Nas últimas décadas, a Argentina tem aparecido no noticiário - pouco - sempre por razões de crise, descalabro e debilidade. Nos últimos meses falou-se mais, também por más razões. Só aqui no SAPO24 apareceu duas vezes, numa opinião do meu colega Sena Santos e noutra minha, que me permito sugerir a quem queira lembrar a História do país - como é que chegámos aqui?

E o aqui a que chegámos foi a eleição do “libertário da direita radical” Javier Milei, também conhecido como o “Trump argentino”. Este domingo, os 35 milhões de eleitores foram à segunda volta das presidenciais e deram 56% dos votos a Milei e 44% ao seu adversáriode esquerda, Sergio Massa, o economista incumbente, 

Pode dizer-se que apostaram no absurdo, se avaliarmos as promessas e as palavras dos membros mais proeminentes membros do partido “La Liberdad Avanza”. Em termos gerais, Milei é contra a protecção ambiental e dos povos indígenas, contra a energia renovável e da agricultura e criação de gado sustentáveis. Em termos mais específicos, prometeu acabar com a moeda nacional, “dolarizando” a economia, privatizar a 100% a Educação e a Investigação Científica, sair do Mercosul (o Mercado Comum da América do Sul) e liberalizar totalmente a mineração e o desmatamento.

Sobre o Acordo de Paris, Milei diz que a Argentina vai sair para não propagar “o marxismo e a decadência”. Então e o aquecimento global? Milei acredita que “há um comportamento cíclico nas temperaturas da Terra. As políticas que culpam a actividade humana são falsas e só servem para angariar fundos para financiar a preguiça dos socialistas.”

Na mineração, além de distribuir licenças à vontade, quer promover o “fracking” uma prática altamente destruidora da natureza - isto num país em que praticamente 90% da floresta nativa já desapareceu. Tal como no Brasil de Bolsonaro, a plantação intensiva de soja destruiu as florestas e o habitat dos índios.

Um dos seus deputados agora eleito, Bertihe Benegas Lynch, tem mesmo uma explicação para acabar com a vida selvagem: “Porque é que as baleias estão prestes a ser extintas enquanto as galinhas e as vacas crescem? A diferença são as vedações que as protegem. Quando há um dono, há uso económico, e isso protege a fauna.”

Quanto à educação e ciência, Milei acha que são responsabilidades privadas - a educação pela vontade dos pais, a ciência pelo interesse empresarial em inovar. E se os pais não tiverem dinheiro para educar os filhos? Que trabalhem mais, ou ponham os filhos a trabalhar mais cedo. Quanto à ciência, que actualmente é desenvolvida em cerca de 300 instituições públicas sob a supervisão de uma entidade fundada em 1958, a Conicet, o novo presidente vai extingui-la e distribuir os institutos pelas empresas dos diversos sectores, que as manterão se lhes interessar.

Podem resumir-se as políticas de Milei de uma maneira muito simples: são todas o contrário das que se praticam - ou tentam praticar - nas economias industrializadas. A lógica, implícita, é que levaram o país ao estado em que está e portanto acabar com elas é criar novas oportunidades…

Pode perguntar-se o que terá levado os argentinos a votar neste maluco em vez de um economista com experiência governativa, não muito bom, mas pelo menos normal. Uma resposta é, certamente o desespero. Está tudo tão mau, que nada poderá ser pior. Outra resposta é que Milei, tal como Trump, é um disruptor com carisma, que consegue vender as ideias mais absurdas com o argumento do bem senso e do interesse nacional.

Claro que os mais esclarecidos, tanto à esquerda como à direita, estão em pânico. Para a direita, o fim do peso argentino, por exemplo, coloca o país no circuito do dólar, quando precisamente um dos problemas é a falta de dólares, devido às fracas exportações. Para a esquerda, o fim do ensino público significa a analfabetização da maioria da população, que não tem meios para manter os filhos a estudar e ainda pagar propinas. 

Pode dizer-se que Milei está na linha dos novos autocratas que assolam o planeta, como é provável que aconteça nos Estados Unidos, com Trump favorito nas sondagens, ou a França, onde parece não se configurar um esquema político que trave Le Pen. Isto para citar apenas dois exemplos, deixando de lado experiências que já provaram ser “complexas”, como Boris Johnson na Grã-Bretanha ou Karl Nehamme na Austria, ou ainda Victor Orban na Hungria.

Mas tudo indica que Milei está “muito à frente” no novo estilo populista de “democracia não liberal” que parece espalhar-se cada vez mais. Mesmo comparando com Trump, que já promete uma limpeza dos funcionários públicos que não lhe forem fieis, Milei é muito mais autoritário, além de que a Constituição argentina lhe permite muito mais liberdade do que a norte-americana.

Para a Argentina, coitada, os próximos tempos prometem ser uma montanha-russa de cortar a respiração. É melhor os cidadãos, que votaram alegremente na turbulência, apertarem bem os cintos e rezar a Santa Evita.