Neste momento, fermentam dentro de mim dois sentimentos portugueses contraditórios. Por um lado uma indignação lusa, que muito me faz clamar por justiça, por outro uma desconfiança enraizada de que a Justiça não vai funcionar. Também contraditória, parece-me, é a forma como comummente escrevemos “Justiça” e “justiça”. Usamos maiúscula quando nos referimos ao poder judiciário, aquele braço processual, falível e tantas vezes injusto. Usamos minúscula quando nos referimos ao valor puro, ao conceito ideal de equidade e retribuição. É um desmazelo linguístico, uma injustiça poética.
Ando indignado e desconfiado porque esta voltou a ser uma semana relevante no processo Marquês - indignado com o rol de suspeitas que se avolumam, desconfiado com uma Justiça (a maiúscula) que não me parece livre dos seus nós, buracos e desmazelos. Apazigua-me, contudo, um optimismo que já não é nada típico dos portugueses. Estou optimista por achar que esta montanha não vai parir um rato, nem um Largo do Rato. Acho que a montanha vai parir outras montanhas – Cordilheiras maciças que nos reconciliarão um pouco com a Justiça que temos.
O meu optimismo não se refere a qualquer veredicto, refere-se sim a uma acusação; depois de todos os atrasos, de todos os debates, de toda a atenção, é necessário que para este caso (talvez o maior de sempre) se formule uma acusação. Qualquer outro desenlace seria desastroso, vergonhoso até. Se há coisa que tem atenuado os riscos, as prisões preventivas e o ultrapassar dos prazos é a ideia de que, com maiores ou menores solavancos, se está a construir um caso. Um caso não só grande como também sólido. Por esta altura, o arquivamento seria uma calamidade insuperável para a imagem da Justiça portuguesa. Mantenho-me optimista, mas não parvo: acredito que surgirá a acusação; não acredito que aconteça até ao fim do prazo, na próxima sexta-feira.
É a segunda vez que aqui escrevo sobre Sócrates e, embora muita coisa no processo da Operação Marquês tenha mudado, pouco ou nada na minha opinião se alterou. O ex-primeiro ministro em liberdade e eu aqui algemado a circunstâncias que volto a resumir: “Sou defensor das virtudes legais da presunção de inocência, mas também sei distinguir o que é um punhado de areia nos olhos do que é uma virtude legal. Por isso questiono: como presumir a inocência de alguém quando isso implica darmos a presumir a nossa própria estupidez?”
Muito gozou Sócrates destas constantes invocações da presunção da inocência, e também de carpideiras a corroborarem-lhe a tese de assassinato político. Não vejo o mesmo empenho legal e analítico quando os presumidos inocentes são doutros espectros partidários, o que leva a crer que, com ou sem avençados, há uma máquina a funcionar melhor num dos lados da barricada ideológica. Quem é que se atreve a não suspeitar do Duarte Lima em público? Quem é que nunca juntou as palavras “Portas”, “trafulhice” e “submarinos” na mesma frase? O problema é com as tacadas de esponja à esquerda, não é com as tacadas de madeira à direita. O que eu gosto é de beisebol, e de mauzões com dói-dói.
Há um sketch do Gato Fedorento onde o Major Valentim Loureiro (caricatura excelente pelo Ricardo Araújo Pereira) é confrontado com gravações de telefonemas que tinha feito a árbitros. O personagem vai dando explicações muito rebuscadas aos evidentes indícios de corrupção nas escutas. Por fim, surge uma gravação tão comprometedora que é impossível arranjar desculpas. Nesse telefonema, até se ouve o major dizer “Quero que beneficie claramente o Boavista, serviço pelo qual lhe vou pagar (...) e estou a pedir-lhe isto de forma de tal maneira flagrante que se esta conversa alguma vez no futuro for apanhada para efeitos judiciais eu estou tramado(...) Desejo corrompê-lo, e bem!”. Encurralado, aquele Valentim Loureiro desencanta uma escapatória: alegar que estava a fazer figas durante o telefonema. Acrescenta até que se consegue ouvir o som dos dedos a cruzarem-se, e que “só por má fé é que uma pessoa não ouve esse som, que é o som clássico das figas.”
As reacções do Engenheiro José Sócrates aos indícios dos seus crimes fazem lembrar o major do sketch humorístico. Sócrates chama mirabolantes às inferências mais óbvias, chama estapafúrdias às deduções mais evidentes, chama insinuações torpes às observações mais lógicas. Só por má fé é que não estamos a ouvir o som clássico das figas no meio disto tudo, concluo. Se temos obrigatoriedade para com a presunção de inocência era bom que o engenheiro desse uma ajudinha. Ao invés disso, tem-nos brindado com um escoicear mediático que passa tanto pela citada vitimização ludibriosa, como pelo ir a telejornais armado em livro aberto (mas proibindo de antemão certas perguntas), como ainda pelas conferências onde octogenários o podem ouvir comparar-se a Mandela. Mais acertado seria comparar-se ao famigerado tradutor de linguagem gestual no funeral de Mandela.
Eu, português indignado, também não quero fazer a apologia duma presunção de culpabilidade. Quero justiça, quero Justiça, e neste momento só me espanta que uma suspeição plausível se deseje mais amordaçada que desculpas estupidificantes. Caso o Engenheiro José Sócrates não tenha cometido fraude fiscal, nem branqueamento de capitais, nem se tenha deixado corromper, então que seja ilibado. Ilibado, mas não inocentado. Se os factos estiverem do lado de Sócrates, continuarão a não estar do lado dele a decência nem o decoro político. Inocente nunca, sobretudo quando lhe adivinhamos as aspirações. Alguém que foi primeiro-ministro dum país não deve viver acima das suas possibilidades, ainda menos se por intermédio duma relação parasítica com o amigo Santos Silva. Alguém que foi chefe de Governo não pode dizer o que diz da Justiça portuguesa, sobretudo se o seu executivo nada fez pelas agruras que agora lamenta. Alguém que ganhou duas eleições não pode estar empenhado em tanta capciosidade; já bastam duas eleições para nos sentirmos burros.
Há boas hipóteses duma acusação - digo eu, optimista - mas que hipóteses haverá duma condenação? – pergunto eu, desconfiado. Na eventualidade de Sócrates ser ilibado, jogar a cartada do mártir, concorrer às Presidenciais e ganhar, eu publicarei aqui uma fotografia minha. Assim ficarão a saber como é um português verdadeiramente indignado.
SÍTIOS CERTOS, LUGARES CERTOS E O RESTO
Para que não vos falte nada, o sketch do Valentim Loureiro pode ser visto aqui. Com a particularidade de ter quase tanta graça quanto alguns momentos inesquecíveis do Valentim verdadeiro.
E corroborando de forma simbólica a minha esperança (de que a montanha não vá parir um rato), aqui fica uma estonteante visita ao Monte Evereste.
Comentários