Quase todas as cidades têm uma avenida ou praça emblemática. Em Barcelona, é a buliçosa La Rambla, a avenida que é um exemplo de convivência democrática, com faina em todas as 24 horas de cada dia: logo às 6 da manhã, são os homens e mulheres que descarregam o peixe, o marisco, as frutas, as hortaliças e outros frescos para os restaurantes e esplanadas; depois, chegam as floristas, que mais logo hão-de trocar piropos com os bailarinos e outros artistas do teatro do Liceu e das galerias; aparecem a seguir os estudantes, muitos Erasmus – Barcelona é a cidade mais procurada para intercâmbio universitário; há os lojistas de tudo e quiosques para todos os gostos; à hora de tapear, entram os homens e mulheres de negócios e da política, misturam-se com gente da alta e da baixa, todos trocam conversas, e há, sempre, muitos turistas, turismo popular, às vezes é demasiada enchente. A Rambla é uma parada democrática de uma cidade de gente. Com bares e restaurantes abertos pela noite fora. Ali, mesmo no tempo da Espanha franquista, sentia-se a liberdade de palavra.

O que se passa na cabeça de alguma criatura para causar uma matança como a da tarde de 17 de agosto? Meteu-se ao volante de uma furgoneta, subiu o passeio central da Rambla e, assassino, carregado de ódio, carregou a fundo no acelerador enquanto ziguezagueava para colher o maior número de pessoas e procurar o máximo dano possível. Percorreu mais de 500 metros a atropelar gente, crianças derrubadas do colo dos pais, pares jovens em T-shirt e bermuda apanhados de costas e que ficaram debaixo do rodado, gente que ria e que foi atirada pelo ar, tanta gente que saboreava gelados, que fazia fotografias, que vivia a Barcelona urbana e que perdeu a vida ou precisa de ser salva no hospital.

Há imagens que ficam gravadas na memória. Duas, entre as centenas destes dias. Numa, um homem e uma mulher, jovens, na berma de um passeio da Rambla. Ela parece inerte. Ele está sobre ela, como se estivesse a formar uma concha, ele a mantê-la viva. Ao lado, o saco de compras de onde cai o que teriam ido buscar ao supermercado, está sob um charco de sangue. Sabe-se que a concha da vida funcionou, ela foi socorrida a tempo, está a salvo.

Outra imagem que também impressiona pelo seu simbolismo: mostra o lugar onde a furgoneta branca conduzida pelo criminoso assassino estancou, depois de atropelar tanta gente.  Parou em cima do mosaico que Joan Miró criou para dar boas vindas aos visitantes de Barcelona. Miró quis criar três obras para saudar quem entra em Barcelona, tanto pelo ar, como por terra e pelo mar. São obras de características muito diferentes: uma é o mural que cobre a fachada do aeroporto de Barcelona, outra, a monumental escultura mulher e pássaro, na entrada por estrada, pela Diagonal, finalmente, um mosaico com 65 metros quadrados no pavimento da Rambla, para quem vem do mar. Miró quis que este colorido mosaico fosse um pavimento a ser pisado e capaz de acumular toda a imundície que deveria ser regularmente limpa. A furgoneta do assassino estancou ali. Aquele lugar ficou a seguir coberto por velas em homenagem às vítimas.

O que aconteceu na Rambla é uma matança que transborda a nossa capacidade para compreender a motivação. Que ferida tão grande leva a tanta hostilidade, a causar tanto horror e desespero? É gente que deve envergonhar o deus cujo nome invoca para agir. São criaturas que nem têm um passado credível como fiéis. Vamos sabendo que é gente que na maior parte dos casos vem de famílias migrantes, algumas até relativamente integradas, pelo menos com trabalho e salário.

Mas há os que se deixam consumir no ghetto da exclusão social, os que não conseguem encontrar alguma esperança boa para dar sentido à sua vida. Deixam-se tomar pelo ódio que conduz ao martírio. Extremam o fundamentalismo que assim funciona como dopante para causar mal. Gente psiquicamente deserdada. Talvez seja preciso – nunca para os justificar, é evidente – procurar avançar mais na compreensão dos mecanismos de vileza na cabeça desses criminosos. Certamente será também preciso que os serviços de inteligência avancem mais sobre as manobras ocultas de poder que guiam e financiam o terrorismo.

Furgonetas, camiões ou automóveis foram usadas e lançadas por sete vezes no último ano, em cidades europeias, como bombas ou arma de guerra. A derrota do Daech nos bastiões que ocupou que ocupou no Médio Oriente está a exportar o terrorismo para dentro da Europa. Vê-se que está a tornar-se mais intensa a frequência de ataques de um lobo solitário ou de um grupo em lugares e datas que não é possível prever. Podemos prevenir-nos para tudo, menos contra o nosso modo de viver. Vamos ter de viver com esta ameaça.

Estes assassinos escolhem para o seu ataque lugares que é suposto, na vida em liberdade, estarem desarmados, no sentido mais amplo da palavra: uma sala de espectáculos em Paris, a arena de concertos em Manchester, a marginal de Nice em festa, o bazar de Natal em Berlim, uma alameda no coração da capital catalã.

Em Barcelona, tal como antes em todos os lugares atacados, o povo saiu à rua, centenas de milhar para proclamar orgulhosamente no tinc por, não temos medo. Quer dizer: não vamos reduzir a nossa liberdade. O que desespera os terroristas nas nossas maravilhosas cidades europeias é a nossa liberdade, a nossa tolerância. A nossa liberdade, por exemplo, para crer ou não crer num deus.

É por isso que vamos continuar a trabalhar e a estudar, a sair à noite e a ir aos concertos, a escutar as músicas, a ver os filmes e a ler os livros que podem interessar-nos. E a caminhar de mãos dadas.

Estaremos sempre prontos para gritar, nas ruas e nas praças, nas 35 línguas de todas as vítimas de Barcelona e em todas as outras, não temos medo, no fearno tinc por. Mas, bem dentro de nós, sabemos que a ameaça está pela frente, onde menos esperamos, na cabeça dessa desgraçada geração jiadista. Não podemos é deixá-los tirarem-nos o modo de vida em liberdade que é o nosso.

Frente ao terror que sabemos omnipresente e ágil a escapar a qualquer vigilância, por mais que seja combatido com a maior eficácia, o medo só pode ser o de cortes na nossa liberdade. Isso, recusamos.

TAMBÉM VALE LER:

O tempo de mudanças em Angola, analisado de fora: no The Guardian, no The New York Times e numa entrevista no Le Monde/Le Temps de Genève.

VALE VER E OUVIR:

Os sons da terra que a NASA enviou para a posteridade no espaço.

último gong do Big Ben antes de quatro anos de silêncio para reparação dos carrilhões. Mas numa das faces da torre o relógio vai continuar a marcar a hora de Londres, através de um motor elétrico.

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