Há um ano, tudo encaminhava para Hillary Clinton vir a ser eleita “Madam President”, em marcha triunfal. Ninguém ousava imaginar que o socialista Bernie Sanders pudesse causar alguma mossa às aspirações da senadora para conseguir a nomeação em glória como candidata dos Democratas. E não se via no campo republicano alguém com envergadura para o desafio. Erro grosseiro na análise. Faltou ter em conta que a maioria dos cidadãos nos EUA de hoje continua sob o trauma profundo da crise de 2008 e culpa as elites da política por essa devastação que é vista como traição ao povo.

É facto que Sanders já esgotou as possibilidades competitivas. Repetiu brilharetes nos prólogos eleitorais nos pequenos estados brancos do nordeste, mas encalhou quando a votação chegou aos estados mais a sul, onde o peso negro é relevante. Viu-se na Carolina do Sul como os afroamericanos catapultam Hillary como herdeira de Obama. Vai ser também certamente assim nos apuramentos desta “super terça-feira” da corrida presidencial americana.

Hillary vai hoje ganhar grande vantagem - mesmo que Sanders triunfe no Massachussets - na contabilidade de delegados para a convenção Democrata, a decorrer entre 25 e 28 de julho, em Filadélfia. Hillary é a inevitável candidata dos Democratas. Mas a excitação progressista inicial em torno de Sanders mostrou como falta a Hillary a fibra vital para gerar uma onda maciça de entusiasmo capaz de envolver os eleitores. Já começou a ver-se que Hillary consegue captar a simpatia da América multirracial - e nenhum Democrata entra na Casa Branca sem o voto dos negros e dos latinos. Mas este voto não chega. Ela precisa de ser capaz de reinventar-se e gerar uma até agora inexistente mobilização emocional para enfrentar o republicano Donald Trump na escolha final, em 8 de novembro.

Trump, há uns meses, parecia um candidato efémero. O seu discurso excessivo, impróprio para tantos, com promessas de banir os muçulmanos, deportar imigrantes e levantar um muro na fronteira com o México, mais outros insultos e gaffes, teria destruído qualquer político tradicional. Mas ele está a revelar a astúcia de um animal político a explorar o enorme descontentamento e até raiva dos eleitores contra os políticos. Trump (tal como Sanders, este no campo oposto, o dos Democratas) apresenta-se em guerra declarada aos aparelhos tradicionais do poder, tanto o político como o financeiro, e assim vai ao encontro do instinto dos muitos que estão em fúria contra o circo político de Washington.

Como é que a América chegou a isto, como é que esta personagem que aparece sem credenciais respeitáveis se impõe assim? O multimilionário Donald Trump, patrão do grande Casino de Atlantic City e dono de vários dos luxuosos arranha-céus de Nova Iorque, entrou pela casa dos americanos nos últimos 10 anos como animador de um programa de tele-realidade na NBC, “The Apprentice”.

Armado com essa notoriedade que cultivou entre as massas mais populares, entrou pelos terrenos da política, sempre a denunciar a incapacidade das instituições (o Presidente, o Congresso, o Governo os tribunais, os partidos) para responder às necessidades das pessoas. Passou a explorar o poder das redes sociais. Obama já o tinha feito, com grande eficácia, nas campanhas de 2008 e 2012, para expor, detalhadamente, a sua visão política sobre os principais assuntos. Trump usa os mesmos canais mas para propagar slogans. As mensagens são sempre redutoras: cavalga a xenofobia e diaboliza os imigrantes muçulmanos e hispânicos, rejeita o liberalismo da globalização, quer construir o muro físico com o México e comercial com a China. Elogia a autoridade de Putin e ataca a diplomacia americana que ao favorecer a queda dos ditadores do Médio Oriente deixou que se instalasse o caos. Está farto de ser apanhado em contradições, mas isso não parece interessar aos apoiantes seduzidos pela mensagem "Make America Great Again".

Um grande número de republicanos não esconde a sua inquietação com esta personagem. Não se reconhecem em Trump e procuram consensos para que o candidato do partido que foi de Lincoln e de Eisenhower, também de Reagan ou dos Bush, possa ser alguém mais apresentável. O problema é que uma das alternativas, o texano Ted Cruz (vai hoje triunfar nas primárias do Texas) no altar da extrema-direita religiosa é ainda menos de fiar. A elite do aparelho republicano tem um “golden boy”, Marco Rubio, mas os eleitores não lhe ligam grande coisa. É assim que Donald Trump está a impor-se como inevitável candidato republicano. Ainda não é. Ainda não atingirá nesta “super tuesday” a maioria de delegados para a Convenção Nacional Republicana, que vai acontecer entre 18 e 21 de julho em Cleveland. Mas é muito provável que no final deste mês de março já tenha essa maioria.

Agora, parece já ser tarde para travar Trump no palco republicano.

Assim, salvo qualquer improvável reviravolta (não é de excluir que apareça um candidato que se apresente como independente, fala-se de Bloomberg), em 8 de novembro, os eleitores dos Estados Unidos da América vão escolher entre Hillary Clinton e Donald Trump para suceder a Barack Obama na presidência. Se os europeus também votassem nesta eleição, mesmo considerando os ventos xenófobos que por aqui se agitam, Hillary teria a presidência na mão. Tal como é, uma escolha só dos americanos, o desfecho deste confronto entre a política tradicional e a rebeldia populista tem desfecho imprevisível num eleitorado irritado.

Talvez valha, entretanto, pormos os olhos nos golpes do malvado “presidente” Frank Underwood que esta semana volta aos ecrãs do mundo ocidental em nova temporada da série House of Cards. O tempo está para personagens de ficção.

Também a ter em conta:

Há na Índia quem esteja a levantar-se contra degradantes primitivas práticas de casta.

A Espanha, perante todas as contradições, vai conseguir arranjar um governo? Vai precisar de repetir eleições no final de junho? As eleições desfazem o impasse?

As eleições iranianas, com o êxito dos moderados do presidente Rohani, são uma vitória para Obama e uma derrota para Netanyahu.

Primeiras páginas escolhidas nesta "super terça feira": esta The Wall Street Journal, esta do The New York Times e esta do Libération. Também esta do NRC de Amesterdão que vê Washington em pânico com o cenário real deste Donald na Casa Branca.

E agrava-se todos os dias a tragédia dos refugiados. Veja-se aqui, como é em Calais. E aqui, uma amostra de como está a ser nos Balcãs.