Os números vitais do Qatar parecem ficção: com apenas 11.500 quilómetros quadrados (pouco maior que o distrito de Beja) tem somente 313 mil cidadãos nacionais, uma população de quase três milhões, e guarda 13% das reservas mundiais de petróleo e gás. Situado numa península desértica, a sua capital, Doha, é um aglomerado de arranha-céus futuristas desenhados pelos melhores arquitectos do mundo, incluindo um bairro artificial dentro do mar com quatro mil metros quadrados O rendimento per capita é o maior do mundo: 128.702 dólares, apenas abaixo do Lichtenstein (que em alguns índices aparece em primeiro).

Se os números são estranhos, os factos não lhe ficam atrás. Sendo a religião oficial o wahhabismo, que é a corrente mais radical do sunismo (como na Arábia Saudita), tem contudo 15% de xiitas e igrejas católicas, protestantes, e até um templo budista. Segue a sharia (lei islâmica), evidentemente, que inclui mutilações, flagelações e apedrejamentos, mas tem uma constituição desde 2005, e as mulheres são emancipadas; podem estudar, trabalhar, votar e ser eleitas e são as menos condicionadas nos países do Golfo. Apesar de ser crime de morte falar contra a casa de Thani, a família reinante, o Qatar tem o canal de televisão mais competente e independente do mundo árabe, a Al Jazeera. Em Doha, há universidades de excelente nível e ocorrem eventos como o famoso Top Forum onde se debatem questões de gestão, saúde, cidadania e finanças, com a presença de especialistas de renome mundial. A companhia de aviação Qatar Airlines tem uma dimensão e expansão mundial maior que muitos países industrializados.

As actividades culturais e artísticas não se limitam aos vários museus e instituições de Doha; o Qatar promove e financia eventos como grandes exposições de Murakami em Versailles (em 2010) e de Damien Hirst em Londres (2012).

Convém esmiuçar a situação étnica e económica: os 313 mil qataris e trabalham (pouco) em gestão e funções administrativas; depois há cerca de 600 mil expatriados ocidentais que executam funções técnicas indispensáveis, desde veterinária a engenharia; e finalmente os milhões de trabalhadores braçais de países asiáticos (Bangladesh, Sri Lanka, Nepal e outros) que têm um estatuto de semi-escravos. Esta demografia é semelhante à dos outros países petrolíferos da Península da Arábia, a diferença está na tolerância com as religiões e estilo de vida dos estrangeiros.

O que permite à casa de Thani ser tão eclética e ter uma presença em tantos países é a fortuna imensa que gere; calcula-se que os qataris têm mais propriedades na Grã Bretanha do que a família real inglesa. Nem se consegue imaginar quanto custa um canal de televisão com estúdios permanentes em Doha, Londres, Washington e Kuala Lumpur e correspondentes nos cinco continentes. A Qatar Airways tem 146 aviões que voam para 150 países. Os Thani financiaram generosamente os movimentos da chamada Primavera Árabe e em especial a Frente al-Nusra, a secção síria da Al- Quaeda e a Irmandade Muçulmana.

Contradições difíceis de perceber

Estes apoios políticos, que Qatar nega, é que levaram à presente situação de isolamento entre os países da Península Arábica. Mas não só. No Egipto, os Thani apoiaram Mohamed Morsi, em 2012; o actual Presidente, General Sisi, que depôs Morsi, no ano seguinte, não lhes perdoa. Por outro lado, o actual Emir, Hamad bin Khalifa Al Thani, assinou um acordo de cooperação defensivo com Irão, inimigo religioso e territorial da Arábia Saudita. Outro país que apoia o Qatar é a Turquia. Talvez Erdogan sonhe com os tempos em que o Império Otomano controlava toda a Península.

Estas contradições são difíceis de perceber. Como é que o Qatar, wahhabita (logo, sunita) se aproxima do Irão, xiita, contra a Arábia Saudita, igualmente wahhabita? E a Turquia, que é sunita, como é que alinha com o Irão? Quanto aos Estados Unidos, são aliados da Arábia Saudita contra o Irão, mas também são amigos do Qatar – é onde está a maior base norte-americana na região, Al Udeid. Washington tem tentado convencer os sauditas a fazer as pazes com os qataris contra o inimigo comum, o Irão; mas também não pode pressionar demasiado o Qatar por causa da base.

Os ocidentais não têm, evidentemente, nenhum problema com quem é sunita ou xiita; o Qatar comprou recentemente uma grande quantidade de armamento francês e os ingleses têm uma presença em Al Udeid.

Depois de várias peripécias diplomáticas – retirada de embaixadores, restabelecimento de relações – finalmente, a 17 de Junho 2017, os Emirados Árabes Unidos, a Arábia Saudita, o Bahrain e o Egipto impuseram um bloqueio aéreo, terrestre e marítimo ao Qatar. Outros países seguiram o exemplo, por interesses diversos, embora a distância e a quase inexistência de contactos tornassem a atitude mais simbólica do que prática. É o caso da Líbia/Tobruk, que cortou relações diplomáticas, apesar de não as ter...

Os qataris foram expulsos destes e doutros países que aderiram ao bloqueio. As exigências apresentadas pelo grupo incluíam o fim dos supostos subsídios a grupos terroristas, corte de relações com o Irão e o encerramento da Al Jazeera. (É de notar que a Al Jazeera, dada a sua independência noticiosa, já foi proibida temporariamente no Egipto e em Israel e permanentemente na Arábia Saudita.)

Há quem considere que o bloqueio é o resultado da Cimeira de Riade, em Maio de 2017, quando o Presidente Donald Trump esteve reunido com os líderes destes países para coordenar uma política comum contra a Irmandade Muçulmana e o Irão. Vendeu-lhe milhares de milhões de armamento (a pagar com petróleo, com grande probabilidade) e terá dado apoio implícito ao bloqueio.

Segundo a “Business Insider”, Trump levou a esse encontro dois dos seus assessores, Elliott Broidy e George Nader, “especialistas” na região. Este último, condenado por pedofilia (pormenor que não tem a ver com esta história, mas diz um pouco sobre a personalidade) é um libanês americano muito amigo dos príncipes da Arábia Saudita e de Abu Dabi e do israelita Joel Zamel, perito em “manipulação dos meios de comunicação”, além de dono da famigerada “empresa de segurança” Blackwater. As ramificações desta trama são impossíveis de seguir.

Aliás, logo a seguir à cimeira, Rex Tillerson e o Ministro da Defesa James Mattis estiveram em Doha a garantir a situação da base militar e a assegurar a Hamad Al Thani que a Arábia Saudita não invadiria o país.

Seja como for, o Qatar não se deixou impressionar e tem-se mantido firme na negação de envolvimento com terroristas, mudou as rotas dos aviões da sua companhia de aviação para não passarem pelos países limítrofes e não fechou a Al Jazzera. As quantias multimilionárias que o país tem em bancos nos cinco continentes, a abertura do espaço aéreo e marítimo do Irão e os interesses de outros países têm permitido ao Qatar manter um fluxo regular dos bens de que precisa – segundo o seu ministro dos Negócios Estrangeiros disse em Londres, “por tempo indefinido”.

Aliás, na semana passada, Hamad Al Thani esteve em Londres a conferenciar com Theresa May e comprou-lhe mais uns milhares de milhões de material de guerra. Ao mesmo tempo, ganhou um processo no Tribunal Penal Internacional, em Haia, condenando os Emirados Árabes Unidos por discriminar os estudantes qataris, que não conseguem falar com as famílias em Doha – o que significa, implicitamente, que a expulsão decretada há um ano não tem funcionado.

As alianças, conluios, ataques e contradições entre sunitas e xiitas, sauditas e iranianos, americanos e qataris, israelitas e egípcios, são tais que é difícil entender o que se está a passar, e muito menos o que irá acontecer.

 Nota: Na foto que ilustra este artigo vê-se Hamad Al Thani numa visita em 2015 à Arábia Saudita, quando os dois países ainda mantinham relações diplomáticas.