Time goes by

So Slowly

Quase que não éramos para aqui estar. No passado mês de junho, Madonna foi encontrada inconsciente no seu apartamento, em Nova Iorque, tendo sido de imediato hospitalizada. O diagnóstico: uma infeção bacteriana grave, que a forçou a cancelar as primeiras datas desta “Celebration Tour”, a digressão onde celebra os seus 40 anos de carreira com recurso a um espetáculo visual de luxo e os êxitos de sempre. Após alguns dias nos cuidados intensivos, durante os quais se chegou a temer o pior, Madonna recuperou a tempo de trazer esta mesma digressão à Europa, com passagem anunciada, e obrigatória, por Portugal.

Quase que não éramos para aqui estar, por isso, e pelo passado de Madonna. Perto do final do concerto, surgem nos ecrãs várias manchetes, parangonas, reportagens, versando sobre as polémicas e controvérsias que sempre a rodearam – como o vídeo para 'Like A Prayer', onde surge a beijar um Santo negro, e que motivou fortes protestos do Vaticano. Ainda antes de se discutir o que é a cancel culture, já Madonna era alvo de tentativas de “cancelamento” por parte dos setores mais conservadores da sociedade, chocados com a falta de vergonha de uma mulher que saiu do Michigan para tentar a sorte grande em Nova Iorque, sem um tostão furado no bolso.

Apesar dessas tentativas, que ainda hoje se mantêm (se bem que as maiores críticas que recebe, hoje em dia, são pelo facto de estar “velha”), Madonna conseguiu construir uma carreira com 40 anos e uma História com outros tantos. A cultura pop não seria a mesma coisa se Madonna não tivesse apontado o caminho, desbravado terreno, pegado não só na música mas na moda ou nas belas artes para criar um corpo de trabalho absolutamente notável – tanto, que estamos aqui, e sentimos a necessidade de estar aqui, porque ninguém poderá alguma vez sonhar chegar ao seu patamar. Haverá sempre quem venda mais, quem vá de encontro ao zeitgeist, ano após ano, década após década. Madonna permanecerá porque foi pioneira. Não é por acaso que lhe foi conferido o título de “Rainha da Pop”: mesmo no ano de Taylor Swift e de Beyoncé, estrelas que também fizeram e continuam a fazer digressões megalomaníacas, não conseguimos deixar de falar de Madonna.

Não deixamos de falar de Madonna, e não deixamos de nos vestir como Madonna. Em “Hunger Makes Me A Modern Girl”, autobiografia de Carrie Brownstein (para uns a estrela de “Portlandia”, para outros ídolo indie rock nas Sleater-Kinney), a autora lembra que o primeiro concerto que viu foi o de Madonna, durante a digressão em torno de “Like A Virgin”: “Tinha o meu outfit preparado. Queria usar o que qualquer fã de Madonna digna desse nome queria usar nos anos 80: um vestido de noiva”. A duas horas da hora marcada para o início do espetáculo na Altice Arena, vislumbrou-se de facto um véu de noiva na fila para entrar, sinal de que o tempo, e os fãs, não correm: mantêm-se estanques na mesma declaração de amor. Por todo o lado havia t-shirts ou camisolas com o rosto de Madonna, corpetes a lembrar os de Madonna, vestidos a emular os de Madonna. O que atesta, de igual forma, ao seu impacto. Não basta gostar de ouvir Madonna. Há que desejar ser Madonna.

Para muitos, a norte-americana é sinónimo de libertação. Poucos fazem da pop um ato político; Madonna cedo percebeu que a sua pop tinha que ser política, ainda que não predical. 'Papa Don't Preach' é política porque traz para a pop a questão do direito que a mulher tem de escolher entre fazer ou não um aborto. 'Express Yourself' é política porque traz para a pop a ideia de que o indivíduo pode e deve ser quem é, sem receio de represálias. A sua própria existência é política: uma artista como Madonna pode inspirar revoluções, rebeliões, o fim dos microfascismos que ditam moralidades milenares. Tal como Amália Rodrigues no campo do fado, todas as grandes estrelas pop femininas são, ou foram, em algum momento das suas carreiras, comparadas a Madonna. Já não é apenas o nome próprio de Madonna Louise Ciccone; é uma bandeira, como o rosto de Che Guevara ou de Malcolm X. Que, curiosamente ou não, também foram vistos nos ecrãs da Altice Arena, antes de 'Don't Cry For Me Argentina'.

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Reprise: o tempo pareceu correr muito devagar quando, já dentro da Altice Arena e depois de longas filas, os fãs tiveram ainda que aguardar uma hora e meia até que ela aparecesse em palco, sem que tenham sido fornecidas quaisquer informações acerca deste atraso. Mas é Madonna. A ela tudo lhe é permitido. Quando, por fim, as luzes se apagam, o volume aumenta, e a um “olá, Lisboa!” em português se segue o mini-espetáculo fornecido por Bob The Drag Queen, o MC de serviço desta digressão, os gritos de entusiasmo percorreram toda a Arena. Foi das poucas vezes que o público nacional se mostrou verdadeiramente feliz por ali estar, antes de passar a restante noite a filmar o concerto no telemóvel e a assistir, estático, a canções eminentemente dançáveis como 'Ray Of Light'.

Ao longo da noite, os ecrãs foram mostrando imagens antigas de Madonna, que parece não ter medo de admitir que os seus melhores momentos têm origem nos anos 80 e 90 (ou pelo menos aqueles de maior impacto popular e social, não descurando que depois disso houve canções como 'Die Another Day' ou 'Hung Up'). De auréola na cabeça, a eletrónica de 'Nothing Really Matters' nas colunas, Madonna deu início ao primeiro de seis atos, cada um sobre um momento particular da sua vida e carreira. 'Everybody', logo depois, colocou em palco uma série de dançarinos punk, para nos lembrar de que ela própria já foi punk: em 'Burning Up', um dos primeiros temas que compôs na guitarra, Madonna fez referência ao período longínquo em que atuava em salas sujas e decadentes como o mítico CBGB's, e não em espaços com capacidade para 20 mil ou mais pessoas.

“Digo sempre que estou feliz por aqui estar, mas hoje estou feliz por aqui estar”, atirou, na primeira declaração de amor que fez a Lisboa. Esse amor, que se iniciou há sete anos, quando veio para cá morar devido ao sonho do filho, David Banda, em querer ser jogador de futebol, encontrou o seu apogeu mais tarde, quando Madonna fez algo que muito provavelmente não fará em mais nenhuma das outras datas desta digressão (excluindo, claro, a desta terça-feira, nesta mesma Altice Arena): cantou 'Sodade', de Cesária Évora, por entre elogios aos criativos que conheceu durante a sua estadia por cá, e os quais apelidou de “tribo”.

Antes, houve a sensual dança da cadeira de 'Open Your Heart', com o primeiro grande momento a ser reservado para 'Holiday', interpretada depois de um pequeno teatro com cenário de discoteca, bola de espelhos não esquecida. Um momento de celebração eighties, que terminou como os eighties terminaram para muita gente: na dor de ver perder quem mais amavam. 'Live To Tell', imediatamente colada, foi dedicada a todas as vítimas da Sida, com os rostos de muitas delas a surgirem em palco, casos de Freddie Mercury ou Keith Haring.

Não se viram bandeiras do Vaticano – viu-se uma de Israel – na Altice Arena, mas dá para ter uma ideia daquilo que a Santa Sé diria sobre 'Like A Prayer', na sua versão 2023 (mais crua, graves proeminentes, e um trecho de 'Unholy', de Sam Smith e Kim Petras, a fazer todo o sentido), que Madonna interpreta depois de se deixar vestir por três monges, e no meio de um grupo de Cristos com máscaras de gimp. O tema termina com uma guitarrada elétrica que faz a ponte para os anos 90, em que um ringue de boxe improvisado permite danças inspiradas pelo desporto e a interpretação que se pedia para 'Erotica' – que fizesse jus ao título. Logo depois, uma cama é invadida por uma sósia de Madonna, que inicia um ato masturbatório para gáudio geral do público. Talvez hoje isso já não choque tanto, mas a ideia também passa por lembrar que já chocou, mais que o que devia.

'Justify My Love', também numa versão eletrónica minimal, desagua num trecho de 'Fever' e num pequeno mashup com Tokischa, antes de Mercy, uma das suas filhas, mostrar a Portugal – como já o tinha feito noutros países – que sabe efetivamente tocar piano. Este é um espetáculo que talvez não seja para a família, mas que é de família: para além de Mercy, também Estere esteve em palco (primeiro como DJ, depois como dançarina), assim como David Banda, que parece ter abandonado a carreira de futebolista para se dedicar à música. 'Vogue', com mensagens anti-homofobia (ou não tivesse sido inspirada pela cultura queer e de clube de inícios dos anos 90), contou com uma espécie de desfile pelo palco, em que todos os participantes mereciam nota dez.

O mesmo palco haveria de ser colocado em chamas, com Madonna a fazer a transição para 'Die Another Day' a partir de uma narração de trechos do Livro do Apocalipse. Madonna de negro, bem como os seus bailarinos, a árvore da vida da cabala judaica a surgir no ecrã, 'Die Another Day' acaba por ser uma inclusão algo surpreendente no alinhamento desta digressão de êxitos – não porque não o foi, mas porque aqui está em detrimento de temas como 'American Life', 'Music' ou 'Lucky Star'. Mas haveria sempre de ficar a faltar qualquer coisa; uma digressão de celebração, de verdadeira celebração, da carreira de Madonna iria acabar sempre com a artista em palco por dez ou doze horas, sem que de lá pudesse sair antes de as cantar todas.

A política ficou-se mais pelas canções e menos pelo discurso, com referência apenas ao facto de o mundo “estar louco” – só que, e por outro lado, “o mundo sempre foi louco”. Madonna clamou por mais amor, paz e unidade, o tipo de discurso hippie que uma aspirante a Miss Universo, e não alguém com o poder que Madonna tem, costuma fazer. Nada de muito grave. Uma versão de 'I Will Survive', em guitarra acústica, acende corações e lanternas de telemóvel, e 'La Isla Bonita' traz para Arena o mesmo sabor a Espanha de muitos dos que aqui marcaram presença. 'Don't Cry For Me Argentina' não soa tão bem aqui como em “Evita” e, para além dos já supracitados Che e Malcolm, contou com uma imagem do rosto de Sinéad O'Connor, bastante aplaudida.

Numa plataforma elevatória, metros acima das cabeças presentes, Madonna arranjou ainda espaço para 'Ray Of Light', espetáculo de eletrónica e laser pontuado por dois piretes dirigidos não se sabe muito bem a quem, antes de homenagear Michael Jackson (o “Rei da Pop”) com uma mistura pouco conseguida entre 'Billie Jean' e 'Like A Virgin'. O final só poderia ser mesmo uma declaração como 'Bitch, I'm Madonna', a mais recente das canções que interpretou esta noite. “E não te esqueças disso, Lisboa!”, atirou logo de seguida, como se alguém o pudesse esquecer. Desaparecendo do palco mais depressa do que o que surgiu, dando um certo tom anticlimático à coisa, Madonna saiu com a sensação de dever cumprido, mesmo sem deslumbrar. Há nomes que não precisam de muito mais do que isso; basta serem eles próprios, que no final haverá sempre quem diga, ainda bem que aqui estivemos.

*Imagem ilustrativa, não corresponde ao concerto de ontem