A Turquia, um ano depois do golpe de estado falhado (noite de 15 de julho de 2016), mas aproveitado pelo presidente Erdogan para reforçar o seu regime de modo autoritário, está a tornar-se um estado-prisão. Os números incrivelmente altos da repressão neste último ano deixam-nos estarrecidos: 118.235 pessoas foram detidas; 55.927 continuam na cadeia; entre os detidos há cerca de (faltam números precisos) 8.800 polícias, 6.900 militares e 2.400 juízes e procuradores; 142.247 mil funcionários públicos foram despedidos, em vagas sucessivas, por alegada simpatia pelos golpistas. A lista de afastados inclui 4.424 magistrados (um terço do corpo judicial da Turquia) e 8.271 professores universitários e investigadores. 36.000 professores perderam a licença para ensinar. Só nestes últimos 12 meses, há registo de 269 jornalistas detidos para interrogatórios policiais e 177 continuam presos. Uns 2.500 jornalistas e cronistas deixaram de poder publicar

O regime de Erdogan, com o pretexto do “15 temmuz” (o golpe de 15 de julho de 2016) mandou fechar 1.125 associações, 129 fundações, 1.061 instituições educativas, 223 academias, 15 universidades e 807 residências universitárias. Foram confiscados os bens de 956 empresas privadas.

A imensa purga continua e só no último sábado, dia do primeiro aniversário do golpe, foi publicada a lista de mais uns 7.000 funcionários públicos que são afastados. Todos os que o regime tem excluído neste último ano confrontam-se com grande dificuldade para encontrar trabalho nas empresas privadas, porque estas receiam que ao empregar “suspeitos” sejam perseguidas pelo regime.

Para este último fim de semana, o da celebração do 15 temmuz, o regime de Erdogan promoveu, em tom muito nacionalista, a “Festa da Democracia e da Unidade Nacional”, marcada por discursos combativos com apelo à emoção e alusões religiosas. Em convocatórias para as manifestações, que foram enormes, apareceram transcrições de versículos do Corão sobre a traição e o martírio. Em Ancara como em Istambul ou Esmirna, muitos edifícios públicos ficaram com a fachada coberta pelo vermelho de enormes bandeiras nacionais da Turquia. Em alguns arranha-céus, a bandeira cobria uns 20 pisos. As televisões, controladas pelo regime, fizeram do 15 temmuz uma epopeia, celebrando o líder providencial, Erdogan.

A Turquia de hoje não pode respirar liberdade, mas os ideais europeus, neste país que é ponte entre a Europa e o Oriente são, como tem repetido Can Dundar (editor do Cumhuriyet, jornal de referência cujo nome significa República),  “mais defendidos nas prisões turcas”, como a de Silviri, onde Dundar esteve detido em dois meses de isolamento, “do que em Bruxelas ou noutras capitais europeias”.

O que aconteceu há um ano na Turquia foi o estrondoso falhanço de uma improvisada tentativa de golpe transmitida em direto. Erdogan serviu-se do golpe, que dominou a seu favor, para transformar o rosto da Turquia, fazendo-o coincidir com o dele. Ativistas dos direitos humanos, professores, escritores, advogados, editores, jornalistas, sindicalistas independentes, feministas e quem quer que seja não alinhado com o susceptível novo sultão de Ancara, todos foram atirados para o limbo – onde resistem, mas em condições dramáticas.

Tal como explica no livro La nouvelle Turquie d’Erdogan, du rêve démocratique à la derive autoritaire, Ahmet Insel, jornalista laureado pela Sorbonne e antigo editorialista do Cumhuriyet, “a derrapagem na Turquia começou há quatro anos quando, com a União Europeia a fechar-lhe as portas, Erdogan percebeu com os protestos no Gezi Park de Istambul o risco, para ele, de haver imprensa livre”.

A Turquia viveu uma primavera de liberdade à entrada no século XXI, coincidindo com grande crescimento económico e promessas de abraço europeu.

A Europa fechou-lhe as portas e a Turquia que Ataturk tinha fundado como estado laico em 1920 derrapou, sob a liderança popular de Erdogan, para regime autoritário islamo-nacionalista. Com dura repressão da vigorosa e resiliente sociedade civil. Mas o regime, que se tornou poderoso, não tolera qualquer forma de protesto. A desobediência civil é considerada subversiva e como tal reprimida. Tudo serve para que seja invocada a “ameaça à segurança nacional”. Não há direito de cidadania para quem é dissidente. Erdogan é mestre a mobilizar o povo para o seu regime intolerante. Acirra ódios. Exibe como trunfo os progressos económicos que liderou.

Continua robusta uma outra Turquia, laica, plural, que reivindica liberdade e justiça. Dezenas de milhares de pessoas participaram, entre 15 de junho e 9 de julho, numa marcha de 450 quilómetros, entre Ancara e Istambul. Foi um enorme desfile das oposições ao regime, pela democracia, pela justiça, pela liberdade e contra o medo. Marcharam pelos que são perseguidos, pelos que estão presos e contra o poder judicial sob monopólio do regime. Todos são genericamente acusados de subversivos que “ameaçam a segurança nacional, a ordem constitucional e o funcionamento do sistema”.

Erdogan serve-se de ter tirado milhões de turcos da miséria para os usar como exército para a consolidação do seu poder que quer absoluto.Conseguiu criar amplo consenso popular. Proporcionou habitação e estruturas do primeiro mundo após um século XX em que a maioria dos turcos viveu entre a miséria e a repressão militar. Erdogan coloca-se como salvador da pátria e sultão do renascido império turco. Joga com os seus seguidores um pacto  à maneira chinesa: haja bem-estar económico e a liberdade não se discute.

São imprevisíveis as consequências políticas, culturais e económicas do regime Erdogan na Turquia, que é um dos principais parceiros na NATO, aliado complexo mas fundamental na luta contra o terrorismo. A deriva autoritária atinge níveis que sobressaltam.

A Turquia de Erdogan é um país fraturado: há os que amam o líder e os que o detestam. O compromisso parece fora de cena. A conjugação da falta de pluralismo na informação com propaganda do regime martelada em todos os media poderia gerar uma verdade oficial absoluta. Mas o referendo de abril mostrou que metade do enorme país não quer o poder absoluto de Erdogan. Rejeita o regime de arbitrariedade e de poder pessoal instalado na Turquia. É por isto que parece improvável que Erdogan consiga levar até ao fim a sua ambição de transformação da Turquia.

Este país é um ponto de união de culturas e civilizações. Quem está em Istambul e atravessa o Bósforo sente isso mesmo. Todos somos de algum modo descendentes de Bizâncio e daquela Constantinopla que erigiu Santa Sofia, construída como igreja cristã e convertida em mesquita pelos otomanos. Sob a cúpula de Santa Sofia qualquer europeu sente o apelo espiritual e estratégico de Istambul, mesmo quando o país laico retrocede para o autoritarismo islâmico.

A TER EM CONTA:

O Obamacare tende a continuar: deserções na bancada republicana estão à beira de bloquear o desmantelamento que Trump pretendia do sistema de saúde para todos.

600 páginas de introdução ilustrada à Europa: um livro de fotojornalistas da Magnum, pensado para migrantes e refugiados.

Parece uma história de um filme-catástrofe, é uma realidade destes nossos dias: o icebergue que se despegou da Antártida.

A guitarra prodigiosa de The Edge vai abrir esta noite o concerto dos U2, com The Joshua Tree, no Estádio Olímpico de Barcelona.

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