Depois do jantar, com o fogão a lenha aceso e a deitar pela casa um cheiro a fumo a que chamam tradição, a família reúne-se. Estão lá todos: a avó, que é a dona da casa e a maquinista do fogão, a tia que vive ao lado. Os primos que vieram de longe, mais os outros dois que ali vivem perto. No final, depois do jantar, só com os copos e alguns guardanapos na mesa, todos se juntam à volta da caixa.

É o mais novo quem a abre, talvez por ter uma especial desenvoltura para abrir caixas, fruto do treino que antecedeu a consoada. De dentro chove dinheiro, um tabuleiro e pequenos bens imóveis e outros ativos financeiros. Agora, estão espalhados na mesa. No fim da noite, hão de acabar fechados num punho, fora os que hão de se perder pela sala, já que a mesa está de pernas para o ar, o tio está chateado, a avó de faca na mão e muitos outros dramas lúdico-financeiros se espoletam depois de o primo que não percebe nada do jogo ter, sem saber como, ganho tudo.

A culpa é do dinheiro. É sempre, diz-se. Desta vez, porém, o dinheiro não tem valor cambial, já que se trata do jogo ‘Monopólio’, um passatempo em que, para um prosperar os outros têm necessariamente de falir. Não deve haver melhor metáfora para ilustrar os conflitos passivo-agressivos de uma reunião de família.

Todavia, não é metáfora nenhuma. É que não há perícia a ditar quem ganha e quem perde, já que, à parte a batota, tudo depende dos números ditados pelo dado - e esse, temos a certeza, não tem preferências familiares.

O jogo do senhorio que ganha e dos inquilinos que se chateiam

O mercado de arrendamento em Portugal tem dado vastos textos, sobretudo no preâmbulo das autárquicas no primeiro dia de outubro. Mas se as autárquicas portuguesas caem no dia da música, a origem do Monopólio não é muito dada a melodias, apesar de nos levar pelo caminho do mercado de inquilinos e senhorios.

O jogo atual deriva de um outro jogo de tabuleiro chamado “O Jogo do Senhorio”, criado em 1903 por Elizabeth Magie. O objetivo não era encontrar uma boa forma de passar serões, pelo contrário, era um passeio pelas atribuladas veredas do dinheiro e da finança, com um toque de exemplo dos impactos negativos da acumulação de capital.

Magie criou-o para que refletisse as suas ideias políticas. Acreditava que as pessoas deviam deter o valor daquilo que produzem, mas que tudo o que viesse da terra - recursos naturais - devia ser propriedade de toda a comunidade. “O Jogo do Senhorio” tinha, assim, como objetivo mostrar os perigos dos monopólios de propriedade - monopólios que surgem quando as terras são tratadas como propriedade privada (e não comum).

Magie descreveu o jogo, cita o britânico ‘Guardian’, como sendo “uma demonstração prática do atual sistema de acumulação de terras com todos os seus resultados e consequências habituais”. “Podia ter-lhe chamado ‘O Jogo da Vida’, já que contém todos os elementos do sucesso e falhanço na vida real”, escreveu a inventora numa revista política. E acrescenta: “o objetivo é o mesmo a que a raça humana em geral almeja: a acumulação de riqueza”.

É isso. O primo quer propriedades; a avó também. E o tio e todos os outros que, de cotovelos ferrados na madeira rija da mesa velha, se exaltam a cada jogada. Um passo em falso e vai tudo abaixo - o monopólio, o ‘Monopólio’, a mesa, a família. Zangam-se as comadres, calam-se as cunhadas. No fim, só um sorri.

O objetivo do ‘Jogo do Senhorio’ - e do ‘Monopólio’ - é acumular (dinheiro, propriedade ou desavenças). Todavia, ao contrário do que o tio quer fazer parecer, não há, explica a ‘Business Insider’, perícia envolvida. É tudo sorte. São os números no dado quem decide o vencedor, ditando as casas em que se calha. O vencedor, explica a mesma publicação, há de se sentir um especialista no assunto, com “a ilusão de que fez escolhas acertadas, quando, na realidade, tudo se deve à vontade do dado”.

Tudo isto nos leva a crer que o objetivo nunca foi animar serões. Nada disso. Nunca isso. Depois de todas as propriedades terem sido compradas e todos os jogadores terem dado a volta ao tabuleiro algumas vezes, sucede um compasso de espera a colher a rentabilidade dos investimentos feitos.

O vencedor já está, então, escolhido. A dança agora é só para adiar a falência dos restantes. Não há nenhuma decisão sensata, inspirada, especializada, curada, analisada, estudada, ou meticulosamente planeada que leve o fado a outro lado: a derrota é inevitável.

Podem criar-se regras novas; podem nascer economias familiares paralelas às que vêm escritas nas bulas. Todavia, sem a intervenção de um deus ex machina que mude a narrativa da noite em causa, a consequente humilhação, frustração, alienação está só a ser prolongada.

Restam, assim, poucas alternativas. Pode a tia optar por refrear os humores e vigores que coloca no jogo, ou pode a família toda apanhar as peças do chão e guardá-las na caixa, jurando nunca mais lhe mexer, a menos que seja estritamente necessário um aguerrido conflito quando os amendoins acabarem.