A primeira coisa em que se pensa quando se está a assistir à entrega dos Globos de Ouro é “porque é que estou a assistir aos Globos de Ouro?”. Realmente, este prémio, tal como o seu irmão mais antigo e mais importante, os Óscares, representa tudo aquilo que passamos o ano inteiro a criticar: a obsessão de Hollywood consigo própria, a superficialidade e oportunismo dos seus “valores”, o relativismo do mundo visto pela óptica da comunidade simultaneamente fechada e exposta instalada na costa da Califórnia, a preponderância norte-americana no cinema e televisão de entretenimento.

No entanto, e apesar das críticas – umas justas, outras ressabiadas – é irresistível assistir a este desfile auto-congratulatório de estrelas e personalidades dos ecrãs, grandes (cinema) e pequenos (televisão). Pois é essa a mais óbvia diferença entre os Óscares e os Globos; enquanto os primeiros celebram apenas o cinema, os segundos também homenageiam a televisão, incluindo até “o melhor filme feito para tv".

Os Globos, atualmente na sua 75ª edição (começaram em 1944) são considerados também uma espécie de previsão dos Óscares, pois ocorrem tradicionalmente em Janeiro, três meses antes do prémio máximo do cinema. Mas há diferenças a considerar: os Globos são escolhidos pela Associação da Imprensa Estrangeira em Hollywood, ou seja, por 80 jornalistas, enquanto os Óscares são atribuídos pela Academia de Artes e Ciências do Cinema, com 5.783 votantes (em 2012, mas que pouco cresce ao longo dos anos). Os membros são actores, directores e técnicos da indústria, escolhidos entre eles. A elite do establishment de Hollywood e, segundo muitas opiniões, um exercício de umbiguismo, apesar da concessão dum Prémio para o Melhor Filme Estrangeiro.

Contudo, os Óscares têm vindo a perder audiência, enquanto os Globos crescem de ano para ano, talvez porque a influência do pequeno ecrã tem aumentado relativamente em relação ao grande ecrã. Este ano os Globos foram transmitidos directamente para 167 países, mesmo com as diferenças de fuso horário obrigando a horas estranhas de emissão em alguns deles.

Ao longo dos anos a distribuição de prémios tem sido bastante variada e não se pode dizer que valorize a qualidade como um valor absoluto; basta ver que no ano passado ganhou um pastiche bastante idiota, “La La Land”, que aliás teve sete prémios, o maior número de sempre. Contudo, em 1978 “O Expresso da Meia-noite” obteve seis prémios, e em 1975 “Voando sobre um ninho de cucos” o mesmo número de vitórias. Os critérios mudam com as épocas, precisamente ao sabor da moda e da superficialidade que tanto se critica a Hollywood – do mesmo modo que não se pode deixar de elogiar a qualidade técnica das produções e das representações, ainda hoje difíceis de superar.

E por falar em moda, o que está a dar este ano é o movimento contra o assédio sexual e a antipatia pelo Presidente Trump. Quanto ao assédio, que foi persistente durante toda a existência de Hollywood (e não só, evidentemente) parece que foi descoberto agora por toda a gente, com uma indignação nova como não se via há muito tempo, trazendo consigo a questão igualmente delicada do racismo. Alguém propôs que as mulheres vestissem de preto para protestar contra o assédio e o resultado é que toda a gente, sem excepção, negros, brancos, asiáticos, homens, mulheres, velhos e crianças estavam vestidos de preto. Não fosse a alegria e a maquilhagem exuberante, parecia um enterro.

A escolha do apresentador é importante e este ano o escolhido foi Seth Meyers, um humorista que se notabilizou no famoso Saturday Night Live e actualmente é o anfitrião do prestigiado programa Late Night da NBC, um clássico do género. Meyers, como todos os apresentadores de tv (com excepção da Fox News) é um liberal a favor das causas caras a Hollywood e fortemente anti-Trump. O seu monólogo de apresentação, não sendo extraordinariamente engraçado – Meyers pratica sempre uma certa contenção – teve as farpas esperadas: “Minhas senhoras e cavalheiros que ainda restam....”, “Este é o ano em que finalmente a marijuana é legal (na Califórnia) e o assédio sexual deixou de ser...”, ou “Quanto aos homens nomeados para os prémios, é a primeira vez em três meses que não ficarão aterrorizados pelos seus nomes serem citados em público...” Estas e outras piadas muito dirigidas para Hollywood em particular e os Estados Unidos em geral – os Globos, apesar de terem em vista o mundo inteiro, são sobretudo uma festa norte-americana.

Trump foi menos citado, mas não escapou. A propósito do organismo que instituiu os prémios, a Associação de Jornalistas Estrangeiros de Hollywood, Meyers atirou: “Não há palavras que poderiam ser mais antipáticas para o nosso Presidente: Hollywood, estrangeiros e Comunicação Social. A outra organização que o poderia irritar ainda mais seria a Associação de Saladas Mexicanas Hilary Clinton!”

A questão da discriminação racial, outra situação que sempre existiu (95% dos votantes dos Óscares são homens brancos), também esteve na ordem do dia. Houve vários prémios atribuídos a não brancos, inclusive o mais prestigiado, o Cecil B. DeMille Award que distingue uma carreira notável, que caiu em Oprah Winfrey. É a primeira mulher negra a ganhá-lo, depois de Sidney Poitier, em 1982.

Houve outros momentos de auto-satisfação, como a coincidência de juntar no palco dois ex-actores da série Harry Potter, Emma Watson e Robert Pattinson. Mas a maioria das piadas, emoções e momentos altos foi constituída por situações que escapam a quem não acompanha minuciosamente a vida e as atribulações do mundo televisivo/cinematográfico dos EUA.

Mas não importa; os Golden Globe continuam a ser material de primeira para os fãs do mundo inteiro. Quanto aos vencedores, bons ou assim-assim, têm a garantia de ganhar um bom puxão nas audiências internacionais. Para o ano há mais.

Veja também: "Três Cartazes à Beira da Estrada" triunfa nos Globos de Ouro

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