15 segundos de abertura do filme "E deus criou a mulher", agora possa haver interdições e multas para uma mulher que vai à praia demasiado vestida.

Quem quiser tapar-se, que se tape – é certo que quem nas últimas décadas foi ousando um fato de banho com cobertura cada vez mais mínima achará um desperdício que se esconda o corpo, e que este fique subtraído aos prazeres do sol. É natural que questionemos a satisfação que pode dar estar na praia ou na piscina com grande parte do corpo coberto pelo burquini. Mas é a opção de cada pessoa.

Evidentemente, quem escolhe o burquíni está a assumir uma afirmação: "esta é a minha identidade, esta é a minha religião". Escolha livre, liberdade de indumentária. A liberdade individual é sempre sagrada e o Estado existe para defender os direitos das pessoas, não para os limitar.

Diferente é a questão do uso da burqa, que tapa o rosto. É insuportável vivermos numa sociedade onde há gente que tapa a cara em lugares públicos. Do mesmo modo que é inaceitável que alguém possa caminhar pela rua, sentar-se num café ou esplanada, entrar numa escola ou mercado com um capacete a cobrir-lhe a cabeça, também não é admissível que alguma mulher o faça com uma burqa – a burqa é uma limitação que o fundamentalismo, discriminatoriamente, impõe apenas às mulheres. O cara a cara é uma das bases na nossa convivência.

É facto que a sucessão de ataques terroristas instalou na Europa um modo desconfiado, atemorizado, de olhar para o que é diferente. Estaremos a distorcer tudo se não soubermos distinguir entre islão, fundamentalismo e terrorismo. Sem perder a noção da cultura de tolerância que é suposto marcar a modernidade ocidental. Já agora: distinguindo também entre a submissão da mulher – que nos habituámos a lastimar no mundo muçulmano, ainda que não seja exclusivo do grupo - e costumes atávicos, mas legítimos.

Não esqueçamos que até ao século XVIII nadar ou tomar banho de mar eram práticas reprovadas no ocidente cristão. Constata-se que há sociedades do mundo muçulmano onde subsistem práticas parecidas. Mas pretendermos catalogar as mulheres muçulmanas em função dos centímetros de roupa que usam parece abuso de arrogância. Impor-lhes um tamanho de tecido a cobrir-lhes o corpo é uma estúpida cruzada contra a liberdade individual.

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