A História política da Argentina, se quisermos condensar os 207 anos desde a sua independência, em 1816, resume-se ao protagonismo constante de militares em incontáveis golpes, revoluções e governos musculados. É também o país onde o populismo sempre esteve presente, à esquerda e à direita. (O populismo, usado hoje pela esquerda para classificar um tipo de direita, foi paradoxalmente inventado nos Estados-Unidos e é uma postura política abrangente.)

Entre governos militares que derrubaram outros governos militares, ficou particularmente famosa a ditadura auto-intitulada “Processo de Reorganização Nacional” (1976-82), liderada sucessivamente pelos generais Videla, Viola e Galtieri, que torturou, matou e fez desaparecer milhares de pessoas, raptou crianças e acabou ingloriamente com a derrota da Argentina na chamada Guerra das Malvinas (contra a Grã-Bretanha).

Pode dizer-se que estas aventuras são habituais em muitos países da América do Sul (e Central), mas a Argentina teve um regime ditatorial/populista original cuja influência perdura até hoje, o Peronismo. Foi nominalmente dirigido pelo General Juan Perón, presidente três vezes, mas o seu sucesso deve-se à esposa, a lendária Evita Perón (que até inspirou décadas depois um filme com Madonna, donde tirámos o título deste artigo).

Resumindo muito por alto, o Peronismo era — e é — um movimento popular de direita, que defende o poder da classe operária e a nacionalização da economia, mas convive bem com o “grande capital” privado.

Após a morte de Peron, o Peronismo foi sucessivamente proibido e legalizado, ao sabor dos golpes militares, mas teve sempre um peso psicológico muito forte na política nacional. Os vários governos até hoje, civis ou militares, variaram entre o neo-liberalismo e o centro-esquerda, destacando-se a pragmática Cristina Kirshner, eleita em 2009 e 2011. Actualmente o presidente é o seu cúmplice Alberto Fernandez, e Kirshner vice-presidente.

Isto quanto à política. Na economia, a história segue uma linha descendente que nenhum governo, neo-liberal ou neo-peronista, conseguiu consertar.

Até ao fim da II Guerra Mundial, o país era rico, sobretudo devido à exportação de gado. Calcula-se que terá sido o maior fornecedor de carne às tropas aliadas, A industrialização, se bem que incipiente, permitiu uma regular melhoria de nível de vida dos assalariados.

Na década de 1980, a inflação entrou numa espiral galopante; em 1989 chegou aos 5.000% anuais. Isso mesmo, cinco mil por cento. Em 2000 o país viu-se obrigado a recorrer ao Fundo Monetário Internacional — que, como todos sabemos, segue uma política extremamente pesada para os menos abonados.

Em 2001, uma corrida aos bancos leva a que o governo decrete um câmbio máximo de mil dólares por pessoa, o que gera conflitos violentos e três mortos.

Em 2002, após uma sucessão de três presidentes, é decretada uma moratória da dívida externa e abandonada a paridade com o dólar. A taxa de desemprego chega aos 25%.

Quando rebentou a crise mundial de 2008 o país era governado pelo casal Kirshner, peronista centrista (?) e um plano controverso de aumento de impostos conseguiu por alguma ordem na economia nacional. Cristina que tinha ganho sozinha as eleições de 2007, não conseguiu segurar a crise. Em 2015 entra em funções o neo-liberal Maurício Macri, mas parece não haver maneira de endireitar as finanças do país, com uma inflação altíssima e o desemprego constante. Segue-se nova negociação da dívida externa, um trauma persistente que não vê fim à vista.

É neste clima que decorreram as candidaturas para a eleição presidencial deste domingo. Os argentinos estão fartos de crise, já não acreditam em nenhuma solução — uma vez que foram todas tentadas — e chegaram àquele ponto em que qualquer coisa tem de mudar, mesmo que mude para uma coisa qualquer.

três candidatos, um de extrema-direita libertária, Javier Milei, um conservador, Patricia Bullrich, e um “peronista de esquerda”, Sérgio Massa. Uma escolha difícil…

Mas o mais extraordinário aconteceu nas primárias: Javier Milei saiu à frente, com quase 30% dos votos. O que é extraordinário não é a liderança, mas sim as posições políticas, económicas e, até, pessoais de Milei.

Com 52 anos, congressista e figura televisiva, as suas propostas sociais (reforçadas pelo candidato a vice-presidente, que defende a ditadura militar de 76-82) querem liberalizar o porte de arma, proibir a interrupção voluntária da gravidez e até permitir a venda de órgãos humanos entre pessoas vivas.

Na economia, Milei quer simplesmente acabar com o banco central argentino e dolarizar a economia — quer dizer, o peso argentino desaparece —, privatizar tudo, inclusive a segurança social e os hospitais, baixar os impostos e eliminar os ministérios da Saúde, da Educação e do Meio Ambiente.

Por mais estranho que pareça, estas propostas radicais/surreais agradam aos eleitores. No seu último comício eleitoral, Milei teve uma recepção entusiástica.

Pessoalmente, Milei também é fora do baralho. Solteiro, vive com cinco cães clonados nos Estados Unidos a partir de outro que já morreu e quem chama “os meus filhos com quatro pernas”. Três deles têm os nomes de famosos economistas neo-liberais: Murray Rothbard, Milton Friedman e Robert Lucas. Já prometeu que, se for eleito, escolherá um médico especialista em clonagem para dirigir o Conselho Científico Nacional.

O seu símbolo de campanha é uma moto-serra, “para cortar a inutilidade dos órgãos governamentais”, e a frase mais usada é "¡Viva la Libertad, carajo!".

Bolsonaro e Trump já o endossaram.

Isto é verdade? É mesmo possível? É. O impossível faz parte do passado. Estamos na pós-modernidade, carago!