1. O estranho caso dos aviões sem balas no motor
Há uns tempos, li num excelente livro sobre matemática (já vos digo qual) uma história muito curiosa que mostra bem como nos podemos enganar com facilidade.
Alguns especialistas americanos, durante a II Guerra Mundial, começaram a analisar os aviões que chegavam da guerra para ver que partes da fuselagem tinham mais buracos de balas — e assim reconfigurar os aviões para proteger os pontos mais frágeis.
Os especialistas chegaram então à conclusão que a zona do motor era aquela onde havia menos buracos de balas inimigas. Logo, era ali que podiam poupar na protecção. Pelos vistos, os inimigos acertavam menos no motor do que nos outros locais do avião.
Pois foi um matemático de nome Abraham Wald que impediu tal disparate: na verdade, havia menos buracos de balas na zona do motor porque, quando a bala acertava no motor, o avião tinha tendência para cair.
Ou seja, os aviões que chegavam aos EUA para serem analisados eram aqueles aviões que, por acaso, não tinham levado um tiro no motor. Os que tinham mais buracos na zona do motor estavam no fundo do mar e não no laboratório daqueles especialistas.
Claro que os aviões tinham menos balas no motor — aqueles eram precisamente os aviões que não tinham levado tiros em zonas críticas...
Quando lemos esta história, faz-se um clique na cabeça e vemos como é tão fácil enganarmo-nos mesmo quando olhamos de frente para a realidade. O erro descrito nesta história é muito comum e apanha-nos quase todos os dias.
O livro onde encontrei esta história é Como Não Errar, de Jordan Ellenberg. A Penguin publicou o capítulo em questão nesta página (em inglês). O livro, diga-se, ajuda-nos a perceber como esta história se repete todos os dias...
2. Todos temos avós famosos
Bem, aqui fica mais um caso de enganos resolvidos com matemática. Em Inglaterra, está agora na moda encontrar ascendentes históricos de gente famosa — e as pessoas assim premiadas com um avoengo espampanante ficam muito orgulhosas. Ah, afinal são gente não só famosa, mas também de pergaminhos antigos.
Ainda em 2015, alguém descobriu que Benedict Cumberbatch era descendente de Ricardo III, o rei que o actor iria representar numa série de televisão. Não sei o que Cumberbatch pensou do caso, mas muita gente ficou pasmada com a coincidência.
Só que não era coincidência: na verdade, o mais provável é eu próprio, aqui neste canto da Europa, ser também descendente de Ricardo III. Eu — e o meu caro leitor. Somos todos!
E também somos todos descendentes de Afonso Henriques (sim!). E de Maomé (ah, pois é!). E só não seremos descendentes de Jesus porque dizem que não teve descendentes.
Como é isto possível? Bem, pensemos ao contrário: tenho dois pais, quatro avós, oito bisavós... Se continuarmos por mais umas quantas gerações em direcção ao passado, chegaremos rapidamente a números impossíveis — o que significa que somos todos primos uns dos outros, de forma bem mais imbricada do que imaginam os defensores de certas ideias de pureza dinástica.
As contas são um pouco mais difíceis do que possa parecer, ao lermos o parágrafo anterior. O leitor pode ver a explicação mais desenvolvida neste pequeno artigo — mas se quer que lhe diga, bem mais interessante será ler o pequeno livro chamado O Mistério do Bilhete de Identidade, de Jorge Buesco. Perceberá que é descendente até dos faraós — e aproveita para ficar a conhecer um livro muito simpático.
3. Dois livros para nos tirar as palas dos olhos
As palavras são perigosas — podem enganar-nos e bem. Basta pensar no uso matreiro de termos como «energia», «magnetismo», «quântico», etc. Podemos ainda imaginar o estrago criado por certos mitos relacionados com a natureza, com a ciência, com aquilo que está ou não provado. Afinal, há quem ande por aí a dizer que a teoria da Evolução não está provada porque é só uma teoria — mostrando de uma assentada que não sabe bem o que quer dizer «prova» nem o que quer dizer «teoria» no campo da ciência.
Como os dois casos de que falei acima mostram, por vezes temos de olhar para os números para nos curarmos da embriaguez das palavras bonitas. Ou, pelo menos, temos de ser críticos com as nossas próprias ideias e estar sempre à coca para encontrar os erros sedutores que nos esperam à esquina.
Pois acabou de sair um livro que nos ajuda a fazer isso mesmo: Não Se Deixe Enganar, escrito por membros da Comcept. Vale bem a pena!
Sim, esta semana apeteceu-me falar de livros. E fica a faltar a última sugestão: não, não tem nada a ver com matemática ou ciência e não acabou de sair. É um livro antigo — o que se passa é só isto: acabei de o ler esta semana.
Se não nos ajuda a não sermos enganados por aviões que fogem das balas nazis ou a percebermos que, no fundo, somos mesmo todos primos, este livro tira-nos a ilusão de que as vidas dos outros são tão banais como parecem e ajuda-nos a perceber como a mais triste das existências pode conter em si uma beleza que os bons escritores conseguem revelar na sua esplendorosa tristeza. Não sei dizer muito mais. O livro é Stoner, de John Williams. Foi publicado em 1965, perdeu-se no tempo e foi recuperado há alguns anos. Aconselho vivamente quem me lê nestes dias de Verão a ir correr à livraria e a comprá-lo. É um livro triste, mas também de tristeza se faz a beleza da vida — talvez seja um choque lê-lo ao sol, numa praia. Mas será um choque que vale a pena.
O que têm estes quatro livros a ver uns com os outros? Entre matemática e literatura, são livros que nos tiram as palas dos olhos e mostram o mundo um pouco mais perto do osso.
Que este Verão vos traga muitos e bons livros — é o que vos desejo.
Marco Neves é autor do romance de aventuras A Baleia Que Engoliu Um Espanhol (Guerra e Paz). Tradutor na Eurologos e professor na Universidade Nova de Lisboa. Escreve no blogue Certas Palavras.
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