Nascido e criado na Buraca, onde vivi até aos 32 anos, senti na pele, desde muito cedo, o racismo e a discriminação por parte de africanos oriundos da Linha de Sintra.

Tudo começou nas festas de Natal do infantário da Buraca: todos tínhamos de dançar. Ainda hoje tenho vídeos onde se vê que eu, branco, tinha o ritmo de uma caturra epilética e dois pés de betão armado, enquanto os meus colegas, pretos, dançavam e gingavam ao som da música e com um sorriso na cara. Isto trazia-me problemas ao nível da autoestima e eles gozavam comigo por eu não saber dançar ao som dos Onda Choc.

Mais tarde, na escola primária n.º 1 da Buraca, senti muitas vezes as dificuldades de ser branco. Acabavam as aulas e ia para casa, ou para o ATL, fazer os TPCs, enquanto que a maioria dos meus colegas podiam ficar na rua a brincar o dia todo, muitas vezes até o sol se pôr, porque os seus pais estavam a trabalhar até tarde e gastavam o dinheiro noutros luxos em vez de em coisas supérfluas, como ATL para os filhos.

Ao chegar à escola preparatória da Damaia o cenário de racismo piorou: sendo o único branco numa turma de trinta alunos, lembro-me de que me insultavam todos os dias chamando-me branco e pula. As pessoas não sabem a carga negativa que as palavras têm e o trauma que fica numa criança quando é constantemente chamada de branca na escola. A maldade dos meus colegas pretos era tanta que chegaram a votar em mim para delegado de turma! Vejam bem o preconceito deles: só por eu ser branco partiram do princípio de que tinha de ter um cargo de responsabilidade! Não quero estar aqui a comparar escravatura com ser delegado de turma, até porque nunca fui escravo e não posso ter a certeza, mas, entre levar chibatadas no lombo e ter de carregar as bolas de basquete para o campo, não sei o que é pior. Ademais, quem gosta de jogar basquetebol? Não era, certamente, aqui o pula. Aliás, em todas as aulas de educação física eu sofria racismo, fosse nas provas de atletismo ou, pior, nos balneários.

No entanto, a maior discriminação que sofri foi por volta do 9.º ano, fim do ensino obrigatório nesse tempo, em que eu tive de prosseguir os meus estudos até ao 12.º ano para entrar na faculdade e terminar o curso. Muitos dos meus colegas pretos puderam deixar de estudar logo nessa altura, começando a trabalhar e a ser independentes. Lembro-me do Carlos, um colega meu, que teve de abandonar os estudos ainda no 7.º ano para ir ajudar a mãe na peixaria. Que sortudo, logo a ter trabalho tão cedo. Fui gozado e rebaixado inúmeras vezes pelos meus colegas pretos por saberem que os meus pais insistiam para eu tirar um curso superior, dizendo, até, que me pagariam as propinas. Fui gozado e rebaixado outras inúmeras vezes por levar os trabalhos de casa sempre feitos e por ter acompanhamento em casa e incentivo para estudar. “Pula betinho tem boas notas” é uma frase que ainda hoje me atormenta as noites.

Quando tirei a carta e comecei a conduzir, percebi que os brancos, mesmo depois de adultos, sofrem preconceito, ainda que subtil, muitas vezes. Exemplo: fui parado numa Operação Stop, perto da minha casa, ao lado da Cova da Moura; um dos polícias cumprimentou-me, dizendo boa noite, e perguntou-me se tinha bebido alguma coisa; eu disse que não e ele deixou-me ir embora. Um carro ao meu lado, com um africano ao volante, foi parado, soprou no balão e teve o seu carro revistado. Até os próprios polícias, brancos, me discriminaram, achando que eu era um betinho incapaz de conduzir embriagado e sem qualquer jeito para o empreendedorismo ilícito.

Isto tudo é apenas a ponta do iceberg do racismo que os brancos sofrem. A dona Fátima Bonifácio, que apenas disse verdades, está agora a sofrer essa mesma discriminação. Um preto pode ser racista e ninguém diz nada, já uma branca, apenas por ser racista e escrever uma crónica cheia de generalizações baseadas na cor da pele e na etnia, é logo acusada de todos os lados e rebaixada por isso. Enfim, é o país que temos.

Sugestões e dicas de vida completamente imparciais:

Para ouvir: I’m Not Racist, de Joyner Lucas

Para ver: Cura de Bem-Estar, na Netflix

Para ir: Palco Comédia do festival Alive.