Este texto não será uma condenação dirigida àqueles cabeças rapadas, saudosistas do esclavagismo, white-trash da supremacia branca que no passado fim-de-semana desfilaram pelas ruas de Charlottesville. Neste momento sinto-me desprovido de linguagem para dialogar com autómatos do ódio, zombies amargos. Não lhes dirijo esta condenação escrita, pois acredito (talvez com ingenuidade maior que o engenho) que a maneira como vivo já os afronta. O ódio não me é natural, e assim a minha simples existência torna-se um atentado à perfídia com que estes mortos-vivos se pautam. O veneno deles é tão improcedente que, mais do que opinar, quero abominá-lo, contrariá-lo com tudo o que sou. Por essa razão não me digo “anti-nazi”, nem sequer “anti-fascista”, pois estaria a insinuar uma opção ideológica, e para mim não é facultativo; se me assumo pessoa, isto tem de fazer parte. É como o exemplo que dou com o “feminismo”. Durante anos andei muito desconfiado do feminismo (e cheguei a confundi-lo com “femismo”), por ser um nome que se dá a algo que eu já incluía nas minhas noções de civismo, ou até de normalidade; defendo a igualdade de direitos entre homens e mulheres, não por subscrever uma ideologia, mas porque não concebo alternativa.

Este texto de condenação não será, portanto, dirigido aos cabeças rapadas. É a uma cabeça emperucada e loira que o meu dedo aponta. E a mim próprio aponto, que em tempo de campanha eleitoral americana, mesmo repudiando fortemente Trump, considerei que grande parte do seu discurso xenófobo não passava de bluff populista. Conhecendo o Donald televisivo, a celebrity, diria que ele não era um intolerante verdadeiro, e que matreiramente se serviu desse discurso só para granjear votos. Mas eis-nos chegados ao momento em que percebemos que, se tem a consistência de intolerância radical, se cheira a intolerância radical, se sabe a intolerância radical, então deve mesmo ser intolerância radical. Que pena não se ter pisado.

A responsabilidade política de Trump no que aconteceu em Charlottesville é abissal. Para aquelas mentes racistas e xenófobas que lá marcharam, o fim de mandato do 1º presidente negro podia logo afigurar-se como uma reconquista de poder, mas só um presidente como Donald Trump (de tão mancomunado com a alt-right e figuras da white-supremacy) tornaria essa miragem de poder assim tangível. O cenário de uma marcha de extrema-direita, com suásticas desfraldadas ao lado de bandeiras confederadas, e com gente tão hábil a fazer a saudação nazi quanto a citar a 1ª Emenda da Constituição, seria impensável em 2017 sob qualquer outro presidente. Por isso mesmo, em relação aos incidentes do fim-de-semana, não resumo os pecados de Trump às suas muito infelizes declarações – onde decidiu repartir o mal pelas aldeias, como se o Mal (esse, maiúsculo) pudesse partilhar condenações com o que quer que seja. Os pecados de Trump são anteriores e instigadores: vêm da sua campanha, dos seus aliados, da sedução eleitoralista da extrema-direita, da imbecilidade altiva e desgovernada. Os supremacistas andaram pelas ruas depois do presidente lhes ter aberto avenidas.

Um “Líder do Mundo Livre” que relativiza o ódio e que justifica o Mal é das coisas mais preocupantes que já percepcionei no meu tempo de vida. Mesmo com matérias onde evidentemente irá acertar, há demasiada teimosia, prepotência e ignorância em Trump para que tenhamos qualquer esperança de redenção. Teimosia, prepotência e ignorância que, com óculos do ódio, parecem tenacidade, coragem e espírito prático de líder, quiçá de líder reelegível. Com 208 dias no cargo, já posso falar dum presidente de má memória.

Nota final: já tinha avançado grande parte deste artigo quando o atentado em Barcelona se noticiou. É uma triste confirmação para o pessimismo com que escrevia.  Os ódios são tão significativos que tornam este ano insignificante. 2017 não é nada porque não chegámos a lado nenhum. O Mal jamais será uma manifestação obscurantista que enterrámos num passado remoto; é eterno parasita do tempo, que consome carne e ideias. Cada vez menos podemos subaproveitar aquela parte que não foi tocada pelo ódio e que, para todos os efeitos, é a única que se chama vida.

Sítios certos, lugares certos e o resto

Um austríaco a querer libertar os Estados Unidos da invasão Nazi. Já não via nada tão mind blowing e acertado desde o final do filme “Desafio Total”.

Carta branca a um artigo que ainda não li (passei os olhos e lá voltarei), só porque a pergunta me interessa. Se Israel é odiado pela extrema-direita, extrema-esquerda, fundamentalistas islâmicos, anti-dreyfusards e outros vilões, não devia ser a facção que mais amamos?

Emily Flake, na New Yorker, com 4 palavras e uma imagem que vale por 996 palavras.

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