Este é o "retrato realista" que o bioquímico e divulgador de ciência David Marçal quis transmitir em "Cientistas portugueses", livro de que é autor e que é apresentado na quarta-feira em Coimbra, sob a chancela da Fundação Francisco Manuel dos Santos.

À Lusa, o autor, coordenador de uma plataforma de cientistas gerida pela fundação, disse que o livro "pretende dar a conhecer um pouco mais" a comunidade científica portuguesa.

Uma comunidade que teve um grande impulso na década de 1990, mas que "está distante" dos "cientistas demónios, loucos e perigosos" da ficção, que "querem conquistar o mundo e não têm qualquer preocupação com as consequências do seu trabalho, e está distante também dos "cientistas santos", os que "aparecem na televisão", de "grande sucesso e elevadíssimo reconhecimento", professores das universidades com "vidas e carreiras estáveis".

A realidade que David Marçal descreve é outra: A ciência em Portugal é feita por "muitos jovens, muitas mulheres, que têm contratos precários, instabilidade profissional, carreiras que passam por uma grande mobilidade, por vezes no estrangeiro".

São "vidas complicadas" as dos investigadores, que "tentam conciliar a paixão pela ciência com os seus projetos de vida pessoal", nem sempre fáceis de concretizar devido à "falta de consistência financeira", avisa o autor, que foi bolseiro científico durante dez anos, sem direitos laborais como segurança social, apenas com deveres.

David Marçal, que coordena a rede digital de cientistas portugueses no mundo GPS, diz que em Portugal "é preciso ter nervos de aço ou pais ricos e muito generosos", porque ser-se selecionado num concurso nem sempre é sinónimo de trabalho imediato e pago.

O autor dá como exemplo os investigadores "bem-sucedidos" em sucessivos concursos de contratação, mas que não conseguem "estabilidade profissional", ou os que foram selecionados em dois concursos "nos últimos seis meses", mas que continuam sem receber um vencimento porque os processos "encravam" nas instituições.

Em Portugal, assinala, o emprego científico é feito ainda à custa de bolsas, que são subsídios e não salários, e de contratos a termo, sendo as oportunidades de trabalho fora das universidades "muito poucas".

"A ciência e as empresas estão ainda muito de costas voltadas", frisa, apontando que "é mais fácil para um doutorado criar a sua própria empresa do que arranjar emprego numa".

Para David Marçal, apesar de a legislação de estímulo ao emprego científico, cujo "impacto é ainda muito cedo para avaliar", prever a substituição de bolsas de pós-doutoramento por contratos de trabalho com uma duração máxima de seis anos, falta "encontrar um mecanismo" que garanta efetivamente que as instituições contratantes não vão ficar com um cientista "em precariedade absoluta durante 15 anos", como sucede.

"A carreira de investigação tem de ser digna do princípio ao fim", vincou, lembrando que há equipas científicas que têm investigadores precários, mas "com muita experiência".

Isto num país onde os cientistas "acabam por se candidatar a tudo", porque, acentua o autor, "nunca sabem quando é que abrem" os concursos para os projetos de investigação e contratação de investigadores e quando saem os resultados, passando-se "meses e meses até assinarem os contratos" que lhes dão o rendimento mensal a que têm direito.

"As candidaturas demoram imenso tempo a fazer, são processos complicadíssimos... escrever projetos de investigação, fazer revisões bibliográficas, introduzir o currículo em plataformas específicas", enumerou, acrescentando que um cientista pode estar "um mês a meio tempo" a preparar uma candidatura, em prejuízo da investigação propriamente dita.

"Sem complexos", os investigadores portugueses saem à rua para lutar pelos seus "direitos enquanto trabalhadores", e isso surpreendeu David Marçal, que "estava habituado a vê-los relutantes em tomar posições de tipo sindical na praça pública".

"Há um assumir generalizado da luta no espaço público por melhores condições de trabalho" através de manifestações ou petições, realça. "Antes, havia uma espécie de vergonha".