Summer of Love: a expressão entrou no léxico e no imaginário de milhões de adolescentes por todo o mundo após 1967, o ano em que se sentiu verdadeiramente que este poderia mudar para melhor, ser mais justo, viver na paz consigo e com os homens e, especialmente, entre os homens – antes de uma realidade brutal cujos nomes são Vietname, Richard Nixon e Altamont (entre muitos outros) tomar conta da sociedade em geral e determinar o fim do sonho hippie. Em muito contribuiu, para este desígnio, a cultura psicadélica, a sua música, as suas drogas, os seus esoterismos e teologias várias; estávamos nos anos 60 e parecia que tudo poderia acontecer ou vir a acontecer.
Este verão de amor, ou do amor, durou o que pareceu uma eternidade – e foi composto de diversas manifestações, umas mais lembradas do que outras, todas fluindo para o mesmo poço. Uma delas teve lugar em São Francisco, capital de facto desta gigantesca nação hippie, que acolheu, há precisamente 50 anos, aquele que foi um dos primeiros festivais de música da história da pop, o Mantra-Rock Dance, que teve lugar no extinto Avalon Ballroom. Nomes a reter: Grateful Dead, Big Brother and the Holding Company com Janis Joplin, Moby Grape (na música), Allen Ginsberg (na fama), Timothy Leary (no LSD) e, o mais importante, A.C. Bhaktivedanta Swami Prabhupada.
É difícil pronunciá-lo sem se saber articular a língua sânscrita, mas foi este homem o impulsionador do Mantra-Rock Dance e, por conseguinte, do “verão do amor” - não será difícil imaginar que, sem este evento, o mundo hippie teria seguido um caminho totalmente distinto. Prabhupada era, à altura, figura de proa daquilo que viemos a conhecer como Hare Krishna, movimento religioso hindu parodiado de forma incessante por comédias atrás de comédias (como esta), tendo chegado a Nova Iorque em 1965 para propagar os seus ensinamentos, e criando o seu primeiro templo nessa cidade.
A contracultura não lhe era alheia, nem ele a ela. Dois dos seus seguidores, Mukunda Das e Janaki Dasi, mulher deste, abriram posteriormente um novo centro espiritual na costa oeste, precisamente em São Francisco, que então começava a sentir os primeiros sopros da revolução hippie e da sua abertura a novas religiões. De forma a espalhar a palavra do seu mestre pela zona de Haight-Asbury, icónico distrito dessa cidade californiana prenhe de uma juventude sedenta, decidiu-se que seria organizado um concerto de angariação de fundos para o templo, onde o rock seria auxiliar da procura pela paz interior. Prabhupada foi, logicamente, convidado a assistir ao mesmo – ainda que alguns dos seus seguidores em Nova Iorque se tenham oposto à sua presença «num antro de guitarras amplificadas, baterias ribombantes, espetáculos de luzes selvagens e centenas de hippies drogados»...
As drogas não eram para Prabhupada uma prioridade, bem pelo contrário; eram probidas, bem como a promiscuidade, algo que não relacionamos diretamente com a cultura hippie ou a visão estereotípica que temos da mesma. Nada que enraivecesse , que já à altura era um poeta respeitado, e que havia ajudado o mestre a extender a sua estadia nos Estados Unidos. A viagem de Ginsberg à Índia, anos antes, havia deixado em si uma boa impressão da teologia hindu e, especialmente, do mantra Hare Krishna (um poema de quatro linhas e oito sílabas, a saber: hare kṛṣṇa hare kṛṣṇa / kṛṣṇa kṛṣṇa hare hare / hare rāma hare rāma / rāma rāma hare hare), que adoptou e que recitava, argumentando deixá-lo «num estado de êxtase». Ginsberg pretendia que Prabhupada, os seus ensinamentos, e em especial o mantra fizessem parte do movimento hippie. E convidou amigos, como Timothy Leary, professor, neurocientista e psicólogo que preconizava os efeitos terapêuticos do LSD, para o evento, que ajudou também a organizar.
Faltavam as bandas, todas do estado da Califórnia: os Grateful Dead, que se tornariam mais tarde, eles próprios, quase como que uma religião, e que tiveram aqui um dos seus primeiros concertos de maior envergadura; os Big Brother and the Holding Company, onde pontificava uma jovem Janis Joplin, ainda antes da fama; e os então desconhecidos Moby Grape, que viriam a ser, também eles, uma das bandas mais acarinhadas dos e pelos anos 60. Marcou-se o evento para um domingo – uma escolha «estranha», afirmou então Chet Helms, responsável pelo Avalon. Preço dos bilhetes: uns “míseros” dois dólares e meio.
O recinto não tardou a encher, naquela noite. Cerca de três mil jovens foram-se juntando dentro da sala de espetáculos, e muitos mais ficaram de fora, à espera que alguém “desistisse” para poder entrar. O público era recebido com prasad – comida santificada -, um termo religioso que mais não dava nome que a alguns gomos de laranja. O consumo de drogas foi proibido, mas a atmosfera cedo ficou impregnada do inconfundível cheiro a marijuana, entre outras substâncias inodoras. Mas havia paz; de espírito, de corpo, de mente. O público vestia-se com roupas tribais, ponchos mexicanos, penas, colares. Alguns levaram os seus próprios instrumentos. Os Hell's Angels, que dois anos mais tarde matariam um jovem negro em Altamont e, com ele, o mundo hippie estavam encarregues da segurança. Ouviu-se o mantra Hare Krishna, ouviram-se os Moby Grape, e Prabhupada entrou em cena, sendo aplaudido de pé por todos os presentes, por volta das dez da noite. Gurudas, amigo de Mukunda Das que também ajudou na organização do Mantra-Rock, descreveu depois a cena: «à medida que ele se aproximou do palco, a multidão afastou-se e deixou-o passar, como um surfista numa onda. Parecia um ancião védico, exaltado e de outro mundo». Foi ele quem liderou aquele público durante os cânticos religiosos que se fizeram então ouvir, após o pedido de Ginsberg para que este «mergulhasse nas vibrações sonoras e pensasse na paz».
O legado deixado pelo Mantra-Rock – que só terminaria de madrugada, ou não estivéssemos a falar (também) de um festival de música... – foi imediato, para todos os envolvidos. O poeta explicaria, mais tarde, que o evento «foi o ponto alto do entusiasmo espiritual de Haight-Asbury, a primeira vez que existiu uma cena musical em São Francisco da qual todos podiam fazer parte», e os historiadores daquele período descrevem-no, claro, com recurso a palavreado psicotrópico: the ultimate high, ou a melhor trip de sempre. Os Moby Grape profissionalizaram-se, e abririam para os Doors, nesta mesma Avalon. O templo reuniu cerca de dois mil dólares e angariou centenas e centenas de fiéis. Na sua generalidade, o movimento hippie adoptou o mantra, e o movimento Hare Krishna passou a ser reconhecido pelo público norte-americano. Mas isto foi apenas o começo, o primeiro passo do “verão do amor” - que se iniciaria, oficialmente, com o Monterey Pop Festival, em junho desse ano. Muita água (ou muito amor, ou muita paz, ou muito LSD...) iria ainda correr.
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