Andámos muitos anos a ouvir falar de integração europeia – e isso trouxe aos portugueses desenvolvimento e incomparavelmente melhor qualidade de vida. Agora constatamos a desintegração europeia. Até uma voz de topo como é a da chanceler Merkel assume que a Europa vive fase crítica. A Europa tornou-se um condomínio onde todos discutem, onde uns têm poderes que escapam aos outros, e onde não há a solidariedade nem o melhoramento social que foi o fundamento da União. A atmosfera não está propícia para a boa convivência nem para os ideais.

Há uma pergunta fundamental: como é possível que o ideal europeu, que chegou a ser tão entusiasmante, se tenha transformado em algo que gera tanta repulsa que já levou os britânicos a votarem pelo divórcio, enquanto em muitas partes da Europa crescem as forças nacionalistas e anti-europeias? As causas são certamente muitas. Algumas passam pela memória que se apaga, outras por desconfortos na vida de agora.

Na memória, efeito de décadas de prosperidade e paz, está a diluir-se o sentimento de insegurança bélica do pós- Segunda Grande Guerra (39-45) que tinha levado Churchill, há precisamente 70 anos (setembro de 1946), a pronunciar em Zurique o famoso discurso em que, com o estatuto de vencedor moral e material do nazismo, apelou à criação dos Estados Unidos da Europa. Esse esquecimento do fantasma da guerra tende a ser um erro perigoso, até porque as últimas décadas têm mostrado, dos Balcãs à Ucrânia, como a guerra permanece como ameaça dentro do continente europeu. E crescem fricções que podem gerar mais faíscas.

O desconforto da vida europeia de agora passa pelas sucessivas crises. Há culpas atiradas sobre a mal planeada introdução do Euro no 1.º de janeiro de 2002. Há o desastre que veio com o colapso financeiro de 2007 e as políticas de dura austeridade impostas a seguir, penalizando, em especial, as pessoas dos países da Europa do Sul com desemprego, involução da qualidade de vida e crescendo da desesperança. Há a crise suscitada pelo acolhimento – que é nosso dever – dos refugiados e a amálgama que mistura tradições diferentes com terrorismo. Também há a reconhecida grande falta de estadistas, políticos visionários capazes de instalar confiança e futuro.

Woody Allen disse uma vez que a vocação do político de carreira é fazer de cada solução um problema. Talvez se tenha inspirado em Ezra Pound, que teorizava que governar é a arte de criar problemas cuja solução é um enredo que agarra os cidadãos. Imagino que o caso presente na Europa nem tenha tanta sofisticação, tão medíocres têm sido várias das personagens de topo. Merkel revelou-se no último ano, para muitos (sou um deles) com surpresa, uma estadista que respeita o valor fundamental da tolerância, com a sua corajosa política de acolhimento de refugiados. É uma opção com alto preço político: há duas semanas caiu para terceiro lugar e foi ultrapassada pelo pior adversário, o partido xenófobo AfD, no seu estado natal de Meclenburgo-Pomerânia, e neste domingo caiu cinco pontos descendo para 18% em Berlim, a capital governada pelo SPD. Não perdeu a calma nem o discurso, repetiu que a Alemanha não pode abandonar a Grécia e a Itália sozinhas com os refugiados, embora não possa voltar a receber um milhão de migrantes num só ano.

Merkel representa neste desafio do acolhimento o melhor do espírito europeu. É o oposto de Marine Le Pen. É de notar que são mulheres quem lidera as duas frentes políticas que se confrontam sobre valores fundamentais na Europa. E ambas têm eleições cruciais no ano que vem.

A prova das urnas, quando sopram corrosivos ventos nacionalistas, parece estar a ser um condicionamento para a procura de soluções europeias. A França tem presidenciais e legislativas em abril do ano que vem: Hollande está com muito pouco espaço, o confronto tende a ser entre o moderado Juppé e a populista le Pen. A Alemanha tem legislativas daqui a um ano e Merkel pode perder o poder. No horizonte mais imediato está o referendo anti-refugiados promovido por Orban na Hungria (é tempo de a Europa seguir a sugestão luxemburguesa de afastar a Hungria do clube europeu, não partilha os ideais fundamentais) e a repetição da finalíssima das presidenciais na Áustria, com o líder da extrema-direita à frente nas sondagens. A direita populista também tem promessa de avanços nas eleições holandesas. Acresce para este frustrante bloqueio europeu o referendo constitucional em Itália, decisivo para o governo de Renzi, um dos líderes – com Costa e Tsipras - de uma alternativa da Europa do Sul e o impasse político em Espanha.

Quando Merkel falou de Europa em estado crítico talvez não quisesse chegar ao ponto de dizer que a Europa está em coma assistido. Mas o tempo da União Europeia pode estar a esgotar-se.  O risco sério é o de desintegração mas ainda há esperança, pode haver energia e sonho para uma refundação. A dúvida é: quem pode liderar e como uma ambição assim?

A atual União Europeia está estilhaçada. De modo simplista, há quatro partes principais: há o diretório franco-alemão, que às vezes integra a Itália e que pretende impor a sua vontade muito germânica; há a linha dura do Norte, encabeçada pela Finlândia e vários acólitos; há o grupo EuroMed, que envolve os países do sul agora governados à esquerda, de Portugal à Grécia, incluindo França, Itália, Malta e Chipre – também a Espanha que, invocando estar com governo interino, mandou um secretário de Estado para a representar na cimeira de Atenas; e há o grupo de Visegrado, quatro países do Leste, Polónia, Hungria, República Checa e Eslováquia, que levantam um muro contra os migrantes.

Vários destes países da Europa Central e de Leste agem como se a União Europeia já não contasse – embora tenham sido grandes beneficiários dos fundos europeus. Funcionam com modelos assentes no baixo custo do trabalho e salários reduzidos. Grande parte da força económica dos tigres da Europa de Leste decorre de terem beneficiado do calendário: tiveram o fôlego dos fundos de solidariedade quando o resto da Europa apanhou com os apertos orçamentais do Pacto de Estabilidade.  As economias de Leste crescem todas acima dos magros 1,6% da média da zona euro. A Polónia cresceu 3,7% e a Roménia 4,2%, no ano passado. É facto que a Irlanda, nossa parceira nos resgates, cresceu 4,8% em 2014, beneficiando dos amplos incentivos fiscais.

São economias que cresceram com a solidariedade europeia. Mas várias não retribuem com o respeito dos valores e direitos fundamentais. É assim que, nesta ocasião extremamente delicada, a Europa precisa desesperadamente de líderes com ideais e vontade. O paciente europeu requer um tratamento de choque. O problema é que a espera se prolonga e está difícil vislumbrar alguma esperança. Mas não é impossível voltarmos a uma Europa de partilha de culturas, de convivência, em solidariedade e com melhoramento social. A Europa precisa tanto desse novo e grande impulso, pensado para as pessoas e não para os mercados. Sem solidariedade a democracia perde a alma.

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