Há umas semanas, publiquei aqui no SAPO24 um texto em que usava a famosa expressão "Quem não tem cão caça com gato". Nos dias seguintes, recebi várias mensagens de leitores a perguntar-me se não me teria enganado. Afinal, a expressão correcta é – segundo me diziam – "Quem não tem cão caça COMO o gato". Os malandros dos falantes é que teriam deturpado a expressão original, passando a dizer "caça com gato". O sentido da expressão seria "como não temos cão, temos de caçar como o gato, ou seja, sozinhos". 

Será que errei? Já me aconteceu várias vezes (e recebi correcções simpáticas e úteis de leitores). 

Desta vez, penso que não.

Se fosse verdade que a expressão "Quem não tem cão caça com gato" é uma deturpação, deveríamos conseguir encontrar usos da expressão original mais antigos que os da expressão deturpada. É lógico, não é?

Ora, se formos procurar em livros do século XIX (em séculos anteriores não encontramos a expressão), a versão que nos aparece sempre é "caça com gato". Até Machado de Assis a usa! Não há nenhum caso (que eu tenha encontrado) da versão "como o gato" ou "como gato" em livros do século XIX. Se continuarmos pelo século XX fora, também só temos "com gato".  

A nova versão ("como o gato") apareceu apenas nos últimos anos, em textos que tentavam "corrigir" a expressão que, afinal, sempre esteve certa. É um caso muito claro de erro falso. Alguém pensou um dia "olha, se calhar esta expressão era diferente" e a invencionice pegou fogo.  

Surpreende-me, confesso, que seja tão fácil acreditar numa história destas. Afinal, a expressão é muito comum e tem um sentido claro (o que nem sempre acontece): quem não tem a ferramenta adequada (o cão) usa aquilo que tem à mão (o gato). O sentido martelado na correcção «como o gato» poderá também fazer algum sentido, mas é muito forçado. Aliás, a graça da expressão perde-se toda. Na versão original e mais habitual ("com gato"!), imagino o pobre gato a ser usado para caçar, contra a sua vontade, porque o cão não apareceu ao serviço. Na versão mais recente, vejo apenas uma pessoa a caçar sozinha. Que graça tem isso?

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Por que razão é tão fácil acreditar no mito? Enfim, é interessante (se fosse verdadeiro), dá-nos a sensação confortável de aprender alguma coisa nova (embora falsa), permite-nos pensar que sabemos falar melhor que muitos outros (não é bem assim). Seja qual for a razão, deixemo-nos disso: a velha expressão "com gato" está bem e recomenda-se. Deixemo-la em paz.

Quem acreditava no mito, fique descansado: todos nós caímos nestas armadilhas. A solução é simples. Basta voltar a usar o velho ditado português e tudo ficará bem: "Quem não tem cão caça com gato!".

Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. Apresenta, com Cristina Soares, o programa Palavrões da Ciência.