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No sonho vê que todos os fantasmas estão perfilados como uma guarda de honra. Eles que esperem.

Miguel Serafim tem uma convicção – quem sobrevive à morte de um grande amor nunca mais terá medo de nada. Nunca mais encontrará um adversário à altura e derrotará todas as circunstâncias. Qualquer outro acontecimento será menor, qualquer problema se resolverá.

Miguel Serafim é o menos suicida de todos os seres. Tudo na morte o repugna e não lhe reconhece uma única vantagem.

Nunca respirou nele sopro melancólico de poeta, nada dessa dança com que os artistas namoram a imortalidade. Não há perfume do Além que o convença.

Nenhuma flor sobre as campas o atrai, não entende os que falam da misteriosa beleza macabra, erótica e negra das viúvas chorosas.

A morte é só feia e invencível.

Não lha pintem com cores suaves, não façam dela uma inofensiva penetra num baile de máscaras, disfarçada de princesa misteriosa ou querubim sorridente.

A morte só entra em festas para caçar.

Acima de tudo, que ninguém diga a Miguel Serafim que quem morreu está num sítio melhor. Não lhe venham com adornos ou prosápias.

Pedro Mexia junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 19 de outubro, pelas 21h00.

Poeta e crítico literário, escolheu para a conversa no clube de leitura o livro "A Terra Devastada", de T. S. Eliot.

Para se inscrever no encontro basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro receberá um e-mail com todas as instruções para se juntar à conversa.

Pedro Mexia, da poesia às traduções

Pedro Mexia nasceu em Lisboa, em 1972, e licenciou‑se em Direito pela Universidade Católica. Escreveu crítica literária e crónicas para os jornais Diário de Notícias e Público e também faz traduções; atualmente colabora com o semanário Expresso. Além disso, é um dos membros do "Programa Cujo Nome Estamos Legalmente Impedidos de Dizer" (SIC Notícias) e mantém, com Inês Meneses, o programa PBX. Foi subdiretor e diretor interino da Cinemateca.

T.S. Eliot e "A Terra Devastada"

A estreia de T. S. Eliot na poesia deu-se em 1915, na revista Poetry, de Chicago, onde saiu um dos seus mais famosos poemas, The Love Song of J. Alfred Prufrock. Este e outros poemas constituíram, em 1917, o seu primeiro livro

Em 1922 surgiu o poema The Waste Land — "A Terra Devastada", na tradução em português —, considerado um dos mais belos e mais importantes poemas do Modernismo.  O tema de The Waste Land é a decadência e fragmentação da cultura ocidental, concebida imaginativamente por analogia com o fim de um ciclo de fertilidade natural. O poema divide-se em cinco partes, que não obedecem a uma sequência lógica, e estende-se por 433 versos. A justaposição de símbolos, imagens, ritmos, citações e sequências temporais, contribuem para a dimensão épica do poema e reforçam a sua coerência artística.

Estamos só todos em pânico, nada mais. O que fazemos com o medo é o que nos distingue – uns controlam-se, outros enlouquecem.

Neste momento em que o conhecemos, Miguel Serafim está quase a completar sessenta redondos anos de vida. Idade em que os balancetes e contabilidades aparecem, mesmo aos que não pretendam fazê-los.

Destas seis décadas, que já foram início de velhice, diz-se que nestes tempos são a nova meia-idade, cada um acredite no que quiser.

Uma noite destas, impedido de dormir pela persistente insónia dos músicos, condenados a trabalhar grande parte do tempo por dentro da noite cerrada, carregava distraído nos botões do comando do televisor quando reconheceu um irmão de profissão, um maestro belga, numa tertúlia cultural no canal Arte.

Ali ficou porque reconheceu um rosto, é certo, mas sobretudo porque poucos segundos depois um dos participantes da mesa terminava assim um raciocínio

– E por isso, não, a minha resposta é não, não quereria ser imortal.

Serafim apurou a escuta. De que falava aquela gente? Confirmou que procuravam respostas à pergunta das perguntas. A moderadora vira-se para outro convidado

– E tu, Jean-Luc? Gostarias de viver para sempre? Não morrer nunca?

E entre risos de toda a mesa, por adivinharem vir aí mais uma resposta igual, também Jean-Luc, um escritor que Serafim desconhece, diz que não quereria viver para sempre, que a morte faz parte da vida, que não quererá nunca ser um fardo para filhos e netos, que todo o ser humano deve ter em si a capacidade de perceber que já chega, o que deve levar-nos à verdadeira arte, a única filosofia que vale a pena – a perícia de viver bem o tempo que nos cabe e nos resta.

Os outros concordaram, com sorrisos intelectuais, que nunca são muito abertos para que contenham enigma. A moderadora sentiu que a questão que ela achou estimulante talvez estivesse a ser desprezada por cabeças que a consideram básica e ultrapassada, sorrisos que diziam

– Claro que ninguém quereria viver para sempre, que parvoíce, que monotonia, podemos passar a questões realmente interessantes?

Livro: "As Cinco Mães de Serafim"

Autor: Rodrigo Guedes de Carvalho

Editora: D. Quixote

Data de Lançamento: 10 de outubro de 2023

Preço: € 19,90

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Miguel Serafim teve muita pena de não ter sido convidado para o programa de televisão. Não por inveja de fama, fome de visibilidade. Queria estar lá só para lhes gritar

– Mas vocês são todos estúpidos?

E passaria a explicar-lhes que quereria viver para sempre, sim, sem dúvida grande ou magra, quereria viver para sempre se alguém lhe fizesse a gentil oferta, não lhe ocorreria o argumento acinzentado da razão que sabe que a morte está lá à espera. Seria todo ele coração vermelho a bater veloz se lhe garantissem que poderia fintar o destino traçado.

Quereria, sim, viver para sempre.

No programa alguém levantou uma subquestão relevante – Também é verdade que dependeria do momento em que nos fosse concedida a imortalidade. Uma coisa é eu estar jovem e fresco e bonito e dizerem-me que ficarei assim para sempre, outra é ser um velho quase surdo e cego, de passo inseguro e pensamento a falhar, flácido, feio, incapaz, mal- cheiroso.

Miguel Serafim entende, aceita que são coisas diferentes, claro. Mas mantém a resposta. Viver para sempre.

Porque não consegue explicar a mágoa horrorosa de imaginar que o mundo continuará sem ele. Sem que ele veja e oiça. Sem que ele assista a tudo o que de bom e mau ainda está por vir.

Quer saber o que acontecerá. Aos povos, aos países, às invenções e tecnologias, aos mares e montanhas, aos veículos que nos transportam.

Que música se ouvirá e se ainda se chamará música.

Se os livros desaparecem mesmo ou se haverá sempre alguém a ler escondido.

Que cidades, que prédios, que bichos ainda na selva. Que religiões, que regimes políticos.

Serafim quer cá estar. Jovem e bonito seria bom, mas se só lhe derem uma vida eterna de velho, tudo bem, aceita.

*

Odeia a morte. É um ódio que traz desde sempre, desde o minuto da infância em que foi informado da existência de um fim, e lembra-se de como se sentiu traído por não lhe terem nunca perguntado, a tempo, se estava mesmo interessado em nascer.

Detesta as chamadas actividades radicais e os que as inventam e praticam, e impingem aos outros o suposto interesse de uma filosofia de constante desafio à morte. Criaturas insanas e frias que enfunam de ar as costelas de forcado e, de mãos na cintura, chamam a ceifeira por desporto.

Não é bem detestar, corrigiria Miguel Serafim. O verbo correcto será desprezar, porque não compreende quem não vê que perante a morte só se aceitam pânico e fuga. Não um convite. Não um sorriso de «vamos brincar». Não se chama a morte para a mesa, não se lhe deixa a porta entreaberta, à espera de ver o que fará ela com uma oportunidade.

Despreza os que trepam prédios sem nada que os segure, só força de dedos e braços e pó de giz no bolso.

Mais os que nadam com tubarões, ou os que se atiram de uma avioneta a dez mil pés da terra, de lá de cima para o nada.

Os que escorregam para labirintos de grutas escuras sem oxigénio às costas que lhes valha.

Qualquer corrida de quaisquer veículos que se processe a velocidades arrepiantes, onde uma hesitação é o fim.

Os que teimaram que alcançariam o topo das mais altas montanhas geladas, só para tirarem uma foto com aspecto miserável e voltarem para baixo, na duplicação do calvário.

Miguel Serafim despreza quem despreza a vida. A extraordinária riqueza que nos coube, de um dia nascermos e andar- mos por aqui, num planeta de maravilhas. A dádiva da vida.

Despreza quem demonstra não a merecer de facto, se está disposto a perdê-la pela efémera excitação, ou pior, pela indisfarçável vaidade da admiração dos outros, estúpida vã glória que já um poeta denunciou há séculos. Amigos aconselharam-no, entre sorrisos de desafio, a experimentar correr riscos para perceber essa gente. Um deles referiu a força da adrenalina, a magia do arrepio intenso, o prazer da explosão. Disseram-lhe que se um orgasmo durasse cinco ou seis minutos ninguém acreditaria em Deus.

A dádiva da vida. Miguel Serafim não queria utilizar a expressão, por lhe parecer incomodamente próxima do cego fervor católico da mãe, a pressão que combateu sempre com calma e elegância, mas com firmeza.

Pensou em muitas ideias, frases, imagens, antes de concluir que esta é, afinal, a expressão exacta – a dádiva da vida. Há que respeitá-la acima de todas as coisas, de todos, de tudo o que possa suceder. A dádiva da vida traz um contrato e ele despreza quem não o leu ou não o compreendeu.

A morte é para ser combatida. Evitada, sempre, até já não ser possível. É a luta que nos entregam assim que pela primeira vez respiramos, na primeira vez que abrimos os olhos, na primeira vez que reagimos a um ruído.

Miguel Serafim acha que não devemos bater muitas vezes à porta do Diabo, que um dia ele vem abrir.